1
Vi
partir o avô Celestino, Auxiliadora,
os meus pais, a tia Márcia, duas amigas da tia Márcia, um vizinho
que nunca foi com a minha cara, a mulher dele e a mãe da mulher, o
carteiro do bairro, um garoto de oito anos que passava as manhãs aos
pulos na rua, antigos professores, o primo Ascênsio que teimou em ir
fardado de militar e os seus dois filhos, pessoas de quem me lembro
ou de quem guardo apenas uma ideia vaga, algumas que se apaixonaram
por mim e outras que nunca amei. Vi partir gente sem nome, gente sem
história, para os confins do tempo, gente aqui tão perto.
Por
vezes, ouço o eco da voz de Auxiliadora ao fim da tarde:
“Anda
cá! Vem falar comigo…”, gritava ela da porta de sua casa, longe
de saber que, décadas depois, eu recordaria a sua voz nítida e azul
como se não tivesse passado um minuto desde o último instante em
que nos víramos.
Auxiliadora
falava com a segurança e a alegria dos que acreditam, dos que
confiam. Falava como se tivesse o mundo inteiro ao dispor, olhando-me
com malícia, com rebeldia. Eu não lhe respondia, não lhe ligava,
na certeza de que a deixaria vibrante de fúria.
“Anda
cá… tenho uma coisa para te dizer”.
Eu
fingia-me sem interesse, deixava-a falar, barafustar, irritar-se,
encostada ao umbral da porta, descalça, irrequieta por baixo do
vestido desalinhado acima dos joelhos, na expectativa de que o seu
entusiasmo desaparecesse.
“Não
quero saber de ti para nada”, protestava ela ao fim de pouco tempo
quando se dava conta da minha indiferença. “Estou farta. Não me
voltes a procurar. Esquece-me. Só me arrependo de não ter dado
ouvidos a quem me avisou…”.
Não
terminava a frase com o propósito de me ferir, de me obrigar a uma
reacção, mas nem assim eu lhe fazia a vontade. Metia-me em casa e
não lhe punha os olhos em cima até ao dia seguinte.
Auxiliadora
era magra, morena, de cabelo curto. Fervia em pouca chama. A nossa
amizade durou até ao dia em que partiu. Cortámos relações milhões
de vezes e milhões de vezes as reatámos. Quando recebi a notícia
da sua morte, senti a cabeça oca e um aperto na alma que se prolonga
até ao presente. Não voltar a ver Auxiliadora foi um rude golpe.
Havia coisas que eu só a ela confessava, coisas que só ela
compreendia. Eu acabara de completar trinta anos e ela vinte e oito.
Não tínhamos a certeza do que nos esperava. Ela não chegou a
compreender o que vinha a seguir. O seu desaparecimento foi um livro
que ficou por escrever.
Mexo
e remexo nas páginas de um caderno seu que guardo desde há anos,
fazendo que Auxiliadora regresse, reviva através de palavras,
rabiscos, garatujas. Está longe a minha Auxiliadora, está não sei
onde, embora a sua presença seja tão real como o sol que me entra
no quarto.
O
primeiro capítulo deste meu livro é um dia claro, arrebatador, que
se confunde com as páginas luminosas do caderno que Auxiliadora me
deixou.
Auxiliadora
está por aí repleta de coisas para contar, inquieta para
acrescentar novidades às frases rascunhadas no caderno da sua
memória, que se resume a umas notas breves, apontamentos vagos,
ideias dispersas, desabafos. Com ela, há sempre tanta coisa a
acontecer.
Auxiliadora
foi-se e não se foi. Morreu, mas está viva, está viva em outros,
está perene, indomável, rondando-me ainda como um tigre em busca da
sua presa, um tigre cujas garras o tempo não envelheceu. Detecto os
seus sinais, as suas marcas no ar, os suspiros com que me enfeita a
casa ao entardecer. Não sei se continua a dar pelo nome de
Auxiliadora, ou se dá por outro nome. Tanto me faz.
Por
agora, estou na cama, à espera que me venham buscar. Senti uma
ligeira indisposição e chamei uma ambulância que me possa
transportar aos serviços de urgência. Na minha idade, não convém
facilitar. Antes de recorrer ao hospital, telefonei a Rute, mas não
obtive resposta. Há vários dias que Rute não me aparece. Quando
passo algum tempo sem a ver, sinto-me outra pessoa, sinto que me
falta algo de essencial e fico com a impressão de que tudo corre o
risco de se desmoronar.
Rute
é uma amiga médica que se habituou a visitar-me com alguma
assiduidade. A indisposição que senti talvez se deva à sua
ausência. Espero que a ambulância não demore, a ver se ainda
resisto uns tempos. Quero ir juntar-me a Auxiliadora, mas há tarefas
que por enquanto me impedem de partir.
Vejo
as sombras de espíritos inquietos pairando à minha volta.
Suplicam-me para que eu diga tudo, para que não interrompa a
escrita, para que me deixe de sentimentalismos, para que esqueça
Auxiliadora. Ela teve o seu tempo, enquanto o meu se aproxima do
termo, um termo que me abrirá as portas do tempo todo.
Sei
que têm razão. Não discuto, embora concorde que não é fácil
desligar-me de Auxiliadora, nem de Rute, nem de ninguém. Afastar-me
de um sítio ou de uma pessoa é o pior que me podem fazer. Sinto-me
desintegrar por dentro, como numa orfandade insuportável, fico com
ganas de ir à janela e renegar o que me ensinaram, perco as
referências, desanimo, desisto. Desisto por uns tempos, mas depois
sei que volto a ser quem era. Aconteceu-me tantas vezes, acumulei
tanta dor.
Estou
a chegar ao início de um outro tempo, que é o fim do meu tempo. Vai
sendo altura de descansar. O percurso foi intenso, esforçado, quase
no limite, obrigando-me a passar o testemunho a outro – um filho,
um vizinho, um amigo, um desconhecido – que continuará a corrida
por mim. É uma corrida de estafeta, em direcção à eternidade, à
qual dei o meu contributo, ainda que ínfimo. A morte é
um momento num percurso de que faço parte, é um
instante de lucidez e amor, o instante em que alguém me sucederá na
viagem, tal como eu sucedi a Auxiliadora, se é que assim foi
realmente. Nunca se sabe com rigor a quem sucedemos, ou quem nos
sucede, mas podemos imaginar. É uma questão de amor. O amor que
sinto é esse encontro entre o outro e eu, essa identificação, ou
tentativa dela, que justifica a eternidade.
Calculo
que os seres, os corpos, têm o sentido de se sucederem uns aos
outros, tornando possível o eterno. Viver para sempre nos outros
talvez seja a nossa felicidade, o nosso bem. Não me refiro a
qualquer tipo de reencarnação, mas a uma continuação da
existência no outro. Uma passagem de testemunho de uma identidade
para outra.
Durante
anos, vivi na ilusão do que me diziam, do que me expunham. Depois,
percebi como as coisas se passavam e aceitei a morte. Quero
descansar. O que posso fazer de melhor, agora, é dar o lugar a
outro, para que me seja possível continuar através dele.
A
procriação dá forma a este processo imparável. Um filho é a
solução mais evidente no caminho para a eternidade. A um filho
entrega-se tudo de vontade, sem esforço, por prazer. Ele é parte de
nós, nasceu de nós, existiu em nós e, caso a morte não o leve
prematuramente, continuará para além de nós. Um filho é a maneira
mais fácil de construir a eternidade. Por isso, a educação pesa
nos relacionamentos familiares, transmitindo valores fundamentais
para o alcance do eterno. Quanto mais os filhos seguirem o caminho
dos pais, mais evidente será a passagem do testemunho.
A
semelhança física entre pais e filhos alimenta a ideia de que a
morte não é o fim de coisa nenhuma porque alguém pode continuar a
viver por nós, alguém com um rosto semelhante ao nosso, com uns
olhos parecidos aos nossos, com um tom de voz idêntico ao nosso, com
uma forma de andar igual à nossa.
Quanto
mais parecidas forem duas pessoas, mais fácil, mais óbvia, se
tornará a passagem de testemunho porque, ainda em vida, salta à
vista a continuidade da existência através do outro. A semelhança
com o outro, seja pela aparência, seja pela educação, é a forma
mais evidente de eternidade.
Imagine-se
uma criança a caminho da escola, rasgando as sombras da manhã, aos
saltos pela rua, transportando na mão a pasta que a mãe usou quando
ia para a escola da sua infância. Passados anos, a pasta lá vai,
testemunho de uma vida que continua e se renova, balouçando na
mãozinha de dedos irrequietos, uma outra mão que é a mesma, ou que
podia ser a mesma, foi a mesma, só com a diferença do tempo a
separá-la.
Mas
o tempo não conta. Nós, sim, contamos; nós, ser; nós, acção. E
nós somos os outros, à margem do tempo. Estamos lá, na matéria
alheia de que somos feitos, contribuindo para a ebulição das vidas
que fazem o rodopio dos universos.
Se
eu for capaz de olhar o outro, de o compreender, de o acompanhar,
estarei a contribuir para a eternidade de um todo e, como tal, para a
minha própria eternidade. Como parte do todo, não posso deixar de
contar no processo.
A
possibilidade de cada um ser eterno sozinho representaria a vitória
do egoísmo sobre o amor, a vitória da ignorância sobre o saber, a
negação do movimento cósmico e da sua lógica. A eternidade
individual significaria o sofrimento para sempre. O horror dos
horrores. A vida seria insuportável – e a morte desejada a cada
momento.
Por
isso a eternidade se materializa num percurso colectivo em que uns
vão tomando o lugar de outros, numa caminhada cósmica de milhares,
milhões de anos, um tempo ao longo do qual a memória se irá
esvaindo, transmutando.
Mas
a eternidade não termina com o fim da memória. É compreensível
que a partir de certa altura eu deixe de ter consciência da
eternidade (pelo menos uma consciência organizada), mas nem assim
deixarei de estar nela, nem que seja por ter contribuído para o
processo com um determinado tempo da minha existência.
A
morte é apenas a inteligência natural a funcionar em nós, é o
nosso instinto de sobrevivência no seu mais elevado grau de
eficácia.
É
a morte que justifica a irrequietude da infância, a precipitação
da adolescência, o impulso da juventude, a febre da adultez, a
realização da maturidade, a lucidez da velhice. A morte impede-me
de ser monstro e, ao mesmo tempo, permite-me dar sentido ao outro. É
ante a aproximação da morte que compreendo o incompreensível,
aceito o inaceitável, tolero o intolerável. A morte é o que falta
acontecer e que aos outros, não a nós, compete viver. Por isso, há
os que acreditam na reunião das almas e dos entes queridos. Mas não
há reunião, não há outra vida. Há outras vidas, que são as
daqueles a quem, através da morte, passamos o testemunho da
existência.
É
na morte que soluciono as contradições que vivi e me deram a
possibilidade de resistir ao furor prodigioso dos momentos felizes.
O
meu corpo faz parte do movimento de galáxias, estrelas, cometas,
planetas, matérias inúmeras e imensas de fogos e poeiras. O meu
corpo fez parte, fará sempre parte, de todas as andanças cósmicas.
A soma de todos estes percursos constitui a eternidade do universo
que, por sua vez, se integra em outro universo, e este ainda em
outros universos, por aí fora, dando lugar ao longínquo infinito,
ou ao frenesim de milhões de universos derivados de outras e
constantes explosões gigantescas, cuja adição sem limites explica
a existência de uma eternidade maior, sempre maior, ao ponto de nos
perdermos nas contas desse infinito.
2
Tocaram
à porta. Levantei-me para ir ver quem era. Pensei que devia ser a
ambulância de que estou à espera, mas enganei-me. Era a vizinha do
piso de baixo a perguntar se eu precisava de alguma coisa. Lembra-se
de me vir ver uma vez por outra. Mas não se dá ao trabalho de subir
as escadas e bater-me à porta. Como vive no rés-do-chão e eu no
primeiro piso, toca na campainha da entrada do prédio e espera que
eu responda, para ter a certeza de que ainda ando por cá.
Agradeci-lhe
e disse que estava tudo bem. Há-de saber que chamei a ambulância
quando a vir parada à porta do prédio. Se apanhar um susto, talvez
não lhe faça mal. Ao menos, sentir-se-á obrigada a fazer alguma
coisa, a estar mais atenta. Para a próxima, talvez se dê ao
trabalho de subir até ao piso onde moro.
Voltei
para a cama, fechei os olhos e compreendi que já quase tudo havia
passado em mim e continua a passar como um comboio que não se detém
a caminho das inúmeras cidades que atravessa.
Puxei
o lençol para o queixo e a seguir amarrotei-o, formando minúsculas
colinas e ravinas sobre a cama. Ajeitei um dos cobertores com os pés
e tive a sensação de estar num descampado poeirento, por onde havia
de passar a ambulância que me vinha buscar, talvez para o outro
mundo, para outros mundos. À falta da ambulância, contudo, pus-me a
imitá-la com dois dedos deslizando sobre o lençol em curvas e
contracurvas, recorrendo à boca para fazer o barulho do motor e o
apito estridente da sirene. A ambulância dos meus dois dedos
acelerava nas ruas desertas do lençol, desaparecendo e reaparecendo
por trás das elevações do tecido, perdendo-se e reencontrando-se.
De tanto andar, um dos pneus do veículo teve um furo, levando-me a
substituí-lo, o que fiz com o polegar a servir de manivela junto aos
outros dois dedos. O furo deve ser o motivo de atraso da ambulância.
Não pode haver outra razão.
Não
sei quem continuará o meu percurso, mas pode até não ser apenas
uma pessoa. A minha vida foi feita de muita gente, amigos e amores.
Pode estar perto o momento de abraçar alguém de forma sentida, dar
um aperto de mão caloroso, sorrir apenas… ou olhar nos olhos quem
esteja a pensar em outra coisa menos na minha morte e assim me
despedir, e deste modo seguir em diante.
Lis
é o nome pelo qual sempre me conheceram. Não sei, nunca
investiguei, se são três iniciais, ou se é um nome de direito. Lis
pode derivar de Lisa, como pode resultar do esquecimento do “u”
em Luís, ou servir de diminutivo a Lisboa, Lisandro, Felisberto.
Depende das sílabas que se queira eliminar. É difícil perceber se
se trata de uma palavra feminina ou masculina, mas é justo que me
chamem assim, porque sempre assumi a minha ambiguidade sexual. Nunca
me senti completamente homem nem completamente mulher. E se decidi
contar tudo nestas páginas foi para tentar saber quem sou.
Agora,
entretenho-me com as palavras que se encarregarão de nada deixar por
dizer. Tenho que obedecer a uma organização, seguir uma linha, como
um fio de água que desce a encosta de uma montanha. Por mais voltas
que me veja na obrigação de dar, deverei manter-me fiel à
realidade.
Resta-me
pouco cabelo. Hoje de manhã, quando me vi ao espelho, parecia ter
apenas orelhas sobressaindo por entre farripas compridas e longas,
que nunca me atrevi a cortar. O rosto que vi reflectido era uma
sombra oval, com uma fenda na parte da boca. Tudo vai desaparecendo
aos poucos, sem que, porém, a juventude deixe de alimentar em mim a
sua imagem. A juventude e todas as outras idades de que me fui
fazendo ao longo dos anos. Tive cabelo curto, cabelo comprido, liso e
encaracolado, de todos os feitios e cores, até ficar apenas com esta
meia dúzia de fios escorrendo sobre a face.
Desde
jovem, sempre disseram de mim muita coisa: que era instável, que não
sabia o que queria, que nunca havia de acertar com nada. Procurei
sempre não me deixar influenciar pelo que constava. Fui reagindo,
corrigindo, trilhando o meu caminho.
Hoje,
estou só com as minhas ideias, mas avanço na companhia de todos os
que deram intensidade e significado aos meus dias. Apesar de saber
que já pouco tempo me sobra de vida, sinto uma inquietação
miudinha que me devora. Qualquer coisa que vem de trás, para me
atormentar. Não devia ser assim, mas é. A tranquilidade do fim não
deixa de ter os seus sobressaltos, nem que seja porque nunca sabemos
exactamente como passaremos o testemunho, a não ser no momento
preciso em que o fazemos, altura em que não se deve excluir a
hipótese de um percalço.
Há
uma aflição ligeira que toma conta de mim e que não consigo
identificar com rigor. Vivo com a impressão de ter deixado por fazer
alguma coisa há dezenas de anos atrás, alguma coisa que devo
realizar antes que seja tarde demais, como se o passado fosse agora,
aqui, e não tenho dúvidas de que o é. Pode ser um beijo que ficou
por dar em alguém que conheci de fugida, uma lágrima não
derramada, uma conversa omitida, um voltar de costas indevido.
Divago
com os olhos pelo quarto, com uma ligeira inquietação, em busca de
algo que não encontro, embora não chegue a procurar o que quer que
seja. Tenho um animal enjaulado no peito. Sei que não devo
preocupar-me, mas gosto de me preocupar. Quando não me preocupo, as
coisas passam a fazer sentido, e eu ainda quero “não perceber”,
ainda quero ter alguns momentos – por breves que sejam – de
confronto com o desconhecido. Nem que seja a incógnita de saber quem
dará continuidade à minha estafeta.
Subitamente,
sinto como se tivesse companhia em casa, ainda que não saiba, por
ora, as consequências dessa impressão. Ignoro quem possa estar por
aí rente aos móveis, papéis, roupa encardida, louça por lavar.
São sombras, ou é como se fossem; são rumores que me envolvem e
perseguem (sempre perseguirão); são seres indistintos e informes,
que acabei por aceitar ao longo dos anos.
É,
naturalmente, uma ilusão. Mas é essa ilusão que me dá a noção
de haver gente à minha volta; gente da minha criação, da minha
lembrança; gente de outras eternidades, cujos ecos se mantêm.
Falta-me
saber quem são, quantos somam, o que pretendem. Falta-me saber tanta
coisa. Desconheço até que ponto serei capaz de entrar nessas vidas
e se essas pessoas conseguirão entrar na minha.
Enquanto
ignoro o que me espera, leio. Olho para o relógio: a ambulância já
devia ter chegado. A demora, todavia, acaba por me convir. Os meus
dedos cansaram-se de andar por cima do lençol.
Sento-me
na cama e ponho-me a ler, até me doer o corpo. Perco-me em páginas
de livros que fui acumulando no tempo. Depois, apetece-me dormir, mas
irrito-me, enervo-me. Não quero perder um minuto. Começo a fazer
contas ao tempo de vida que me resta. Podem ser anos, meses, semanas…
O
grande desafio que enfrento é o de dominar a aprazível ameaça do
fim, que não é fim, antes passagem para o outro. Não me compete
evitar esse fim, mas dominá-lo, controlá-lo, ajeitá-lo, tentar
conformá-lo ao meu ritmo, para que o testemunho seja passado sem
sobressaltos de última hora.
Com
o andar dos anos, perdi o interesse por quase tudo. Só a leitura
resiste. É um prazer que me vem das entranhas. Uma força imparável.
Os livros, a arte, são uma forma de eternidade, um testemunho que
passa de mão em mão e que nos prolonga nos outros.
À
medida que os dias vão sendo em menor número, sinto maior segurança
interior, embora tenha a certeza de que a minha capacidade física
será cada vez mais reduzida.
Tenho
consciência de que as horas se irão tornando profundas, cavernosas,
mas inquieto-me com o que me farão descobrir, ou não. Pressinto que
se aproxima qualquer coisa, pressinto que se aproxima alguém. Poderá
ser a vizinha de baixo, com um rebate de consciência; ou Rute, com
um pressentimento sobre o meu estado de saúde. Ou alguém que me
visita pela primeira vez.
Apuro
o ouvido. Os passos continuam nas escadas em direcção ao piso de
cima. Por vezes, é como se eu visse coisas para lá das paredes do
quarto. E tenho medo.
Vejo-me
quando tinha trinta anos, quando tinha quarenta… cinquenta. Tenho
pavor do cerco que se aperta à minha volta. Quando já não o
suporto, ou quando penso que ele me poderá conduzir à loucura,
volto a pegar num livro, no primeiro livro que me vem à mão. Ou
ponho-me a imitar carros e ambulâncias acelerando sobre os declives
formados pela roupa da cama.
Foi
assim que sempre me salvei. Aprendi a fazer que tudo aconteça de
acordo com as forças do além, que são as minhas forças. Deixo-me
levar e enfrento a eternidade que encontro nos livros dos outros,
como se a morte já tivesse chegado. É uma outra forma de recomeçar.
Em qualquer fim de tempo, em qualquer princípio de lugar.
3
Agora
vem a propósito Raimundo, não porque o que tenho a dizer dele se
relacione com o que vinha escrevendo, mas por a sua têmpera ser
pouco ruidosa, pouco flamejante, e como tal se adequar mais ao tom do
momento. A qualquer instante, pode chegar a ambulância e eu ter de
interromper o que tiver em mãos. Neste caso, não quero perder nada
de relevante. Se estiver a escrever sobre Raimundo, logo que regresse
do hospital não terei dificuldade em voltar ao texto.
Raimundo
viveu emigrado durante anos. Voltou rico, mas voltou outro homem.
Voltou de olhar baço, reduzido ao pó do silêncio, como se ferido
por qualquer coisa que o tivesse magoado irremediavelmente.
Quando
fui visitá-lo a casa, ao fim de mais de duas décadas, quase não me
ligou. Foi a primeira grande diferença que notei nele.
Cumprimentou-me vagamente e dirigiu-se à cozinha para preparar uma
sandes que seria o seu jantar. Raimundo comia pouco, o menos
possível. Era a sua forma de poupar dinheiro.
Estranhei
o seu comportamento. A nossa ligação vinha de há muito e apesar de
as nossas idades distarem mais de duas décadas sempre nos havíamos
entendido. Por isso, aquele seu cumprimento frio e distante
impressionou-me e magoou-me. Mas não o deixei transparecer.
Sentei-me
à mesa com ele e procurei afastar as dúvidas que me assaltavam
sobre a oportunidade da minha presença. Para não o afligir com
estimativas de preços do pão, da manteiga e afins, fiz-lhe saber
que já tinha comido e deixei-me estar, mais por dever de
circunstância do que por prazer.
Raimundo
deu por finda a sua emigração quando já contava mais de cinquenta
anos e numa altura em que eu já dobrara a casa dos setenta, sendo
provável que a nossa diferença de idades tivesse então um peso que
antes não tinha. Além do mais, ele passara a contar com o
estrangeiro no seu currículo, uma experiência que eu nunca vivera.
Raimundo
tem um rosto familiar, mesmo para quem não o conhece. É um rosto
vulgar, parecido a milhões de outros. Um rosto sem traços
especialmente distintivos, sem nobreza, sem personalidade vincada. Um
rosto perfeito para fazer parte de uma multidão, de uma massa de
gente num filme que a história não recordará.
Naquele
dia em que tive a certeza de que tudo tinha mudado entre nós,
fiquei-me a vê-lo arrastar os pés, enquanto se deslocava de um lado
para o outro (um hábito que lhe vinha de criança), abrindo armários
e gavetas, pausadamente, como se contabilizasse o gasto de energia
que os seus músculos despendiam em cada movimento. No fundo, porém,
percebia-se que aquela era a sua forma de se relacionar com o vazio
que o preenchia.
Olhava-se
para ele e tinha-se a certeza de que algo o modificara, embora, no
fundo, não deixasse de ser o mesmo. Na aparência, estava apenas
mais curvado e perro, magro e de cabelo grisalho. O seu rosto
mantinha a falta de brilho e a monotonia da infância. Os olhos é
que se tinham mesmo escapado para qualquer sítio que eu não
imaginava.
Enquanto
andava de um lado para o outro, sempre arrastando os pés, Raimundo
observava-me com um ligeiro sorriso trocista, parecendo que tinha
esquecido as próprias palavras.
A
sua frieza era constrangedora, sobretudo para mim, que sempre nutrira
por ele um afecto particular. Senti-me profundamente só.
Raimundo
nunca fora de comer muito. Uma sandes e um café bastavam-lhe para a
última refeição do dia. A sua estrutura física não exigia mais.
Em pequeno, o pai fartava-se de lhe ralhar, mas não conseguia
abrir-lhe o apetite.
“Hás-de
morrer tísico”, dizia-lhe com um desespero mal contido, perante a
indiferença do filho. “Quem te vir até há-de pensar que não te
dou de comer!”
Em
casa dos amigos, acontecia o mesmo. Insistiam para que ele comesse,
mas deparavam-se com recusas sistemáticas da sua parte, ao ponto de
parecer que Raimundo desdenhava a comida alheia por recear que
estivesse envenenada. Passaram a detestá-lo, por isso.
O
que me intrigava no reencontro com Raimundo após tantos anos de
separação era verificar que ele não aparentava qualquer
necessidade de contar alguma coisa, nem que se limitasse a perguntar
pela minha saúde. Se fosse ele a escrever este livro, tenho a
certeza de que dificilmente encontraria material para encher uma
página.
Raimundo
mantinha-se sentado, comendo em silêncio. Sorvia o café e pensava,
ia pensando. Levava a sandes à boca, compassadamente, cerebralmente,
como se reflectisse com as mãos, com os dentes. Tossia e olhava em
volta na direcção dos armários, do frigorífico, do fogão, sem
deter a vista em sombra alguma. A seu lado, eu só não me sentia uma
árvore na paisagem porque o conhecia desde a infância. E adivinhava
o que estava por detrás dos seus silêncios. Só podia adivinhar.
Quanto menos ele falava comigo, de resto, melhor eu o conhecia,
melhor destrinçava os meandros da sua sensibilidade.
Terminada
a refeição, Raimundo permaneceu imóvel, com os cotovelos apoiados
na mesa. O seu rosto era quase inexpressivo, o que me facilitava a
tarefa de lhe desenhar histórias em cima.
Ele
habituara-se a ocupar os serões dando uma volta a pé pelas
redondezas. Era uma forma de desentorpecer as pernas e de não gastar
gasolina. Raimundo não desgostava de arrastar os pés. Os joelhos
podiam fraquejar-lhe uma vez ou outra, mas isso não justificava a
maneira como se deslocava. Dava a impressão de que andava daquela
maneira preguiçosa só para ter presente as limitações da sua
condição terrena.
Com
o ar de ser completamente dono da sua vida, a sua forma de caminhar
dava-lhe a noção da existência dos outros. Os outros começavam no
exacto momento em que as pernas lhe soçobravam. Nos breves instantes
em que os seus passos perdiam a ligeireza dos tempos de juventude,
apercebia-se da existência de mais gente à sua volta.
Não
era óbvia a relação entre uma coisa e outra, mas tudo indicava que
era isso que lhe acontecia. A consciência da sua vulnerabilidade
abria-lhe os olhos para o que o rodeava, para a sobrevivência dos
seres na teia do quotidiano.
Uns
meses após ter regressado do estrangeiro, Raimundo conheceu Estela,
uma vizinha, com quem passou a encontrar-se todos os domingos à
tarde. Passeavam pelo jardim, de mão dada, quase sempre em silêncio,
exceptuando nas ocasiões em que o arrastamento dos pés era o seu
único motivo de conversa. Quando se via obrigado a quebrar a mudez,
aproveitava para observar, ao mesmo tempo, a reacção dela:
“Tenho
andado a arrastar os pés…”, dizia, simulando apreciar as copas
das árvores.
Ela
aconselhava-o a consultar o médico, mas ele não se deixava iludir.
Sabia que a sugestão dela não passava de uma formalidade. Porque,
no fundo, Estela tinha plena consciência de que Raimundo nunca se
atreveria a entrar num consultório médico com o argumento de que
arrastava os pés. Sentir-se-ia ridículo. E barafustaria com o preço
da consulta, dizendo que o médico só pretendia apropriar-se do seu
dinheiro.
Estela
havia de saber que Raimundo não deixaria de fazer contas ao
chocolate que lhe comprava todos os domingos à tarde quando
passeavam pelo jardim e que somaria o preço da guloseima ao da
consulta médica, concluindo no íntimo que, se a despesa com o
chocolate era obrigatória… a despesa com a consulta era
incomportável.
Por
vezes, Estela tentava ir ao encontro do sentimento de Raimundo e
recusava a oferta do chocolate, argumentando que aquele dinheiro
poderia servir para outra necessidade, mas Raimundo não transigia.
Aquela era a sua única concessão às trivialidades do dia a dia. O
chocolate que Raimundo oferecia a Estela era a extravagância que
admitia a si próprio durante toda uma semana, única prova de
afeição que tinha para com a mulher com quem convivia regularmente.
Os
passeios de Estela e Raimundo prolongaram-se por anos, sem qualquer
aparente evolução. Nunca casaram, nem alguma vez falaram dessa
possibilidade.
A
partir de determinada altura, ambos concluíram que já era tarde
para o fazerem. Embora não o assumisse, Raimundo considerava que o
casamento poria em risco a sua liberdade, além de ser uma despesa
evitável. Atrás do casamento viriam os filhos e ele não estava
disposto a suportar os gastos da sua educação.
Certa
vez, ao encontrarmo-nos casualmente na esquina de uma rua, Raimundo
deteve-me pelo braço e puxou-me para junto de um prédio, com um à
vontade a que eu já me desabituara, para me dizer:
“Já
fizeste as contas ao que se gasta para educar um filho durante vinte
anos?”
Numa
primeira reacção, nem tive a certeza de ter compreendido o alcance
das suas palavras. Mas ele repetiu exactamente o que eu não tinha
certeza de ter ouvido.
Fiquei
sem resposta, embora não me tivesse atrevido a contrariá-lo, porque
li nos seus olhos que ele estava disposto a continuar a discussão, o
que eu estava longe de poder suportar.
Daquela
vez, por isso, fui eu que me esquivei, dando a desculpa de que tinha
consulta marcada no dentista. Havia qualquer coisa que me afastava de
Raimundo naquele momento, qualquer coisa que eu não dominava, que ia
para além da minha compreensão imediata.
Vim
para casa a somar as despesas de educação dos primeiros vinte anos
de vida de um ser humano. Inconscientemente, distraidamente, pus-me a
fazer contas. O resultado da operação era astronómico. Mas o
dinheiro, para mim, não tinha importância, enquanto, para Raimundo,
significava tudo. Bastante mais do que um filho.
No
preciso instante em que Raimundo me perguntou se eu já tinha feito
as contas ao custo da educação de um filho, fiquei com a nítida
sensação de lhe ter atravessado a alma. Por isso senti necessidade
de o evitar naquele dia.
O
silêncio que geralmente imperava nos nossos encontros era uma forma
de Raimundo poupar palavras. E, para ele, poupar palavras era tão
decisivo como poupar dinheiro.
Raimundo
fazia contas a tudo, tostão a tostão, sem qualquer cedência. Por
isso (segundo ele próprio me confidenciou certa noite, quando eu me
preparava para sair, ao fim de duas horas em que nenhum de nós havia
proferido qualquer palavra), nunca prometeu o que quer que fosse a
Estela. Nem sequer tentou alguma vez seduzi-la. Limitava-se a passear
com ela aos domingos à tarde e a oferecer-lhe um chocolate.
Estela
chegou a dizer-me que Raimundo deixara de gostar de chocolates só
para não ter mais uma despesa semanal consigo mesmo. A Raimundo,
bastava o chocolate que comprava para ela. Às vezes, para tentar
manter conversa, Estela oferecia-lhe uma parte do seu chocolate, mas
ele recusava, com receio de não resistir a comprar um inteiro só
para ele.
Estela
e Raimundo eram de tal forma solitários que não só acabaram por
prescindir de todas as suas amizades como chegaram a um ponto em que
pouco ou nada tinham para dizer um ao outro. Quanto mais tempo ela
demorasse a comer o seu chocolate, tanto melhor para ele. Ela
prolongava o prazer de cada pedaço que se lhe derretia na boca
porque sabia que só teria oportunidade de saborear outro no domingo
seguinte. Além de que esta também era uma forma de não ter de
arranjar motivo de conversa.
Logo
que terminava o chocolate, Estela deixava-se ficar silenciosa,
digerindo os restos que lhe adoçavam os intervalos dos dentes,
enquanto notava em Raimundo um profundo respeito por todos os seus
movimentos faciais até ao último resquício de doçura.
Havia
momentos em que Estela tinha vontade de dar a mão a Raimundo, mas
nunca o fizera para que ele não pensasse que ela alimentava a
esperança de que o seu relacionamento, um dia, se tornasse mais
íntimo.
Estela
tinha a impressão de que Raimundo não gostava das mãos dela, por
os seus dedos não serem finos nem longos. Ele referira uma vez que
apreciava especialmente mãos femininas com dedos finos e longos e
ela registara esse pormenor. Em casa, pusera-se a mirar as mãos e o
comprimento dos dedos e tivera que concluir que estavam muito longe
do padrão eleito por ele.
Por
seu lado, Estela tinha uma especial predilecção pelas mãos de
Raimundo. Eram grandes e fortes. Faziam-na sentir-se protegida. Mas
tinha a certeza de que nunca as teria para ela. Nunca teria as mãos
dele nem jamais o teria a ele.
Se
continuavam a sair juntos aos domingos à tarde (ele com mais de
sessenta anos de idade, ela à beira dos cinquenta), era por simples
hábito. Durante os primeiros tempos, ela chegara a alimentar a
esperança de que um dia viriam a casar. As pessoas comentavam o seu
relacionamento como se se tratasse de um namoro e algumas chegavam a
perguntar-lhe por datas e projectos. Ela sorria, agradecia a atenção,
mas adiava respostas concretas. Fizera bem em ser cautelosa. Porque
Raimundo nunca dera o passo em frente. Em anos e anos de convívio,
nunca a beijara uma vez, sequer. Por fim, toda a gente percebera que
aquele namoro se resumia a um passeio semanal pelo jardim. E olhavam
para ela como quem olha para uma órfã.
Raimundo
fora educado de forma severa. Em criança, o pai poucas vezes o
levara a passear e quando o fizera nem uma guloseima lhe comprava,
uma postura de que ele veio a vingar-se anos mais tarde com o
chocolate que oferecia a Estela. Raimundo não tinha autorização de
brincar com outros miúdos. Se fazia alguma pergunta ou pedia
qualquer coisa, a resposta do progenitor era sempre a mesma:
“Não
digas asneiras!”
Raimundo
preferia estar com a mãe. Falavam muito um com o outro, divertiam-se
imenso. Mas perdeu-a, aos seis anos de idade. Quando regressavam das
compras, de mãos dadas, a conversar descontraidamente, um carro
despistou-se, colhendo a mãe no passeio e arrastando-a por uma
distância de metros que pareceram quilómetros.
Nos
primeiros momentos, Raimundo não percebeu o que acontecera. Pensou
que a mãe lhe tivesse largado a mão para cumprimentar alguém que
passara, pôs a hipótese de ela ter sido levada por um pássaro,
imaginou que se tivesse esquecido de alguma coisa e voltado à loja
de onde tinham acabado de sair.
Pôs-se
a olhar em volta. Viu muita gente a correr na direcção de um
veículo que batera na parede diversos metros à sua frente e pensou
que mãe podia ter ido em socorro de alguma vítima.
Teve
medo de se aproximar da confusão. Sentiu os cabelos curtos
enregelados sob uma ventania agreste. Perdera subitamente a mão a
que se agarrava. Não sabia onde estava, não conhecia ninguém. Deu
dois passos, mas acabou por recuar. Viu a chegada de duas ambulâncias
e pensou que dentro de momentos a mãe regressaria para junto dele.
Esperou, mas a mãe não veio. Tinha sido levada por umas asas negras
à sombra das quais a sua cabeça se diluía.
Quando
Raimundo já corria o risco de definhar sob o peso da angústia que o
fizera perder o rumo, uma mulher reparou nele e tentou ajudá-lo, mas
Raimundo evitou-a, indo colar-se à porta da casa mais próxima, como
se ali tivesse vivido desde sempre.
A
polícia chegou e levou-o sem grandes protestos. Raimundo nunca
falou, nunca se queixou, nem quando lhe foram comprar rebuçados e um
dos guardas o sentou no colo prometendo comprar-lhe um automóvel a
pilhas.
Ao
fim de quase duas horas, o pai apareceu na esquadra para o levar e
Raimundo limitou-se a acompanhá-lo. Nem a caminho de casa se atreveu
a perguntar pela mãe. Enquanto observava as mãos grossas do pai
sobre o volante, ia pensando: “Não digas asneiras…, não digas
asneiras!”
4
A
beleza foi o grande tormento da vida de Rute, foi o terrível
acontecimento que condicionou todas as suas decisões. Chocantemente
bonita, Rute nunca acreditou nos dotes com que a natureza a dotou.
Pensou sempre o contrário, sobretudo quando alguém lhe dizia que
era bela. Especialmente nessas alturas, pensava que a
ridicularizavam.
O
seu tormento tinha raízes na infância e na adolescência, quando a
sua aparência não correspondia aos padrões de elegância e
atracção geralmente aceites. Era magra, enfezada, alta, pernuda,
arrapazada, desprovida de formas. Não tinha por onde se lhe pegasse.
Com
o decorrer dos anos e com a rejeição que provocava junto dos
rapazes, Rute convenceu-se de que o futuro não lhe reservaria
grandes hipóteses. Interiorizou tão desfavoravelmente a sua
fisionomia que, um dia, ao atingir os dezoito anos, já mulher
perfeita, de feições correctas e delicadas, corpo imaculado, achou
que se tinha tornado mais feia do que nunca, achou que perdera as
características da adolescência a que se tinha acostumado e
considerou mesmo uma afronta a sua eleição como rainha dos caloiros
pelos colegas da universidade.
Passou-lhe
tudo pela cabeça, menos que aquela tivesse sido uma eleição
honesta e transparente. Imaginou manobras obscuras dos colegas para a
amesquinharem, supôs que tivesse sido uma das muitas brincadeiras de
mau gosto com que os alunos mais velhos costumavam divertir-se à
custa dos caloiros, pôs a hipótese de ter havido um engano na
contagem dos votos, tudo lhe veio à mente num torvelinho infindável
de confusão e desespero.
Os
colegas rodeavam-na, felicitando-a pela eleição, mas Rute só via
escárnio e maledicência naquele comportamento efusivo.
“Estou
a viver um pesadelo”, dizia para si própria. “Isto não pode ser
verdade”.
Para
Rute, não era possível ser bonita quando se cresce feia e
desprezível. Ela não podia ter-se transformado de um instante para
o outro. Não fora objecto de qualquer metamorfose. Por isso, tudo
indicava que estavam a escarnecer dela, ou, então, que a sua eleição
fora um simples erro.
Naquela
mesma noite, depois de regressar a casa, correu para o espelho e
confirmou que a sua imagem era detestável e repelente. Tinha olhos
quase amarelos, o que sempre a diferenciara de toda a gente, sempre a
estigmatizara, sempre a deprimira. Nunca em momento algum da sua vida
ouvira tecer elogios a uns olhos quase amarelos. O cabelo escuro,
normalíssimo não tinha qualquer motivo de atracção. O nariz
parecia talhado à faca, os lábios grossos e disformes, a fronte
altiva e o queixo firme sempre lhe haviam dado um ar pouco feminino.
Pensou
telefonar à mãe, para desabafar sobre o que lhe acontecera na
universidade, mas acabou por desistir, para não aumentar o caos
interior em que mergulhara. Rute estava habituada a que ninguém lhe
ligasse, ninguém realçasse as suas qualidades, ninguém se
importasse com o que fazia ou não fazia. Não a encaravam como
rapaz, que o não era, mas também não lhe dispensavam as atenções
habitualmente dadas às raparigas, porque não parecia ser uma delas.
Rute
fora sempre vista com indiferença, até pelos pais, que na sua
adolescência tudo fizeram para evitar que ela viesse a sentir-se
ainda mais horrível do que era. Se dissessem que era bela, estariam
a mentir. Se dissessem que era feia, estariam a torturá-la com a
verdade. Por isso, a indiferença terá sido o melhor caminho que
encontraram para lidar com aquele caso.
Os
dois irmãos de Rute, ainda por cima, eram tão bonitos e atraentes
que as miúdas da vizinhança nunca se cansavam de lhes bater à
porta, convidando-os para irem ao cinema ou para darem um passeio.
Por vezes, ela pensava se a natureza não a teria trocado de berço
com os irmãos. Parecia mesmo que Rute era uma rapariga com um corpo
errado, com um corpo de homem. Quantas vezes desejou ter nascido
rapaz.
Rute
cresceu com a plena convicção de que algo correra mal durante o
período que passara no ventre da mãe. Mas aceitou esse facto. E
nunca admitiu discuti-lo.
No
dia em que foi eleita rainha dos caloiros da sua universidade chorou
inconsolavelmente no ombro da única amiga que tinha.
“Não
podes reagir desta maneira”, dizia-lhe Berta, que era bonita, mas
estava longe de chegar aos calcanhares de Rute. “Aceita a eleição
como algo de bom para a tua vida. Por que não hás-de perceber que
és atraente para os rapazes? Esquece o passado. Hoje, és uma mulher
diferente. Assume-te como és. A partir de agora, terás mais
pretendentes do que nunca.”
“Não
te lembras de que me chegaram a atirar pedras, dizendo que eu tinha
olhos de boi? Não me admiraria que alguns deles, hoje, tivessem
votado em mim. Como queres que esqueça? Como queres que acredite?
Como queres que reaja? Julgas que sou parva e que não conheço as
pessoas que me rodeiam?”
“Estás
a ser tola”, respondeu-lhe Berta. “Foste eleita rainha dos
caloiros e pões-te a chorar! É ridículo.”
“Não
faz sentido!”, argumentou Rute. “Sei que estão a gozar comigo!
Se sempre fui feia, não há motivos para que agora me considerem
bonita. Esta é a maior humilhação que me podem fazer! Parva seria
eu se me deixasse levar, se me pusesse agora a rir e saltar de
felicidade. Não me poderiam ter feito coisa pior. Olha para mim,
olha para as minhas pernas magras, para as minhas mãos esqueléticas,
para os meus lábios grossos. Repara nestes meus olhos amarelos! Por
favor, não tentes convencer-me de uma coisa que só pode ser
mentira. Se és minha amiga, não te ponhas do lado daqueles que me
amesquinham. Prefiro continuar a ser feia como sempre fui.”
“Estás
cega! O trauma da infância impede-te de reconhecer que, hoje, és
uma mulher lindíssima”, insistia a amiga, consolando-a e
abraçando-a. “Deixa-te de tolices. Vamos dar uma volta. Deves
convencer-te de que as coisas mudam. Há pessoas feias que se tornam
bonitas e pessoas bonitas que se tornam horríveis. Tu pertences às
primeiras. Foste eleita a mais bela, mete isto na cabeça. Percebo
que te custe, mas faz um esforço.”
“Os
rapazes nunca quiseram nada comigo. Quando aparecia em algum lado,
até fugiam, como se eu cheirasse mal ou tivesse alguma doença
contagiosa.”
Mas
Berta replicava que isso acontecera noutro tempo, que hoje ela se
tornara uma mulher irresistível para qualquer homem.
Rute
riu desproporcionadamente, enquanto enxugava as lágrimas, mas sem
deixar de chorar, como se as lágrimas fossem a consequência lógica
das suas gargalhadas sem propósito.
“Acredita
que este é o dia mais infeliz da minha vida. Tenho a certeza de que
me elegeram para me fazer sofrer mais do que tudo o que já sofri. Um
dia que conquiste alguma coisa hão-de sempre dizer que o consegui
por ser bonita, por ter ido para a cama com este e aquele. Não está
certo. Se não me candidatei a nada não devia ter sido eleita.
Agora, serei sempre suspeita. Nunca mais terei um momento de sossego.
Já imaginaste o que é seres perseguida por homens que não conheces
de parte alguma e que não param de te provocar e mandar bocas, ainda
por cima sabendo que não estão a ser sinceros?!”
“Estás
a exagerar…”, retorquia a amiga.
Mas
Rute não se conformava. Sentia-se mais incompreendida do que nunca.
Sabia que a beleza era um sonho de todas as mulheres, mas também
achava que essa era uma circunstância que se podia tornar uma
verdadeira tortura. Por isso, nunca recorrera à ajuda de
maquilhagens, pinturas e vestes provocantes. Não fazia sentido que
uma jovem feia passasse, de repente, a ser bonita, só porque a moda
tinha alterado os cânones de avaliação da beleza.
Estava
disposta a recusar o cargo de rainha dos caloiros. No dia seguinte,
procuraria o responsável pela associação de estudantes e
informá-lo-ia da sua indisponibilidade para aceitar o resultado da
eleição. Escolhessem outra. Ela não estava na disposição de se
deixar levar por semelhante paródia. Considerarem-na bonita era a
pior ofensa que lhe podiam fazer. Não queria alimentar falsas
expectativas sobre ela mesma. Naturalmente, e quando chegasse a
altura, feia que era, feia que sempre seria, havia de escolher um
companheiro entre os seus pretendentes e levaria uma vida normal, sem
sobressaltos. Nascera feia e feia haveria de morrer.
5
Parecia
impossível que a ambulância ainda não tivesse chegado. Já tinham
passado quarenta e cinco minutos sobre o meu telefonema. Se eu
estivesse a morrer, bem poderiam mandar de vez o carro funerário.
A
indisposição que eu sentira já se tinha praticamente extinguido,
mas eu recebera instruções para, ao menor aviso, recorrer ao
hospital.
“Na
sua idade, o mais pequeno sintoma pode ser um aviso…”, dissera-me
um médico da última vez que eu recorrera aos seus serviços e a
própria Rute não se cansava de me aconselhar e avisar sobre
indícios.
Voltei
a ligar-lhe, mas ela continuava a não atender. Não havia sinais de
Rute nem da ambulância.
Eu
cansara-me de brincar aos automóveis que aceleravam por entre as
dobras do lençol. Até me doíam os lábios de tanto roncar, travar,
guinchar, apitar, avançar, travar de novo. Usei os dedos da mão
esquerda, depois os da direita, imitei ambulâncias, camiões,
veículos desportivos, até motorizadas com um dedo deitado que se
inclinava nas curvas mais apertadas. Lembrei-me dos meus tempos de
criança e senti a distância dos anos, apesar da semelhança que
havia na brincadeira dos dedos que imitavam automóveis correndo
sobre a cama. Na infância, quando eu adoecia, entretinha-me
igualmente com bonecas que escondia sob as dobras do lençol e dos
cobertores. Meu pai não gostava de me ver brincar com bonecas. À
noite, quando vinha saber como eu estava de saúde e dar-me um beijo,
sugeria que eu me divertisse com livros, cadernos e lápis de cor,
que ele se encarregava de espalhar sobre a minha cama, como se estes
tivessem o condão de me baixar a temperatura.
A
prolongada ausência de Rute intrigava-me. Não imaginava os motivos
que podiam explicar o seu afastamento por tantos dias. Sempre nos
déramos bem e mesmo quando discordávamos aceitávamos que essa era
a regra do nosso convívio.
Quando
não a tinha comigo, ocupava muitas vezes o espírito com a história
da sua vida, a lembrança de tudo o que ela me fora contando.
Algum
tempo após a sua eleição para rainha dos caloiros, uma decisão
que foi mantida, apesar dos protestos de Rute, e depois de muito
reflectir sobre se era realmente bela, ou não, e sobre quais as
consequências de uma ou outra condição, Rute deixou de sofrer por
ser bonita. Ou melhor, passou a ostentar um sorriso permanente. Era
um sorriso de dor, mas ela achava que ninguém se apercebia disso.
Havia
ocasiões em que sorria tanto que chegava a ser difícil suportar a
sua expressão facial por saltar à vista que era a dor, e não o
prazer, que a levava a ter semelhante reacção. Rute ria tanto e tão
permanentemente que chegava a fazê-lo em algumas circunstâncias
dramáticas ou mesmo junto de muitos leitos de morte, com o argumento
de que era preferível as pessoas partirem realizadas e felizes em
vez de tristes e desesperadas. Rute habituou-se de tal forma a sorrir
que passou a fazê-lo sem saber a que propósito. O sorriso ficou-lhe
como uma espécie de imagem de marca, que passou a constituir a sua
linguagem natural, a prova da sua tragédia interior. Rute tinha
encontrado um caminho no mundo, o de sorrir.
E
não arredaria pé do seu destino, mesmo sabendo que era quase
impossível não ver que a alegria com que se apresentava em todos os
sítios e momentos era o sinal fulminante da sua grande mágoa. O seu
sorriso, porém, era de tal maneira suave, etéreo, espontâneo,
quase sobrenatural, que ninguém ousava pô-lo em causa. Rute sorria
tão do fundo da alma que era impossível alguém não se sentir
cativado pelo magnetismo que exalava da sua face. Provavelmente,
sorria daquela forma para compensar a fealdade que julgava ter. Era
como se dissesse: “sou feia, mas sorrio”. A sua expressão era de
tal maneira poderosa que, aos olhos de muitos, fazia dela a mais bela
mulher do mundo.
Ao
longo dos anos, Rute relacionou-se com vários homens, mas eles
abandonavam-na, ou então ela despachava-os. Muitos desistiram de a
conquistar por a considerarem demasiado rebelde e bonita. Para Rute,
no entanto, se desistiam dela, isso queria dizer que a sua beleza era
um logro. Se não o fosse, persistiriam em conquistá-la.
Mas
ela também desistiu de muitos por não acreditar neles quando
afirmavam que a sua beleza era inigualável. Rute não admitia que a
quisessem apenas na cama, não admitia que o mundo se resumisse a um
vale de lençóis. Por isso, também se sentia no direito de tratar
os homens como achava justo.
Quando
os recebia no apartamento que habitava sozinha, oferecia-lhes café,
chá, cerveja, ou o que fosse, e passavam o serão a conversar na
cozinha, quase sempre, pela noite dentro. Se saíam a passear,
durante o dia, ela permitia-lhes um ligeiro toque na mão, caso
fossem a pé; ou na perna, caso fossem de carro. Não mais do que
isso. Se eles procuravam ser mais afoitos, ela ameaçava desatar aos
gritos ou sair do carro em andamento. E nem nessas ocasiões deixava
de sorrir. Mesmo quando se deixava contrariar por alguma situação,
Rute sorria cheia de luz.
Todavia,
eles não desistiam de querer mais, não hesitavam em visitar Rute,
convictos de que, tarde ou cedo, conseguiriam deitar-se com ela. Por
isso, punham-se de conversa, imaginando que a sua resistência lhes
aumentaria as possibilidades de sedução. Ao ouvi-los falar, Rute
ria, ria muito, ria sempre… demonstrando grande interesse e
envolvimento nos assuntos. Os seus olhos chispavam e todo o seu corpo
vibrava durante as longas conversas com os homens que a pretendiam
seduzir.
Rute
não tinha assunto de conversa preferido. Qualquer tema a
maravilhava. O que ela queria era ouvir dissertar sobre as mais
diversas matérias, desde profissões e desportos a questões
pessoais. Depois, ela também falava, falava, por tempos sem fim. O
seu prazer estava em falar e ouvir. Sabia ouvir, sabia falar. E sabia
sorrir.
Rute
contava a sua vida a qualquer pessoa, o que contribuía para dar aos
homens a ideia de que estava interessada num envolvimento íntimo.
Mas ela não tinha a mesma interpretação. Se se abria e expunha era
porque não sabia ser de outra maneira. Falava dos pais e dos irmãos,
do passado, dos amigos e de desporto, das expectativas que
alimentava, dos sonhos, dos desgostos. Quando lhe diziam que era
bonita, negava-o com veemência, lembrando quanto sofrera em criança
e na adolescência precisamente por ser feia e detestável. Rute
contava tudo, os pormenores, os vexames, as dúvidas, os projectos de
suicídio, as lágrimas que derramara, as incompreensões, os
desânimos. Nada escondia. Achava que era melhor dizer tudo, nem que
fosse para ficar a conhecer as reacções do interlocutor. Ao
ouvirem-na falar dos seus complexos e da revolta com que crescera,
muitos consideravam-na perdida. Outros sentiam aumentar a atracção
por ela.
Em
qualquer dos casos, era fácil chegar a uma altura em que as
conversas se orientavam para o sexo, um tema que ela apreciava
especialmente. Se alguma coisa a entusiasmava era conversar sobre
sexo.
Rute
adorava falar de sexo, como se pudesse experimentar nas palavras o
prazer que nunca experimentara no corpo. Mas se não o experimentara
foi porque não quisera, pois não faltava quem a desejasse na cama.
Nos
seus encontros com homens, o tema de conversa era frequentemente sem
importância, mas era mais do que certo acabar no sexo.
Eles
adoravam falar de sexo com ela pensando que acabariam por conseguir
convencê-la a praticá-lo. Mas ela não ia na conversa. Só falava
de sexo. Não dava o passo seguinte, não se atrevia a partilhar a
intimidade. Em certas alturas, até, dava a entender que possuía
alguma experiência sexual, para que o homem com quem estava não a
pensasse completamente desprovida da noção do real. Mas a verdade é
que Rute nunca tivera uma relação sexual completa.
Vivia
as conversas como se fossem verdadeiros actos sexuais, parecendo que
tinha orgasmos a seguir uns aos outros. Talvez por isso o sexo com
ela nunca passasse de palavras. Era um sexo apenas falado, mas de
qualidade, cheio de comentários, partilha de emoções, risos,
expressões de admiração, concordância, afagos na mão e na face,
piadas oportunas, cumplicidade.
“És
um amor!”, dizia ela, por vezes, de olhos brilhantes, ao homem com
quem estava, prometendo nunca esquecer aquele instante. “Adoro os
teus ombros, a tua cintura…”, uma expressão que deixava qualquer
um confundido e atrapalhado com a contagem dos minutos que faltariam
para que se concretizasse o acto por que tanto ansiava. Não muito
tempo depois, contudo, Rute esboçava um pequeno bocejo, olhava para
o relógio de forma subtil e, denotando perplexidade, dizia que não
dera pelo tempo passar:
“São
duas da manhã!”, acrescentava, sem se esquecer de recorrer a um
sorriso que denotava tolerância com as travessuras do relógio.
Não
era possível resistir ao encanto com que dominava cada momento de
conversa. A sua beleza tinha o poder mágico de tudo submeter aos
seus desígnios. Rute geria o tempo de forma subtilmente
avassaladora. Era dessa postura que parecia arrancar todo o prazer.
Até
perceber que eram nulas as hipóteses de conhecer a íntima fronteira
de Rute, a maioria dos homens demorava semanas, meses. Para eles, era
difícil entender que uma mulher aceitasse falar de sexo abertamente
e na prática rejeitasse qualquer aproximação física. Por isso,
muitos insistiam em tentar uma e outra vez, na esperança de que, um
dia, ela passasse das palavras aos actos.
Rute
acompanhava-os em tudo o que diziam, discutia pormenores e, muitas
vezes, ia ao ponto de os levar para a cama, onde a conversa podia ser
mais agradável, segundo ela própria dizia.
“Aqui
está mais quentinho…”, sublinhava, afagando a colcha sobre o
colchão, um gesto que os deixava cheios de esperança. Não poucos,
até, nessa altura, chegavam a ir à casa de banho onde aproveitavam
para fazer um telefonema a informar que naquela noite dormiriam fora.
Ao verem a ternura com que Rute os conduzia ao seu quarto, não lhes
passava pela cabeça que a madrugada não os viesse encontrar
confortavelmente instalados entre os lençóis dela.
Rute
levava-os para a cama, só que os obrigava a ficar sentados a cerca
de meio metro de distância, conversando durante tempos infindos.
Eles doidos para avançarem sobre ela e ela, firme, sem os deixar
aproximar-se. Na cama, Rute nem se despia. Nem um beijo ou um simples
apalpão consentia. Apenas estava disposta a conversar, deitada, como
se estivesse sentada na cozinha ou na sala de estar. Com todo o
decoro e pruridos.
Os
que a tentaram seduzir, despir, beijar, foram sempre implacavelmente
repelidos, por entre zangas, berros, discussões. Certa vez, ela
pontapeou um vizinho que a viera visitar e que se tornara mais
atrevido, deitando-se sobre ela na cama e metendo-lhe a mão entre os
seios. Um pontapé que o deixou estatelado no meio do quarto e o fez
regressar a casa antes que ela tivesse tempo de pedir desculpas pelo
sucedido.
Quem
chegava à cama de Rute, não admitia facilmente ser rejeitado sem
uma explicação. Mas ela achava que os homens não tinham nada que a
obrigar a fazer sexo, achava que já tinha sido muito cordial ao
convidá-los a partilhar o seu leito e então despedia-os com
naturalidade, sem remorsos, alegando que estava com sono e que no dia
seguinte o trabalho a esperava.
Eles
não percebiam. Antes de serem delicadamente mandados embora, alguns
ainda punham a hipótese de tudo aquilo não passar de uma
brincadeira, de um divertimento, de uma partida, mas quando a viam
avançar resoluta em direcção à porta de saída, compreendiam que
nada mais lhes restava senão cumprir a vontade dela.
Havia
quem, mesmo depois de rejeitado, não hesitasse em sentir-se feliz só
por ter estado na cama de Rute. Podia não ter conseguido mais do que
estar a meio metro dela, podia não ter feito nada, podia ter apenas
aspirado o seu perfume, mas considerava-se satisfeito por ter
experimentado o seu colchão. Era o colchão da mais bela mulher do
mundo! A frustração de estar tão perto dela e não ter
possibilidades de lhe tocar era tão grande que o contacto directo
com a sua cama acabava por ser compensador.
Certa
noite, um conhecido da universidade que a fora visitar (e que
prometera a si mesmo não desistir antes de consumar o acto com Rute)
sentiu-se indisposto no fim do serão e disse-lho no momento em que
se despedia, mas Rute pensou que ele estava a simular a indisposição
na esperança de ela o convidar a passar a noite em sua casa. Não
hesitou em pô-lo na rua, onde o homem desmaiou sobre o passeio,
sendo apenas socorrido de madrugada. Para Rute, quem realmente a
amasse nunca desistiria de a conquistar, por maiores que fossem as
provações e dificuldades. Ela achava que tanto maior seria o amor
quanto mais intenso fosse o sacrifício. Por isso, ao longo dos anos,
percebendo que a amizade, por vezes, era uma forma grosseira de
penetrar na intimidade alheia, fartou-se de empurrar homens pela
porta fora.
6
Apesar
da sua notável saúde, Raimundo arrastava os pés, provavelmente,
para saber como seria quando não pudesse mesmo deixar de os
arrastar, o que não deixava de ser uma estranha forma de preparação
para o fim que o esperava. Ao antecipá-lo, acabava por parecer mais
velho do que realmente era, mas, ao mesmo tempo, surpreendia porque
era mais novo do que aparentava. Era como se gostasse de apostar na
ilusão, para que não adivinhassem o que faria a seguir.
Mas
isto não era tudo. Raimundo também era capaz de arrastar os pés
para atrair a atenção de Estela. Ela seria a única pessoa capaz de
se preocupar com ele. Aconselhava-o a ir ao médico, embora sabendo
que ele nunca o aceitaria, mas a simples sugestão dela, porém, já
o fazia sentir-se melhor. Ele sabia que não precisava de ir ao
médico porque o seu arrastar de pés era um hábito diário. Se
estivesse afectado por um mal maior não teria coragem de o dizer a
Estela, para que ela não sentisse que corria o risco de o perder.
Se
Raimundo tivesse arrastado os pés no dia em que fora às compras com
a mãe, talvez ela não tivesse sido apanhada pelo carro que lhe
tirou a vida. Mas o pai não se cansava de lhe dizer para andar mais
depressa, para acelerar o passo:
“Mexe-te!
Mexe-te!”, dizia quando o acompanhava a algum sítio.
Arrastar
os pés, agora, contribuía para que Raimundo se sentisse melhor
consigo próprio. Como se tivesse que penitenciar-se por alguma
coisa. Nem que fosse apenas para contrariar as antigas ordens do pai.
Depois
do jantar, costumava passear pelo quarteirão, arrastando os pés
pelas ruas molhadas, a fim de algum larápio não reparar nele.
Fazia-o de preferência em noites de chuva, para reduzir as hipóteses
de ser notado.
De
chapéu na cabeça, curvado dentro da gabardina amarrotada,
dificilmente alguém se interessaria por ele. Nunca trazia consigo
objectos de valor (não os tinha), nem trazia dinheiro para não
correr o risco de o gastar em alguma tolice ou de lho roubarem numa
qualquer esquina mal iluminada.
Só
usava o carro para fins profissionais, em deslocações a lugares
mais distantes. A poupança de combustível era um dos seus
princípios de vida. Sempre que possível, ia a pé, apesar de saber
que isso aumentava a probabilidade de se deparar com alguém que lhe
pediria ajuda, mesmo debaixo de chuva. Geralmente, quando tal
acontecia, Raimundo prometia pensar no assunto, a ver o que poderia
arranjar. Mas o que fazia era informar-se sobre as posses do
necessitado. Se tinha propriedades, Raimundo aceitava emprestar
dinheiro, a troca de uma hipoteca. Se não tinha nada, Raimundo
alegava indisponibilidade financeira para o auxílio. Não foram
poucas as vezes em que preferiu não voltar a ver o dinheiro que
emprestara e assumir a propriedade do imóvel. Nunca emprestara um
tostão a troco de nada e não tencionava vir a fazê-lo. Se
conseguira amealhar riqueza ao longo dos anos, os outros também
podiam proceder da mesma forma. Tão importante como trabalhar era
não gastar o que se ganhava.
Raimundo
privara-se de uma quantidade de coisas, raramente entrava num
estabelecimento comercial, procurava não olhar para as montras
quando passava na rua para não ser tentado a comprar isto ou aquilo,
por isso não se sentia obrigado a ajudar quem precisava.
Também
era cada vez menor o número dos que o importunavam. Porque muita
gente acabara por se aperceber dos riscos que corria ao pedir-lhe
ajuda. Quem o conhecia respeitava-o pela sua posição, ou ria-se
dele, mas acabava por não se aproximar. Se alguém o abordava,
porém, Raimundo limitava-se a ouvir, cordialmente, como se a
conversa fosse com outro e ele estivesse ali por mero acidente. Logo
que tinha oportunidade, despedia-se e afastava-se, desaparecendo por
entre a neblina da chuva.
Sempre
que saía, à noite, durante a semana, Raimundo passeava sozinho.
Passeava com ele próprio como se fosse o cão de si mesmo. Para além
das noites chuvosas, preferia as frias, quando se via pouca gente nas
ruas. E, se saía, era apenas para não estar permanentemente em
casa. Saía para se sentir igual aos outros, que preferia não ver,
sabendo embora que a sua forma de estar no mundo em nada coincidia
com a da maioria das pessoas.
Enquanto
caminhava, procurava não pensar, tentava distrair-se, desanuviar,
mas raramente o conseguia. Vinham-lhe à cabeça números, extractos
bancários, despesas que devia reduzir, oportunidades de
investimento.
Olhava
os prédios das ruas por onde passava e tentava calcular o custo de
construção e manutenção de cada um, quantas pessoas residiriam
neles e qual o valor das rendas que os proprietários dos imóveis
receberiam. Já tinha feito os cálculos por mais de uma vez, mas
entretinha-se a verificar de novo preços de materiais, salários,
horas de trabalho, seguros, consequências financeiras de eventuais
greves. Às vezes, discordava de uma análise que ele próprio
fizera, achava uma patetice ter chegado a determinada conclusão,
ria-se sozinho de um pormenor que o levava a uma descoberta
importante.
O
nariz pingava-lhe, assoava-se, receava constipar-se ou engripar.
Acelerava o passo de regresso a casa. Sentia-se como se tivesse
falado com meio mundo, como se tivesse desabafado, como se lhe
tivesse saído um peso de cima.
Sentava-se
à mesa para programar o dia seguinte. Se previa alguma viagem de
carro, consultava o mapa para descobrir o caminho mais curto para o
sítio pretendido. Anotava os telefonemas que precisaria de fazer,
organizando-os conforme as prioridades. Tinha sempre a cabeça cheia
de planos e projectos, embora nunca chegasse a concretizar muitos
deles por considerar que implicavam despesas excessivas ou por, a
dado momento, lhe parecerem demasiado arriscados.
As
operações imobiliárias eram o seu forte. Raimundo só avançava
para um negócio depois de estudadas todas as hipóteses, mesmo as
mais remotas, e quando não lhe restavam praticamente dúvidas de que
não havia solução mais em conta.
Dizia
que sim aos interlocutores com quem negociava, manifestava sempre
interesse, se fosse necessário começava por realçar as virtudes da
propriedade, em vez dos defeitos, costumava mesmo dizer que o preço
era bastante acessível quase dando a entender que houvera
subavaliação do imóvel, mas esta era uma estratégia que apenas
durava enquanto a burocracia seguia o seu curso. Logo que se
aproximava a data da ida ao notário para a efectivação da
escritura, Raimundo começava por desnortear a outra parte,
aparentando súbito desinteresse pelo negócio, denotando hesitações,
dizendo que tinha de pensar melhor no assunto ou simplesmente não
atendendo o telefone.
Esta
era a altura em que começava a negociar realmente. Quando o vendedor
já pensava ter tudo resolvido, Raimundo inventava problemas, alegava
dificuldades financeiras, confessava-se arrependido, dizia que tinha
visto um imóvel em tudo semelhante na mesma zona por quase metade do
preço e pintado de uma cor que lhe agradava bastante mais, tudo isto
sem contudo desistir do negócio, o que levava a outra parte ao
desespero.
“As
coisas não estão fáceis…”, dizia. “Não leve a mal a minha
hesitação, mas deixe-me pensar mais uns dias...”.
Vendo
o negócio prestes a ir por água abaixo, o vendedor pensava na
hipótese de o anular, mas acabava por reconsiderar, quando se punha
a contabilizar perdas, arrelias, gastos com documentos, tempos de
espera e, sobretudo, quando se punha a pensar na inevitabilidade de
ter que recomeçar tudo do início, voltar a anunciar nos jornais,
voltar a mostrar o imóvel, voltar a discutir valores, levantando
eventualmente dúvidas ou suspeitas no mercado por ainda não o ter
conseguido vender.
Em
poucos dias de enervamento, o proprietário do imóvel concluía que
não tinha margem de manobra para fazer a venda a outro que não a
Raimundo, nem que fosse pelo facto de não lhe interessar desfazer
uma transacção que estava à beira de se concretizar. Se o
desfizesse, o mais certo era o prédio acabar por se desvalorizar, em
resultado das desconfianças que o cancelamento do negócio
provocaria. Por isso, era preferível consumar a operação com
Raimundo, nem que fosse necessário acertar com ele um novo preço.
Chegado
a este ponto, Raimundo percebia que os ventos lhe passavam a correr
de feição, mas nem assim dava mostras de recuperar o entusiasmo
pela transacção. Aproveitava a quebra anímica do outro para manter
o assunto de pé, mas insistia em lançar as mais diversas dúvidas,
chegando a fazer exigências disparatadas como a mudança de notário
ou a alteração da cor do prédio. Fazia-o só para manter a venda
sob tensão, uma vez que não tencionava ver cumpridas as suas
exigências.
Quando
a outra parte já não tinha para onde se virar, quando já não
sabia o que fazer, Raimundo reposicionava-se, voltava a mostrar
interesse pelo negócio e assim tudo se resolvia como inicialmente
fora pensado, excepto o preço do imóvel que sofrera uma descida
apreciável.
7
Não
percebo se sou homem ou mulher. Nem o meu nome, Lis, ajuda. Sempre
foi este o grande drama da minha vida. Umas vezes sinto-me homem,
outras vezes sinto-me mulher. Não encontrei o ponto de equilíbrio
entre estas duas possibilidades. Acabo por não ser nada, na prática.
Porque não me assumo como homem, nem como mulher. Andei sempre a
fugir de um lado para o outro. Sempre a fugir de mim. Quando liguei,
há pouco, para o hospital, tive dificuldades em posicionar a voz. A
dado momento, fiz voz grave, mas logo a seguir tornei-a mais aguda.
Do outro lado da linha devem ter pensado que eu devia estar com
problemas de garganta. Também procedi assim para que não me
colocassem demasiadas perguntas, o que resolvi, pondo-me a tossir
junto ao bocal do aparelho.
Sinto
atracção por mulheres e por homens, mas ser homem ou ser mulher não
é só sentir atracção pelo género oposto. Se o fosse, bastaria
satisfazer esse desejo com uns e com outros, como fiz muitas vezes.
Ser
mulher ou ser homem é uma natureza íntima, um estado de espírito,
uma forma de inteligência e sensibilidade. Não é uma questão
exterior que se resolva com alguém, conhecido ou estranho, é
matéria pessoal, profunda, decisiva, de nós para nós, que se
define ou não se define.
O
problema começa na adolescência, quando despontam as identidades
feminina e masculina. Nessa idade, dei-me com rapazes e raparigas,
procurei ser uns e ser outros, conforme as situações, os desafios,
os desejos. Comecei à deriva. Depois, acabei por não perceber o que
se passava comigo.
Acho
que foi esta a razão que me fez dedicar ao ensino. Para me tentar
compreender de fora para dentro, aumentando o meu campo de vida
através dos outros.
Não
há nada que me incomode tanto como não saber quem está dentro de
mim. É um verdadeiro inferno. É como ter o coração nas mãos do
inimigo.
Tenho
um sexo definido, um sexo exacto, um sexo normal, um sexo que
funciona, mas o órgão genital, só por si, não me parece
suficiente para definir uma personalidade. De resto, não vejo grande
diferença entre os órgãos reprodutores de uma mulher e de um
homem. Nos homens, o clítoris é apenas maior do que nas mulheres. O
sexo dos homens é todo e apenas clítoris. Por isso, eles só pensam
naquilo, no sexo. Querem sexo, sexo e apenas sexo como as mulheres
que se sentem revoltadas por terem um pénis de dimensões tão
reduzidas.
Mas
a identidade não é uma questão de dimensão, de tamanho, de
medida, muito menos de órgão sexual. A identidade é uma questão
de consciência.
Apesar
de sempre ter tido prazer com mulheres e com homens, nunca fiz uma
opção clara. Preferi sempre manter os dois géneros em mim. Mas
isto também significa que não tenho sido completamente homem, nem
completamente mulher, o que talvez explique o facto de eu nunca me
ter sentido à vontade na companhia de uns nem de outros.
Em
reuniões sociais, que há muito não frequento, sentia-me
normalmente fora do sítio. Eles impulsivos (querem resolver tudo no
momento) elas triviais (procuram adiar tudo para outra altura). Uma
vida insuportável. Nem uns nem outros expõem a sua verdadeira forma
de ser e de pensar porque receiam ser punidos. Até na cama se
inibem, como se estivessem a ser vigiados.
Não
há verdade nas palavras do quotidiano. Só indícios. Por isso, não
vejo outro caminho para além do ensino, para tentar construir alguma
coisa.
Ao
fim de anos, a solidão tomou conta de mim. A solidão de não saber
quem pode estar, ou não, comigo. Sinto que nada me falta, ou que até
possuo mais do que aquilo que sempre ambicionei, mas é precisamente
essa sensação que mais me incomoda e aflige. Por vezes, penso em
dar cabo da vida. Há momentos em que me apetece resolver o assunto
pelas minhas próprias mãos. Mas nunca chego a dar o passo decisivo.
Penso nos alunos que tive e desisto. Quando penso nos milhares de
jovens que conheci nas salas de aula, sinto-me outra pessoa. Como se
os seus espíritos sedentos me invadissem repentinamente. É como se
deixasse de ser eu para ser eles. Nessas alturas, não tenho mãos a
medir. O coração bate-me aceleradamente, deixando-me com imensa
vontade de continuar.
Quando
estou só, sinto que nada faço no mundo e apetece-me ir embora.
Porque tudo desaparecerá – até a arte – na grande fogueira
cósmica em que havemos de perecer. E se tudo desaparecerá por que
razão hei-de estar à espera?
Temos
hipóteses de ir viver para outros planetas, com certeza,
provavelmente fora do sistema solar, fora da galáxia. E não me
restam dúvidas de que acabaremos por fazê-lo. Mas esses planetas e
sistemas estelares também terão o seu fim. De outra forma, não
dariam origem a novos universos. É preciso que terminem, um dia,
para que a multiplicação se perpetue.
Os
humanos nada acrescentam ao cosmos. E é esta inutilidade absoluta
que me faz ter vontade de partir. Aqui, não faço nada, a não ser
esperar, o mesmo que nada, nada mesmo – um nada que, porém, me
segura – como se me restasse uma esperança baseada em coisa
nenhuma.
Estamos
condenados a perceber apenas parte das coisas. À medida que
acumulamos experiência vamos aumentando o nosso campo de
compreensão, e isto não deixa de ser estimulante, mas nunca
atingiremos a compreensão do todo. Se o conseguíssemos,
tornar-nos-íamos no próprio todo. Podemos aumentar a parte,
torná-la maior, mas o que sabemos nunca deixará de ser uma parte.
Esta
é talvez a minha última oportunidade de descobrir quem vive dentro
do meu corpo, a quem pertence a minha alma. Contando tudo,
abrindo-me, talvez consiga saber, talvez consiga detectar o momento
em que a identidade se afirma sem contemplações.
Penso
que minha mãe desconfiou do que se passava comigo, embora nunca me
tivesse tocado no assunto. Nem jamais soube que tenha falado com
alguém para esclarecer eventuais dúvidas, ou com fins de simples
aconselhamento. Nem com o meu pai acredito que tenha trocado
opiniões. Acho que preferiu não correr o risco de abrir feridas na
minha alma e na dela. Foi pena que não tivesse tentado explicar-me.
Poderia ter-me ajudado, mesmo desconhecendo os motivos do que me
perturbava, afligia, confundia.
As
mães são a nossa única certeza. A minha teve receio de se
confrontar com a natureza que em mim gerou. Talvez receasse que, ao
desvendar-me, pudesse descobrir algo sobre ela mesma, sobre os seus
meandros menos visíveis.
Por
vezes, ela olhava-me de uma forma tão penetrante que eu chegava a
sentir vertigens. Mas olhava-me sem se dar conta de que eu não só
me apercebia disso como praticamente me deixava afundar no reflexo do
seu instinto.
“Mãe!...”,
cheguei a dizer uma vez, quase ganhando coragem para lhe abrir o meu
coração.
Mas
quando me via a transbordar de sinceridade, ela preferia esquivar-se,
como se me considerasse um caso sem solução, ou como se fugisse
dela própria, como se não ousasse ver-se ao meu lado no espelho.
8
No
dia em que fiz quarenta e dois anos de idade, encontrei uma criança
de olhos grandes e lindas bochechas junto à porta do meu prédio.
Era uma menina com saia branca pintalgada de bolinhas vermelhas que
parecia estar à espera dos pais ou de algum irmão mais velho.
Enquanto
metia a chave à porta, fiz-lhe uma festa na cabeça e segui o meu
caminho para casa. Mas quando me preparava para subir o primeiro
lanço de escadas, ouvi uns passitos miúdos nas minhas costas e uma
vozita que dizia:
“Chamo-me
Rita”.
“Quantos
anos tens?”, perguntei-lhe, detendo o passo, ao que ela me
respondeu erguendo quatro dedinhos à frente do rosto. “Estás
muito crescida para a tua idade”, comentei e voltei a afagar-lhe os
cabelos, pondo-me a subir a escada.
Quando
me detive à porta de entrada para o apartamento, contudo, reparei
que Rita continuava a seguir-me:
“Posso
ficar na tua casa?”, perguntou-me ela, com a sua vozinha cândida
atravessada por um fio de medo.
“E
os teus pais? Onde estão os teus pais?”
“Não
sei…”, replicou, dirigindo-me um sorriso cintilante.
Mandei-a
entrar, dei-lhe um copo de leite e procurei saber exactamente o que
se passava. Rita pouco ou nada me adiantou. Respondia a tudo o que eu
lhe perguntava, mas sem nenhuma precisão, olhando-me com grandes
sorrisos cheios de água, à espera das minhas reacções.
Deixei-a
dormir em minha casa naquela noite. No dia seguinte, articularia
ideias e decidiria como proceder.
Só
que ela acabou por ficar. A sua afabilidade convenceu-me. O seu riso
e os seus olhos de água. Claro que eu devia ter contactado as
autoridades, mas preferi correr o risco de não o fazer. Se, um dia
me descobrissem, não havia de ser por isso que me prenderiam ou
condenariam. Se tal acontecesse, aliás, nessa altura eu havia de
encetar o processo de adopção de Rita.
A
minha vida mudou radicalmente. Passei a ser mãe e pai de uma menina
que me tinha caído do céu. Tive que fazer mudanças em casa,
entretê-la a toda a hora, arranjar-lhe um quarto, comprar-lhe roupa
e brinquedos, preparar-lhe as refeições, matriculá-la numa escola.
Os meus dias tornaram-se acelerados e luminosos. O que antes me
acabrunhava passou a divertir-me. Tudo por causa de Rita e pela
alegria contagiante de lidar com as coisas mais insignificantes, um
gancho de cabelo, um botão, um carro de linhas.
Rita
andava sempre a correr pela casa, fazendo barulho, cantando,
dançando. Com ela, deixou de haver espaço para a tristeza. Por
vezes, eu receava que, mais dia menos dia, os pais dela aparecessem a
exigir-me que lha devolvesse, e imaginava fugas, perseguições em
auto-estradas, buracos na floresta onde me esconderia com ela, mas
logo a seguir, caía em mim e compreendia que o meu dever era agir de
acordo com os interesses de Rita e que me competia saber avaliá-los
sempre e em todas as circunstâncias.
Os
anos passaram e ela foi crescendo. Com nove anos de idade, houve um
dia em que me pediu para dormir em casa de uma amiga de escola.
Acedi, sem suspeitar que nessa noite me veria numa aflição para
adormecer. O silêncio que enchia os quartos fazia-me lembrar uma
série de túmulos com portas que comunicavam entre si. A ausência
de Rita era um fantasma medonho, uma tristeza inimaginável. Pensei
que não suportaria tanto vazio, pensei ir buscá-la de volta a meio
da noite, pensei que poderiam ter engendrado um esquema para ma
raptarem.
Nos
anos que se seguiram, Rita ficou por diversas vezes em casa de amigos
da sua idade e nunca deixei de sentir a angústia que me invadiu na
primeira noite em que dormi sem ela. Frequentemente, mesmo quando
estava apenas na escola, eu sentia uma profunda amargura por Rita não
se encontrar a meu lado. Sofria que me fartava quando não sentia a
sua respiração por perto. Durante o tempo que viveu comigo, ela foi
um mundo sempre novo para mim.
Por
volta dos quinze anos, passou a sair regularmente à noite, para ir
ao cinema ou simplesmente dançar com os colegas. Não tive outro
remédio senão aceitar a realidade. Dava-lhe toda a minha atenção
quando estava em casa, mas quando ela saía pouco me restava fazer
senão esperar pelo seu regresso.
Até
que houve uma noite em que Rita não voltou. Depois de telefonar
várias vezes, a dizer que estaria em casa às duas da manhã, depois
às três e, mais tarde, às cinco, acabei por lhe perder o rasto. Às
sete da madrugada, em desespero, estava com os nervos em franja a
andar de um lado para o outro, entrando e saindo no quarto que ela
deixara arrumado e limpo. Sabia que algo não estava bem, mas
desconhecia o que pudesse ser. Às oito, já sem esperança,
contactei a sua melhor amiga, que me atendeu estremunhada e me disse,
com voz enrolada, que a deixara por volta das três à saída de um
dos bares da cidade e que não tinha qualquer outra informação.
Tentei
conter-me e esperar. Não preguei olho. A meu lado, Emanuel dormia
tranquilamente com o ar de quem navegava os sonhos de uma galáxia
distante. Sentia-o próximo, mas, ao mesmo tempo, longe, entregue ao
seu próprio destino. Fiz-lhe uma festa no focinho e deixei-me estar.
Com
o tempo, acabei por aceitar o desaparecimento de Rita. O que não
significa que a tenha esquecido. Pensei nela durante anos. E continuo
a pensar. Por vezes, sem saber porquê, imagino que ela e Auxiliadora
possam estar juntas. É um pressentimento, talvez um medo. Não faz
qualquer sentido. Sempre Auxiliadora, por mais anos que viva, por
mais gente que tenha encontrado.
Foram
muitas as vezes em que me pus de barriga para o ar, na cama,
reflectindo sobre qual seria a minha reacção se Rita entrasse a
qualquer momento. Imaginava que alguém premia a campainha da porta a
avisar que acontecera uma tragédia. Via-a cortada em pedaços,
pernas para um lado, coração para o outro, unhas arrancadas, seios
decepados, enquanto Emanuel acordava e desatava a ladrar
desvairadamente como se estivesse perante uma cena de terror,
aninhando-se-me junto ao corpo em busca de protecção.
O
sangue subia-me à cabeça e, sem me conter, eu gritava:
“Basta
Auxiliadora!, basta! Perdoa-me, Rita, pela tua saúde…”.
Tentava
afastar a imagem insuportável do crime, mas não era capaz. Seria
possível que Auxiliadora e Rita me desafiassem de forma tão brutal?
Eu procurava acalmar Emanuel, mas em vez de sossegar, o cão punha-se
a uivar de uma maneira que me deixava os cabelos em pé.
Acabei
por afastar Rita das minhas preocupações quotidianas, habituando-me
a tolerar o seu vazio. Se ela partira, paciência. Não podia
obrigá-la a fazer parte do meu mundo. Era inútil alimentar
expectativas sobre alguém que eu criara durante anos e que se sumira
de um momento para o outro.
Resolvi
o assunto, pensando em pessoas e situações diferentes,
empenhando-me nas aulas, procurando sinais, estudando conexões entre
acontecimentos e sensibilidades.
Um
dia, o telefone tocou. Era Rita. Tinham passado seis anos sobre o seu
desaparecimento. Fiquei incapaz de dizer palavra, como se a língua
se me tivesse desarticulado de um instante para o outro. Era uma
situação que se repetia quando alguém que eu amava muito me
surpreendia. Tornava-me imbecil, inerte, quase cadáver. Rita
sabia-o. Por isso se pôs a falar até que eu recuperasse o senso.
Conversou
durante uns bons minutos, sem nunca dizer onde se encontrava.
Perguntei, insistentemente, embora gaguejando, mas ela recusou dar-me
quaisquer pistas sobre o seu paradeiro.
Rita
estava, como sempre, segura de si mesma. Falava como uma estranha,
ainda que, ao mesmo tempo, fosse Rita, a mesma Rita que eu recolhera
à porta de casa anos atrás e que me levantara os dedinhos da mão
para dizer que tinha quatro anos de idade.
Quis
saber se eu estava bem, se comia, se me distraía. Tinha saudades de
Emanuel.
Senti
um arrepio. Recorri a todos os argumentos que me vieram à cabeça na
tentativa de a fazer regressar. Em vão. Só consegui a promessa de
que me havia de ir telefonando. Procurei saber como podia ao menos
voltar a vê-la por uns breves instantes, minutos, talvez segundos,
mas ela esquivou-se, desculpou-se, dizendo que refizera a vida noutro
lado e que não valia a pena eu alimentar esperanças.
Pouco
antes de ela desligar, tive o pressentimento de que se encontrava em
França. Era uma suspeita baseada nos ruídos de fundo do telefone.
Uma paisagem sonora daquelas só podia ser parisiense. O barulho
suave dos motores, as conversas roucas nos cafés, o eco
freneticamente pausado dos fins de tarde.
Em
criança, Rita passava bastante tempo a meu lado, brincando com os
bonecos que tinha espalhados por todo o quarto ou com o computador,
carregando em botões, fazendo somas arbitrárias, respondendo à voz
monocórdica do aparelho.
“Não
posso fazer isto”, dizia, enquanto se punha a mirar o relógio de
pulso que eu lhe oferecera dias antes. “Estou muito bonita”,
acrescentava, por entre sons menos perceptíveis. “É bom…”,
afirmava, sem que eu soubesse a que se referia.
Punha
a mão esquerda na testa e procurava acertar em qualquer operação
aritmética que eu não vislumbrava.
Abanando
a cauda, Emanuel vagueava pela sala, ansioso por entretê-la.
De
repente, há algo que me sacode, que me chama à realidade, e fico
com a impressão de ter ouvido bater à porta. Uns toques de dedos.
Mas deve ter sido equívoco meu. Quando a ambulância chegar, hão-de
tocar à campainha do prédio. Ou será que encontraram a entrada
principal aberta, subiram e bateram à minha porta na tentativa de
recuperarem do atraso? Espero que toquem de novo. Não me darei ao
trabalho de ir ver quem é. Deve ter sido ilusão. E foi mesmo. Não
voltaram a bater.
Estava
eu a dizer que Emanuel vagueava pela casa, abanando a cauda, que Rita
se levantava do seu lugar e dizia que lhe apetecia comer gelatina.
Era doida por gelatina. Uma vez, na festa de aniversário de um
vizinho, atacou literalmente uma gelatina do tamanho de uma pizza,
metendo grandes colheradas à boca, perante o divertimento dos
convidados. Ficou muito corada quando percebeu que todos a
observavam. Senti-me como se estivesse no lugar dela. Senti-me em
cacos no seu pequeno corpo. De coração desfeito.
Com
um olho em Emanuel, outro em mim, Rita desligava o computador, abria
um pacote de bolachas e punha-se a devorá-las desalmadamente. Eu
dizia-lhe que não devia abusar de bolachas e ela obedecia de
imediato, olhando-me de forma entendedora, como se se tivesse dado
conta de algo importante. Apesar da sua pouca idade, preocupava-se em
não engordar.
A
seguir, informava-me de que ia fazer os trabalhos de casa. Munia-se
de uma das minhas agendas e desatava a somar números, em voz alta:
“Dois
mais três igual a dez!, cinco mais quatro igual a seis!…”, e por
aí fora. Depois, anunciava que estava cansada, dizia que já fizera
o que a professora ordenara e punha-se a andar à roda no meio da
sala, deixando Emanuel agitado e nervoso.
Certa
vez, o cão deu-lhe uma dentada no rabo, fazendo-a chorar. Tentei
dominar o animal, sem sucesso. Era domingo à tarde. Rita precisava
de alguém que estivesse mesmo com ela. Precisava de mim, do meu
carinho, do meu calor. Pediu-me a chupeta que, aos seis anos de
idade, teimava em não abandonar. Dei-lha. E fomos rebolar entre
gargalhadas sobre o tapete do seu quarto.
9
No
início do seu segundo ano de universidade, por alturas do mês de
Novembro, num dia em que estava sozinha em casa, Rute pegou numa faca
e espetou-a na perna direita, na zona acima do joelho. A lâmina não
entrou à primeira tentativa. Ela cravou-a várias vezes, até sentir
que tinha atingido o osso.
Rute
contou-me esta história a rir, enquanto saboreava um rebuçado
sentada no chão junto à mesa da sala de estar da minha casa.
Pelo
que me disse, não sentiu dor, nem aflição. Lembra-se de ter
agarrado a faca maquinalmente e de a ter enterrado na carne por mais
do que uma vez. Só tomou consciência do que tinha feito quando viu
que o sangue lhe jorrava desalmadamente até aos pés. A primeira
coisa que lhe veio à mente foi que não morreria daquilo. Até
porque ao fim de poucos minutos se pôs a vedar o sangue com um lenço
enquanto não a levavam para o hospital.
O
seu desejo estava realizado. Espetara a faca na perna, cumprira a sua
função. O resto decorreria com normalidade. A cada um competia os
seus actos. O dela, naquele dia, tinha sido espetar uma faca na
perna. Faltava-lhe pouco para completar dezanove anos quando o fez.
Lembrava-se como se tivesse acontecido no dia em que me contou o
episódio.
Rute
considerava-se dona e senhora dos seus atributos. Queria uma marca de
domínio sobre o seu corpo, por isso se cortara daquela maneira,
embora nunca lhe tivesse ocorrido que ficaria com uma cicatriz para o
resto da vida. Só percebeu isso mais tarde. Golpeou a perna pensando
que depois não se notaria. Ou nem pensou nisso. Apenas agiu, sem
ponderar as consequências.
Quando
enfiou a lâmina no músculo foi para ver a agressividade na ponta da
lâmina, foi para ver a fealdade, para observar a emoção com olhos
de ver e demonstrar a si mesma que era capaz de ir além de um
comportamento previsível. Para Rute, o importante era ver. Ver que
era feia (se não se via bela, não podia ser bela…), ver que
ousara um gesto fora do comum, mesmo que fosse necessário provocar a
realidade para demonstrar a si mesma que era capaz de lidar com
situações extremas. A vulgaridade aterrava-a. Desejava tudo menos
ser mais uma nas contas do quotidiano, mais uma peça, mais um grão
de areia.
Rute
olhava para o sangue que brotava da sua perna e não era capaz de
pensar em mais nada. Era como se tivesse a mente bloqueada, como se
lhe tivessem desactivado os neurónios e ela não fosse capaz de
articular o raciocínio mais elementar.
Anos
depois, arrependeu-se do que fez. Mas só se arrependeu porque passou
a ter que responder a algumas perguntas, ou passou a ter que se
esquivar delas. Por vezes, quando se encontrava de conversa com
alguém, se estava de saia e dobrava as pernas, acontecia a cicatriz
saltar à vista e a pergunta tornava-se inevitável:
“Que
é isso aí?...”
Rute
sentia-se inibida na resposta, porque não sabia explicar o que lhe
acontecera. Lembrava-se de lhe ter apetecido enfiar a faca na perna,
mas não se lembrava dos motivos que estavam por detrás de tal
gesto. Ou melhor, lembrava-se, mas não lhe apetecia estar com
explicações. Por isso, não sabia como satisfazer a curiosidade
alheia. Queria contar tudo, mas não era capaz.
Também
não queria parecer anormal, autista, indiferente ao seu próprio
corpo. Nem queria dar a ideia de que tivesse sido alguém a fazer-lhe
a cicatriz. Deste modo, via-se na necessidade de confessar que fora
ela a autora do feito. Mas não conseguia esclarecer os motivos.
Sorria para tentar vencer o embaraço. E para não provocar
intranquilidade à sua volta. Mas quanto mais sorria, mais embaraçoso
se tornava o momento.
“Desilusão
amorosa?”, perguntou-lhe um amigo, certa vez.
Ela
replicou com uma enorme gargalhada. Nunca uma desilusão amorosa a
faria cometer semelhante acto de desespero. Mas depois de pronunciar
a palavra “desespero” arrependeu-se porque no dia em que se
auto-mutilara estava longe de se encontrar desesperada.
“Eu
disse ‘desespero’, mas não era isso que queria dizer”,
retorquiu ao amigo. “Não penses que fiz isto por causa de alguma
tragédia.”
“Mas
se não foi desespero, o que foi?”
“Não
tenho a certeza… Penso que estava com a cabeça fora deste mundo.
Devo ter tido uma visão ou qualquer coisa parecida…”.
“Não
terá sido uma tentativa de aniquilares a tua beleza, uma forma de te
convenceres de que a estética não é tudo? Não terás querido
deixar uma marca de dor no teu corpo?”
Rute
sentiu-se abalroada pelas perguntas. Não sabia como responder, não
tinha a certeza, nunca era o momento certo para falar da sua
cicatriz, a não ser no dia em que me contou o que fizera, anos
depois, tranquilamente, já com mais de cinquenta feitos.
Por
isso, das várias perguntas feitas pelo amigo, comentou a última,
optando pelo caminho mais simples:
“Mas
eu nem senti dor no dia em que fiz isto!”
“Não
sentiste dor, mas uma cicatriz destas é sempre uma marca de dor,
mesmo quando não provoca sofrimento imediato”, respondeu o amigo,
enquanto lhe acariciava a cicatriz da perna com a ponta do dedo
indicador, como se lhe agradasse sentir a ligeira saliência da pele.
Rute
ria sob a pressão delicada do seu dedo, certa de que o riso era uma
maneira de contornar o que não sabia explicar, uma maneira de ganhar
tempo.
“É
estranho alguém espetar uma faca na perna sem saber os motivos por
que o faz”, acrescentou o amigo, motivado pelas hesitações dela.
“Também
não me digas que é assim tão estranho uma pessoa ter uma cicatriz
na perna…”
“Não
é a cicatriz que é estranha. Esta cicatriz até cria um momento de
contraste com a tua beleza, realçando-a. O que é estranho é não
saberes dizer porque enfiaste a faca na perna.”
“Estava
num daqueles dias em que me apetecia fazer qualquer coisa. Quis
experimentar o tipo de sensação que provoca uma lâmina a rasgar a
carne. E também foi uma maneira de me afirmar.”
“Retiraste
a faca logo a seguir ou deixaste-a ficar?”
Surpreendida,
Rute esteve quase para desistir de falar no assunto, mas ainda
adiantou:
“Nem
te sei responder. Não me lembro. Não me leves a mal, mas agora
começo a perceber que nunca pensei bem no que fiz…”
“Não
achas que estás apenas a desculpar-te por uma coisa para a qual
dificilmente se arranja desculpa?”
“Só
te falta insinuar que andei com alguém que me esfaqueou durante uma
briga de ciúmes”, insinuou ela, esmorecendo o sorriso, a ver se
lhe travava o ímpeto inquiridor.
“Nunca
pensaste fazer uma plástica?”, perguntou.
“Não!
Porque havia de fazer isso? Achas que preciso?”
“Claro
que não. Mas sempre era uma forma de ficares com a perna perfeita.”
“E
uma perna é assim tão importante? O resto do corpo não conta?”,
argumentou ela, enquanto lhe afastava a mão da cicatriz, com
subtileza, como se ele tivesse deixado de merecer o privilégio de
lhe tocar.
“Vendo
bem as coisas”, disse ele “esta tua cicatriz pode ser uma forma
de desviares as atenções! Quando o meu dedo desliza na tua
cicatriz, não te toco em nenhuma outra zona do corpo. Não será
esta ferida uma espécie de segunda vagina de que te serves para
confundir quem tem o privilégio de privar contigo?”
Seguiu-se
o silêncio dele à espera da reacção dela e a mudez dela à espera
de verificar se tinha ouvido bem.
“Disseste
uma “segunda vagina”?...”, perguntou Rute, por fim, quando já
corria o risco de a pergunta dele ficar sem resposta.
“Sim,
isso mesmo…”, replicou o amigo, ainda hesitante quanto à reacção
dela, apesar de saber que Rute nunca se sentia incomodada com uma
provocação sexual.
“É
uma ideia genial!”, comentou ela, deitando-se para trás na cama,
ao mesmo tempo que dobrava ambas as pernas e deixava os joelhos a
pouca distância do nariz dele. “Esta minha cicatriz, pelos vistos,
é fonte de inspiração.”
“É
frequente comentarem a tua cicatriz?”, quis ele saber, fazendo que
Rute se retraísse, momentaneamente, o que não a impediu de estender
a mão e entrelaçar os seus dedos nos dele.
O
amigo, porém, não olhava para a cicatriz, mas para o rosto dela
deitado, o corpo dela deitado, os seios dela deitados, a cintura dela
deitada…
Animado
com o gesto de ela lhe ter dado a mão, atreveu-se a ir mais longe do
que o habitual: levantou uma das pernas e sem lhe dar tempo de
esboçar qualquer defesa, sentou-se-lhe em cima, sentindo prontamente
o calor das suas ancas, do seu ventre a respirar, das suas coxas
macias. Foi o único homem que venceu a barreira que Rute tinha por
hábito impor a quem levava para a cama.
Consciente
de que não fora a tempo de evitar o avanço de surpresa, Rute
preferiu dar a ideia de que o aceitara, acomodando-se melhor ao corpo
dele, com um jeito de ancas.
Ele
pensou que aquele era o seu dia, pensou que depois de tantos meses a
conversar e conviver com Rute teria finalmente a oportunidade por que
tanto esperava. Era impossível que, deixando que ele se apoderasse
do seu corpo de uma forma tão evidente, acabasse por não aceitar
ser possuída por completo. E na tentativa de ganhar tempo,
disse-lhe:
“É
bom estar em cima de ti. É quase tão bom como te possuir…”
Mas
ela manteve o silêncio, como se tivesse perdido a noção do que
estava a acontecer. A dada altura, dobrou as duas pernas e
desencostou ligeiramente os joelhos, o que aumentou a sensação de
conforto da parte dele.
Rute
continuava a falar, mas as suas palavras pareciam distantes, quase
ausentes. como se não estivesse ali, como se tivesse saltado para um
outro tempo e lhe fosse indiferente que ele estivesse em cima dela ou
em cima de uma pedra.
“Uma
‘segunda vagina’…”, murmurou ela, pensando sozinha.
Entretanto,
o amigo tocava-lhe ligeiramente (quase a medo) no ventre, no peito,
no pescoço, na face… e ela repetia – “uma segunda vagina…”
– enquanto esboçava um sorriso superficial, volátil.
“Se
a cicatriz é a tua segunda vagina, não faz sentido que me impeças
o acesso à primeira”, disse ele, procurando meter-lhe a mão por
entre as pernas, um gesto que ela prontamente travou, empurrando-lhe
os braços de forma brutal.
Se
Rute lhe permitia tanta intimidade, por que razão não havia de
consentir que ele lhe metesse a mão entre as pernas? Por que não
haviam de fazer amor?
“Não
voltes a empurrar-me desta maneira!”, disse ele, tentando marcar a
sua posição.
“E
tu não voltes a meter-me a mão entre as pernas!”, reagiu ela, de
forma autoritária, como se de repente tivesse acordado de um sonho.
“Sai de cima de mim! Sai de cima de mim imediatamente!”, dizia,
enquanto o sacudia com movimentos de anca.
Perante
uma atitude tão determinada, ele sentiu que devia obedecer-lhe e
voltar ao lugar que antes ocupara. Ao recuar, disse, porém:
“Mas
eu não fiz nada. Se até agora estive em cima de ti, porque não
posso continuar? Que mal te fiz eu?”
“Meteste-me
a mão entre as pernas!”
“E
isso que mal tem?”
“Quem
manda no meu corpo sou eu…”
“Não
deixaste de mandar enquanto estive em cima de ti…”
“Estiveste
em cima de mim enquanto eu quis e sais de cima de mim quando eu
quero”, replicou ela, sentindo que voltara a deter o controlo da
situação.
“Tudo
isto por causa de uma ‘segunda vagina’…”
“Foi
a ideia mais bonita que tiveste esta noite.”
“Mas
o que fizeste à tua vagina foi cosê-la, cerzi-la, para impedir que
alguém te penetre. Esfaqueaste-a, fizeste-a cicatrizar, recriaste-a
no joelho, puseste-a à mostra para que todos vissem o que lhes
estava reservado. É por isso que não me deixas fazer amor contigo.
Foi esta a forma que encontraste de resolver o teu sexo,
aniquilando-o. Falas muito de sexo porque não tens coragem de o
praticar. Fazes sexo com palavras e sorrisos! O prazer do teu orgasmo
está na boca, está na língua.”
“Não
tens nada a ver com o meu sexo! O meu sexo é meu e pronto. Cada um
tem o sexo que quer e entende. Também nunca te vi fazer outro sexo.
Falas, falas, mas na prática é o que se vê.”
“Não
há nada que eu mais deseje do que ter sexo contigo. Só que não o
permites.”
“Como
posso saber se realmente queres fazer sexo comigo? Muitas vezes, as
pessoas dizem coisas diferentes do que pensam e desejam. Quando há
pedaço estiveste em cima de mim, tiveste uma ocasião de ouro…”
“E
quando tentei avançar, repudiaste-me como a um cão!”
Mas
Rute insistia que ele não tinha nada que lhe meter a mão entre as
pernas. Havia outras formas de sedução. Ela não era uma máquina
pronta a satisfazer instintos. Se ele pensava que a ofendia com a sua
teoria da ‘segunda vagina’, estava enganado.
Mas
ele estava longe de querer ofendê-la. Ressentido e humilhado com a
situação que criara, agradeceu e vestiu o casaco, pronto para sair,
certo de que ela não recuaria, certo de que eram nulas as suas
hipóteses de ser convidado a pernoitar em sua casa.
10
Por
vezes, Raimundo zangava-se com Rute – não… nada disso, os dois
não se conheciam, não sei onde tenho a cabeça! – Raimundo
zangava-se… como se chamava ela? (Lá tenho que voltar atrás e
procurar o nome da namorada de Raimundo, é a demora da ambulância
que me está a transtornar ) – chamava-se Estela!, chamava-se, e
chama-se, Estela. Por vezes, Raimundo zangava-se com Estela.
Não
eram bem zangas – porque muitas vezes nem chegavam a trocar palavra
– eram mais amuos, ressentimentos. Os dois passavam tempos sem
falar, embora como se encontravam só uma vez por semana nem sempre
fosse possível perceber se estavam zangados ou não. Creio que eles
próprios, muitas vezes, nem o saberiam.
Passeavam
no jardim, lado a lado, para a frente e para trás, aos domingos à
tarde, pouco ou nada falando, e por isso não faria grande diferença
se estivessem aborrecidos, ou não, pelo menos na imagem que passavam
para o exterior. E esta, por mais que se queira ignorá-la, tem
sempre algum peso. Caso contrário, as pessoas não sairiam à rua.
Se saem, é para mostrarem alguma coisa de si. Ou para verem alguma
coisa dos outros. É para partilharem. Deste modo, há sempre imagens
a passar, para um lado ou para o outro, quer se queira, quer não.
Chegava-se
a um ponto em que os amuos já faziam parte do convívio normal entre
Estela e Raimundo. Por vezes, decorriam semanas, até meses, em que
os dois estavam zangados, sem que tal situação fizesse
aparentemente grande diferença. Apercebiam-se disso aos domingos,
quando passeavam e depois ia cada um à sua vida, dando a ideia de
que nenhum deles voltava a pensar no assunto, embora nem sempre fosse
fácil esquecerem os mútuos ressentimentos.
Os
silêncios prolongados, espontâneos ou provocados por amuos, davam
que pensar a Estela. Ela estava sempre a dizer a si mesma que
Raimundo era insuportável e que mais dia menos dia acabaria de vez o
relacionamento que tinha com ele. Na prática, contudo, não
conseguia passar um domingo sem estar com Raimundo, por mais
distante, antipático ou aborrecido que ele se revelasse. Sabia que
vivia em contradição, mas não era capaz de se libertar do elo que
a prendia.
Raimundo,
por seu turno, já se habituara ao feitio de Estela. E procurava
ligar o menos possível às suas birras, embora houvesse ocasiões em
que isso fosse especialmente difícil, já que o acabrunhamento de
Estela acabava por o atormentar de tal forma que mal conseguia
respirar.
Raimundo
prometia a si mesmo que na semana seguinte já tudo estaria terminado
entre ele e Estela, mas o certo é que as semanas iam passando e nada
se alterava. A sua ligação a Estela era mais forte do que ele
próprio supunha. O facto de ela o acompanhar todos os domingos,
desde há anos, significava que Estela compreendia e aceitava a sua
maneira de ser, por mais que o negasse. E ele sabia que não
existiriam muitas mulheres capazes de aceitar e compreender um homem
como ele. Sobretudo um homem que só pensava em dinheiro e só tinha
tempo para conviver aos domingos à tarde. A maioria das mulheres
queria companhia e diálogo permanentes. E ele não estava para aí
virado. Por isso, considerava que Estela, apesar dos amuos, talvez
fosse a mulher certa para ele.
Raimundo
estava sempre a pensar em dinheiro, sempre a fazer contas, sempre a
definir e redefinir estratégias de investimento, sempre a analisar
dados mentalmente – fora assim que enriquecera – e esta era a sua
maneira de ser e de estar quando se encontrava com Estela, havendo
até alturas em que, obviamente, não tinha a noção de quem
caminhava a seu lado. Muitas vezes, não lhe dava atenção, nem
ouvia o que ela dizia (qualquer comentário tímido sobre alguém que
acabara de passar por eles, qualquer ideia titubeante que
manifestava, nem que fosse para tentar incentivar Raimundo ao
diálogo).
Ao
notar que a sua breve tentativa de nada valera, Estela nunca mais
abria a boca. Só que Raimundo, geralmente, nem notava que Estela
ficava ressentida. E continuava a sua incansável e silenciosa
análise de números pela tarde fora.
Quando
vinha a si, quando punha os pés no chão, é que tomava consciência
de que Estela estava magoada, revoltada. Procurava falar com ela,
pacificá-la, mas já era tarde. Estela não queria saber, estava no
seu direito de ficar calada, já dera como perdido o passeio de
domingo. Agora, só voltariam a ver-se dali a uma semana, mas Estela
era bem capaz de continuar amuada por muito mais tempo do que
Raimundo julgava razoável. Apareceria no domingo seguinte, como de
costume, e encontrar-se-ia com ele, mas o mais certo era continuar
ressentida.
Com
o tempo, Raimundo habituou-se à maneira de ser de Estela, embora
existissem momentos em que a falta de oxigénio era superior às suas
forças. Porque Estela, vistas bem as coisas, era uma das raras
pessoas (a outra era eu…) com quem Raimundo era capaz de ter alguma
comunicação. O facto de sociabilizar pouco só tornava mais
premente a sua necessidade de, em determinadas ocasiões, trocar uma
ou duas palavras com alguém. Se Estela não estava para aí virada,
Raimundo telefonava-me a perguntar se eu queria dar uma volta, se me
apetecia passar pelo seu escritório.
Eu
aparecia. Ia por ir, sem nada para dizer, aparecia só porque ele me
tinha telefonado. Houve um dia, porém, em que fui dar com Raimundo
completamente fora de si. Foi uma das ocasiões em que o vi
profundamente transtornado. Mal entrei a porta, fez sinal para que me
sentasse e explodiu:
“Qualquer
dia, perco a cabeça e faço uma asneira!”
Ante
a minha perplexidade, por falta de hábito de o ver assim
desnorteado, ele continuou: “Não imaginas como é estar com uma
mulher que passa semanas ou meses sem te dirigir a palavra! Chego a
um ponto em que já não sei o meu primeiro nome!! Acreditas? Será
possível uma coisa destas? Como posso não me lembrar do meu
primeiro nome?”
“Mas
o que é que ela tem a ver com o facto de não te lembrares do teu
primeiro nome?”, perguntei, tudo fazendo para que ele não se
apercebesse da minha ironia.
“Não
é evidente? Não se mete pelos olhos dentro? Se nem a pessoa com
quem andas pronuncia o teu primeiro nome, é natural que acabes por o
esquecer ao fim de uns tempos! Aqui na empresa é sempre ‘sr. dr.
para ali, sr. dr. para aqui’. Ninguém se interessa se o meu nome é
Costa, Tavares ou Sebastião. Ou achas que ando por aí a falar
comigo próprio e a dizer ‘Raimundo… Raimundo…’ pelos
cantos?”
“Não
estarás demasiado sozinho?”
“Tu
sabes que sempre fui metido comigo. Nunca fui de sair. Mas estava
longe de prever que me pudesse vir a meter numa destas. Maldito o dia
em que a conheci!”
“Devias
estar agradecido por a teres encontrado. Porque não é qualquer
pessoa que tem paciência para te aturar!”, argumentei, na certeza
de que Raimundo era capaz de aceitar as minhas palavras. Aliás,
quanto mais contundentes fossem os termos do diálogo com Raimundo,
maior seria a probabilidade de ele os acatar. Era uma das suas
características. E então se as palavras, ainda que agrestes,
viessem de alguém amigo, como era o meu caso, era mais do que certo
terem efeito positivo sobre ele.
“Falas
assim porque não sabes o que custa lidar com Estela! Tenho a certeza
de que ela precisa de tratamento psiquiátrico!”
“Para
te dizer a verdade, acho que quem precisa de tratamento psiquiátrico
és tu!”, repliquei, olhando-o nos olhos.
Ao
longo dos muitos anos que a nossa amizade acumulara, nunca me tinha
atrevido a ir tão longe numa conversa com ele. Eu sabia, por isso,
que aquele era um momento fulcral no nosso relacionamento.
Raimundo
devolveu-me o olhar, sem esconder algum espanto pela crueza das
minhas palavras, hesitou uns segundos, como se ainda estivesse
atarantado pelo que acabara de ouvir e, curvando-se na minha
direcção, disse de forma seca e directa:
“Tens
razão!”
Mas
eu percebi que ele só o reconhecera porque não tinha resposta para
o meu argumento. Fora apanhado de surpresa e reagira com prontidão,
dando-me razão, nem que fosse para me calar, para me impedir de
continuar o raciocínio. O conhecimento que eu tinha de Estela e de
Raimundo era mais do que suficiente para fundamentar a afirmação
que acabara de proferir. Raimundo sabia-o. E não queria ser obrigado
a defender-se, sobretudo quando era eu quem estava do outro lado da
barricada.
Fora
ele o primeiro a referir que Estela precisava de tratamento
psiquiátrico. Eu apenas virara o argumento contra ele. E anulara a
sua capacidade de reacção, levando-o a pensar sobre a frase que
proferira.
Após
o desnorte provocado pela minha insinuação, Raimundo caiu em si.
Pelo menos deixou de apontar as baterias a Estela, o que já era uma
assinalável mudança.
A
partir daí, praticamente não voltei a ouvir-lhe a voz. Só nessa
altura se lembrou de perguntar se eu queria tomar alguma coisa, mas
tive o bom senso de recusar e levantar-me para sair, porque nunca se
sabia de que forma Raimundo poderia agir a frio.
Num
primeiro momento, Raimundo mostrava-se sempre compreensivo e
delicado. Mas depois parecia refazer todo o cenário e lembrar-se de
qualquer coisa que o fazia assumir uma posição diferente.
Enquanto
nos despedíamos, ainda hesitou e levou a mão à cabeça, como se
estivesse a reconsiderar algum aspecto da conversa que acabáramos de
ter, mas não lhe dei qualquer oportunidade e esgueirei-me por entre
a confusão de vozes que agitava o escritório ao fim do dia.
11
Não
sei se Rita me via como pai ou como mãe. Para que a sua educação
não se ressentisse de qualquer lacuna, fiz sempre o possível por
ser mãe e pai na sua vida, homem e mulher, masculino e feminino, o
que me encheu de dor e felicidade, por ter que estar sempre a
superar-me, a sair de mim. Era uma grande dor, por vezes (e uma
grande felicidade, em outras ocasiões), sair de mim para me
encontrar comigo…
Eu
passava uma parte do dia sentindo que era mãe de Rita e a outra
parte sentindo que era pai. Quando lhe preparava o almoço, era pai;
ao jantar, era mãe. Quando a deitava na cama, era pai; quando me
dirigia à escola para saber se estava tudo bem, era mãe. E havia
dias em que as posições se invertiam: a mãe fazia o almoço, o pai
o jantar; a mãe deitava-a e o pai ia à escola.
Quando
brincava com ela, eu tinha a obrigação de ser pai e mãe em
simultâneo, tinha duas identidades sobrepostas, com breves
intervalos de minutos, ou segundos, o que me deixava num tremendo
estado de exaustão. Eu adorava Rita, mas confesso que brincar com
ela me foi sempre penoso, por nunca ter a certeza de o fazer como
homem ou como mulher. Com Rita, procurei agir sempre com base na
intuição, mas quando se tratava de brincar eu era um desastre. Rita
comandava todos os momentos e eu limitava-me a seguir as suas
decisões e opções.
Se
eu era mais homem ou mais mulher nesta ou naquela circunstância,
também dependia de Rita, muitas vezes. Dependia do estado de
espírito dela. Quando Rita chorava, eu era pai, inevitavelmente. Não
podia deixar de a abraçar, de acarinhar, de a consolar. Levava-a a
contar-me o que se tinha passado, como procedera com a adversidade.
Rita já sabia a regra e pronunciava mesmo a palavra “pai” quando
se dirigia para mim lavada em lágrimas. Outras vezes, observava-me
com uns olhos suficientemente poderosos para atravessarem uma muralha
de aço e chamava-me “mãe”, pedindo para a ajudar nos trabalhos
escolares que a professora mandara fazer em casa.
Em
vez de me ajudar a compreender a minha própria condição, a
presença de Rita contribuiu para aumentar o meu sofrimento, a minha
dualidade. Não teve culpa disso, mas foi o que aconteceu. Aumentar a
minha ambiguidade constituiu a sua principal função.
Rita
foi uma verdadeira filha para mim. E continua a sê-lo. Tive sempre a
preocupação de não lhe faltar com nada. E tenho a certeza de que
não lhe faltei com o que quer que fosse, embora a sua fuga de casa
aos dezasseis anos possa dar a entender o contrário. Possivelmente,
Rita suspeitou de alguma coisa, possivelmente entreviu que havia algo
em mim que não coincidia com os padrões da sociedade, possivelmente
adivinhou que a sua presença na minha vida aumentava o meu drama
interior, o meu dilaceramento.
Se
Rita achasse que podia contribuir para clarificar a minha situação,
penso que não se teria ido embora tão cedo e sem nada me dizer.
Rita partiu para permitir que eu me confrontasse abertamente com a
minha realidade, para que a solucionasse, para que a amenizasse.
Estando ela perto, eu nunca deixaria de me dividir porque as rotinas
do dia a dia me exigiam que fosse uma coisa e outra – mulher e
homem – a fim de tentar suprir a ausência dos verdadeiros pais
dela. Foi uma postura que assumi. Ninguém me obrigou a isso. O meu
amor por ela foi sempre livre e descomprometido. Eu amava Rita acima
de tudo, acima de todas as hipóteses, acima de todas as vivências e
contradições.
É
verdade que não consegui a unificação das partes em mim, a
resolução do binómio que me consumia, mas esse era um desafio que
me dizia exclusivamente respeito. O sentido dos outros é abrirem-nos
caminhos e o nosso dever é segui-los, trilhá-los. A infelicidade é
ficar a meio, não atingir a meta, não aceitar a herança.
Creio
que Rita foi a única pessoa que soube conviver com a minha
ambiguidade sexual. Pelo menos foi a única que a compreendeu. Fê-lo
até aos dezasseis anos, mas depois, cansou-se, desiludiu-se…
afastou-se. Ou quis mais. Muito provavelmente, Rita quis mais. Quis
mais de mim e quis mais dela.
Não
pode haver uma só explicação para a sua fuga. Coloco várias
hipóteses, exactamente por não ter a certeza acerca de nenhuma
delas.
Não
terá sido só para me dar espaço que ela fugiu, não terá sido só
para que eu me confrontasse com a minha divisão. Rita deve ter
querido também um pai que fosse mais pai e uma mãe que fosse mais
mãe. Eu era só parcialmente pai e parcialmente mãe. Era só
parcialmente “alguma coisa”. Não era ninguém de corpo inteiro,
o que contribuía para que estivesse em permanente conflito comigo.
Rita
deixou-me para ir em busca de alguém. Se calhar, para ir em busca
dos verdadeiros pais. Não é impossível que tenha tido alguma
informação sobre o seu paradeiro, decidindo partir para se juntar a
eles, ou para simplesmente os rever, reconhecer. Se é que ela tinha
pais. Nem isto sei.
Durante
os doze anos que viveu comigo nunca me disse o que quer que seja
sobre o assunto. Nos primeiros dias, quando a recolhi em casa, com
apenas quatro anos de idade, ela não me soube dizer, não tinha
palavras, e eu também não a quis forçar. Respeitei a sua condição
e aceitei-a.
Mais
tarde, nunca me interessou voltar ao caso, para não correr o risco
de ela se lembrar dos pais e desejar voltar para a sua companhia.
Como nunca tomou a iniciativa de me falar deles, foi sempre o
silêncio a comandar a nossa postura.
Rita
sabia que saindo de casa não voltaria a ter a atenção e o carinho
que eu lhe dispensara durante doze anos, mas preferiu correr o risco
de procurar os modelos que coincidiam com o que via na escola e na
sociedade. Preferiu, sabe-se lá, correr o risco de ir à procura dos
pais, mesmo sem ter qualquer informação sobre eles.
Essa
possibilidade explicava a sua recusa em revelar-me o nome do país ou
da cidade em que se encontrava. Eu desconfio, sempre desconfiei, que
ela andava muito, e continua a andar, de um lado para o outro, sinal
de que não desistiu de procurar quem lhe deu a vida.
Rita
tinha a certeza de que eu nunca suportaria o embate de saber que ela
decidira ir ao encontro dos seus verdadeiros pais porque isto me
deixaria com a convicção de que tinha falhado a minha missão de a
educar, seria a minha condenação como mãe e pai de adopção.
Ela
estava sempre nervosa quando falava comigo ao telefone. Estava
nervosa como alguém que procura esconder algo, que sente insegurança
sobre o que vai dizer nos minutos a seguir, que acha que o chão onde
tem os pés pode desaparecer a qualquer instante. Eu era esse chão,
como se pode depreender. Os telefonemas que Rita me fazia não
queriam dizer outra coisa.
No
tempo em que eu vivia com Rita, quando não estava com ela, não
sabia para onde me virar, nem sequer atinava com o que pensar. Tudo
me afligia, até o restolhar das árvores nas tardes de vento ou um
simples estalido de madeira em algum canto da casa. Tinha dificuldade
em concentrar-me, em afastar a ideia de que se lhe acontecesse alguma
coisa a responsabilidade seria minha. Sentia a responsabilidade
porque receava – receei sempre – que os pais, um dia, aparecessem
a pedir-me contas.
Mas
não era só a questão da responsabilidade. Eu já não era capaz de
viver sem Rita, por isso não admitia a possibilidade de a perder. Só
de imaginar essa hipótese sentia-me endoidecer.
Todas
as vezes que ela saía de casa, eu procurava combinar uma hora exacta
para o seu regresso. Não o fazia por desconfiar dela, mas para
evitar que o meu coração rebentasse com a agonia de desconhecer a
hora precisa em que voltaria.
Se
combinássemos que ela regressaria às dezanove horas e por qualquer
motivo insignificante regressasse dez minutos depois da hora
combinada, essa pequena diferença de tempo era suficiente para me
pôr os nervos em franja, para me deixar num estado de histeria,
quase apoplexia. Começava logo a imaginar para quem telefonaria se
ela se atrasasse mais uns minutos… E quando ela entrava a porta,
apetecia-me gritar, gritar, por a ter de volta, por a ver, por a
poder tocar de novo.
Se
Rita não estava comigo, tudo me afligia. Sentia que o tempo passava
sem eu poder dispor da sua companhia e sentia que isso era injusto
porque o tempo de vida comum que nos restava não era por aí além.
A
minha idade pesava. Rita passou a ser como um braço na minha vida,
como uma perna sem a qual eu não tinha condições para ir longe.
Rita era a minha boca, as minhas mãos, a minha pele. Como poderia eu
não ser mãe? Como poderia não ser pai, quando ela se punha a medir
forças comigo, socando-me, empurrando-me, desafiando-me?
Como
a solidão sempre foi o pano de fundo dos meus dias, Rita também se
tornou para mim a porta do mundo. Com ela a meu lado, eu via tudo
numa perspectiva nova e obrigava-me a uma série de coisas que sem
ela não faria. De alguma maneira, Rita até justificava a minha
ambiguidade: como eu tinha a tarefa de a educar, competia-me
substituir o pai e a mãe, competia-me ampará-la de todas as formas.
Por isso, a duplicidade, no meu caso, chegava a ser um dever moral.
Ninguém tinha o direito de me condenar por isso, embora me fosse
difícil admitir que a tolerância fosse uma das vocações da
sociedade em que vivia.
A
questão da minha identidade sexual, contudo, não se limitou a Rita.
Foi alimentada pela nossa vida em comum, mas transvazou sempre a
intimidade do lar. Neste aspecto, o que me valeu, mais do que a
duvidosa tolerância social, foi que, de uma forma ou de outra, as
pessoas estavam habituadas aos conflitos nas suas próprias vidas,
razão pela qual acabaram por me aceitar. Toda a gente, pelo menos
uma vez na vida, já se tinha confrontado com algum fantasma sexual.
Comigo,
a diferença era que eu me confrontava todos os dias com essa
realidade. Toda a vida, desde que me lembro de ter consciência
sexual, me senti mulher e homem ao mesmo tempo. Quando me sentia
homem sentia-o de maneira que me apetecia ser mulher e quando me
sentia mulher sentia-o de maneira que me apetecia ser homem. Estava
sempre em colisão comigo, em combate, em luta. Muitas vezes pensei
se todos os seres humanos não se debateriam com o mesmo, se esta
luta não seria uma coisa banal nas sociedades, se no fundo todas as
mulheres e homens não viveriam de forma idêntica.
Pensava
nos meus amigos e amigas e procurava adivinhar como lidariam
intimamente com as suas vidas sexuais. Cheguei a trocar opiniões com
algumas pessoas sobre o assunto e o que consegui obter das de maior
confiança foi que talvez eu fosse homossexual. Mas eu discordava. O
meu problema, tanto quanto eu o conhecia, não estava em saber se eu
era homossexual ou não. O meu problema era precisamente o de não
ser capaz de viver só com uma dimensão do humano. Para mim, ser
homem era ser pouco, e ser mulher era ser pouco, igualmente. O meu
desejo era ser homem e ser mulher ao mesmo tempo, mas sê-lo de uma
maneira em que não houvesse conflito. O meu problema, no fundo, era
a ausência de um terceiro sexo. Porque não havia comportamento
sexual para uma tal dimensão. Deste modo, havia sempre em mim
qualquer coisa que falhava. Eu não queria optar por um sexo ou por
outro. Queria os dois. Como poderia um pénis fazer-me sentir mulher
e como poderia uma vagina fazer-me sentir homem? Este era o meu
drama. Não havia um órgão sexual para as pessoas que eram
simultaneamente homem e mulher.
Nunca
me pareceu que fosse razoável esclarecer a minha ambiguidade,
anulando o sexo, esquecendo-o, pondo-o de parte. Quem marginaliza o
sexo perde a parte mais importante da vida, a parte mais empolgante.
Foi por nunca o querer fazer que acabei por me confrontar com o
dilema da minha identidade sexual. Não fora pelo sexo e eu teria
sido a pessoa mais feliz do mundo.
Foi
este simples dilema – que, de tão pequeno, se tornou monstruoso –
que condicionou toda a minha vida.
Eu
não sabia se a atracção que sentia por Rute era a atracção de um
homem ou de uma mulher. Por mais voltas que desse à cabeça, não
tinha elementos para me definir. Eu podia gostar de Rute como mulher
ou como homem. Era importante para mim saber em que condições amava
ou não amava alguém. Mas eu não me definia. Sabia que gostava de
Rute, apenas. E por não ser capaz de ir mais longe do que isso
conformava-me com a expectativa de a ter a meu lado na hora de
partir, para que talvez nessa ocasião derradeira eu pudesse ficar
com uma ideia clara sobre a minha natureza. Talvez Rute tivesse a
arte (só me restava ter esperança na arte) de me levar a um caminho
de lucidez. Talvez Rute tivesse a arte de me unir.
Na
escola, durante os anos que leccionei, chamavam-me sempre Lis. Nunca
professor ou professora. Parece que adivinhavam. Eu era o único
membro da classe docente que não merecia o tratamento de “sutôr”
ou de “sutôra”.
O
meu maior tormento na escola era quando precisava de ir aos lavabos.
Em lugares públicos, nunca os frequentava, mas no meu local de
trabalho era praticamente impossível evitá-los. A forma que
encontrei para contornar a dificuldade foi esperar sempre por uma
ocasião em que as casas de banho estivessem desocupadas. Só as
frequentava durante as horas de aula e usava sempre as dos alunos.
Deixava-os na sala entretidos com qualquer coisa para redigirem ou
analisarem e esgueirava-me sem ruído e sem dar nas vistas.
Havia
dias em que exteriormente eu parecia mais homem e outros dias em que
parecia mais mulher. Na escola, habituaram-se à minha imagem
andrógina. Na rua, as multidões passavam-me ao lado. Haveria quem
me considerasse mulher e quem me considerasse homem. E devo confessar
que essa imagem dúbia me satisfazia interiormente. Quando não se
tratava de sexo, sempre gostei que me confundissem. Era uma forma de
não me conhecerem, era a protecção mais eficaz que eu podia
encontrar.
A
indumentária que trajava era geralmente neutra. Andava quase sempre
de calças, com sapatos de tacão médio sem atacadores, ou de ténis,
camisas largas com botões à frente.
Só
havia uma pessoa junto da qual eu não tinha problemas de identidade.
Essa pessoa era Raimundo. Junto dele, eu sentia-me homem,
inevitavelmente. Não conseguia estar com ele de outra maneira. Mas
creio que ele não tinha a certeza de como se sentia em relação a
mim. Esta pode ser a explicação para as reservas que sempre manteve
comigo, apesar da nossa amizade de longa data. É verdade que eu
tinha alguns anos a mais do que ele, mas a sua postura era claramente
de suspeita. A suspeita era o seu método.
Só
uma vez ou duas pus a hipótese de como seria se eu fosse mulher
junto de Raimundo e a verdade é que essa possibilidade me perturbou
de tal forma que nunca mais me atrevi a colocá-la. O destino de
Estela era mais do que suficiente para me demover. Com Raimundo, só
me restava ser homem.
Certo
dia, ele perguntou-me porque motivo nunca me casara, e para não
estar com grandes explicações, limitei-me a responder-lhe que nunca
encontrara a pessoa certa. Claro que não lhe coloquei a pergunta
inversa porque já sabia o motivo pelo qual ele não se casara…
Penso
que Raimundo desconfiava do meu drama. Como poderia ser de outra
maneira ao fim de tantos anos de convívio? Mas ele seria a última
pessoa no mundo com quem eu admitiria falar sobre o assunto. Se o
fizesse, Raimundo pôr-se-ia logo a contabilizar e concluiria que ser
mulher e homem ao mesmo tempo acabava por constituir um dispêndio
incomportável. Para ele, seria uma despesa a dobrar… Para mim, era
uma questão de monstruosidade. Ser mulher e homem simultaneamente
era uma anomalia. Eu era um monstro, uma excepção, um caso à
parte. Ninguém se identificava comigo e eu não me identificava com
ninguém. Assim se fazia a minha solidão. Uma solidão completa, que
nem através do sexo consegui superar. Na rua, olhavam-me e a
sensação que eu tinha era a de que seria inútil dirigirem-me a
palavra. Claro que ninguém o fazia, mas ainda que o fizessem, eu
sentir-me-ia sempre só, sem aquela protecção elementar que uma
certa forma de sintonia íntima provoca em seres da mesma espécie.
Havia,
no entanto, um aspecto curioso: junto de Raimundo, nunca me senti
monstro, nunca me senti diferente da massa dos cidadãos, nunca me
senti à margem. Talvez porque na sua companhia eu assumia apenas uma
das minhas facetas, a de homem.
Toda
a gente me fazia sentir inapelavelmente monstro. Por isso, acabei por
desistir de ir à igreja, a concertos, a museus, ao cinema, a
exposições.
Depois
de conhecer Rute, nunca mais tive dúvidas de que ficar em casa era a
atitude mais sensata e… desejada. Rute fazia-me esquecer tudo e
isso era o melhor que me podia acontecer. Rute bastava-me. Só por
si, ela superava toda a arte, todas as ocorrências, todas as
dúvidas, todos os conhecimentos, todas as reflexões. Quem tinha
Rute não precisava de mexer um dedo. Era suficiente olhá-la e
usufruir do seu poder de sedução e comunicação. Não que ela me
fizesse esquecer a minha condição monstruosa, mas tinha a arte de a
suavizar, de a tornar mais amena, mais aceitável.
Com
Rita, fui um monstro completo e insano. Não a raptei, não a subtraí
à família de forma premeditada, mas a verdade é que nunca dei um
passo para a devolver aos seus. Quem encontra alguma coisa, uma
carteira com documentos ou dinheiro, tem o dever de a entregar a quem
de direito ou a quem a possa devolver ao seu dono. Com Rita, eu
simplesmente nada fizera para resolver a situação.
Senti-me
monstro durante muitos anos. Que outro nome se pode dar a alguém com
quem as pessoas não se identificam, alguém de quem fogem, alguém
que receiam sem saber porquê? Procurei proceder de forma oposta à
de um monstro, mas sei que o fiz sempre em vão. Aliás, quanto mais
procurava não ser monstro, mais o era, ou mais sentia que o era. A
minha monstruosidade era tal que, ao pé de Raimundo, eu tinha a
impressão de estar, muitas vezes, ao lado de um anjo. Para quem não
me conhecesse, eu era praticamente impossível de imaginar. Esta era
a grande e verdadeira aberração que me caracterizava.
12
Rute
não se sentia à vontade com as suas pernas. Por isso, andava
geralmente de calças. Só uma ou duas vezes a vi de saia. Sempre
pensei que preferia usar calças para ocultar a cicatriz que herdara
dos tempos de juventude. Uma vez, falei-lhe nisso e ela não hesitou
em responder-me que tinha uma má relação com as suas pernas. Nada
tinha a ver com a cicatriz, que até funcionava, por vezes, como um
elemento catalisador. Confessou-me que as suas pernas a incomodavam
de tal forma que, em casa, costumava sentar-se no sofá e estendê-las
sobre a mesa baixa da sala de estar onde as massajava, a ver se
aprendia a gostar mais delas. Além de tudo, sentia que já não eram
as mesmas de há trinta anos atrás.
Eu
achava aquilo uma loucura, porque sabia que Rute continuava a ter o
par de pernas mais desejado das redondezas. Dizia-o, mas ela não
ficava satisfeita. Das suas pernas, tinha a mesma opinião que sobre
ela mesma:
“São
horríveis! Só um cego as pode apreciar”, afirmava.
Além
disso, considerava que aos cinquenta anos de idade, as suas pernas já
não tinham a maleabilidade e o poder de reacção de outros tempos.
“E
que direi eu das minhas?!”, alvitrava eu. “Verá como aos oitenta
terá saudades das suas pernas aos cinquenta”.
Rute
comparava as suas pernas uma com a outra ali mesmo na minha frente
num dos raros dias em que não viera de calças. Na sua opinião, em
nada se assemelhavam. Dava a ideia de que pertenciam a corpos
diferentes.
“Está
a ver?”, apontava.
Seria
da idade? Da cicatriz? Da aproximação da velhice? A perna esquerda
parecia-lhe mais perra, menos ágil, menos desenvolta. A direita
prestava mais atenção aos detalhes do andamento, talvez por um
efeito perverso da cicatriz. Era preciso dar mais trabalho à
esquerda. Para que as duas pudessem levar uma vida equilibrada, para
que vivessem irmanadas num mesmo objectivo.
Quando
me falou da sua vida depois dos cinquenta, Rute teve a preocupação
de sublinhar que se habituara a pensar nos outros, só nos outros.
Para ela, o outro era o objecto de uma causa, era a causa em si. E
nada mais havia que valesse a pena. As suas pernas davam-lhe que
pensar, mas nunca por mais de cinco minutos. De qualquer modo, era
com elas que andava e tinha acesso aos outros, ao desempenho da sua
profissão.
“Ai
de mim se não fossem as minhas pernas”, dizia, como se para se
desculpar da preocupação que me manifestara relativamente a elas.
No
fundo, a acção junto dos outros justificava a sua vida. Cada um
vivia por si, mas como Rute se considerava absolutamente
insignificante – e feia – dedicara todo o seu tempo aos que a
rodeavam.
Desde
há muitos anos, desde que se convencera em definitivo da sua
aparência repulsiva, abdicara por completo da sua própria
existência. E fizera-o sem sombra de mágoa ou ressentimento. O seu
sorriso permanente superava todos os instantes, todos os eventuais
constrangimentos ou situações difíceis. Ela vivia para as
dificuldades, para os problemas. Quando não os tinha, inventava-os e
resolvia-os.
Ao
contrário do que acontecia comigo, Rute nunca parava em casa, a não
ser para mudar de roupa, ou para dormir. Andava sempre a correr. Como
se houvesse qualquer coisa ou alguém a persegui-la.
Peguei
no telefone para voltar a ligar para o hospital a fim de saber alguma
coisa sobre a atenção que tinham dado ao meu pedido, mas hesitei,
receando que o gesto de marcar alguns números no aparelho fosse
suficiente para me distrair e baralhar. Acontecia-me muitas vezes.
Estava a fazer uma coisa e, se me ocorria outra, procurava resolver
as duas ao mesmo tempo, para não me esquecer de nenhuma, só que
depois já não sabia a quantas andava, misturava tudo e acabava por
deixar sempre alguma coisa para trás.
Para
não perder o fio à meada, decidi esperar mais algum tempo pela
ambulância, decidi ter paciência. Pela forma como me sentia, era
pouco provável que a minha saúde corresse algum risco. O simples
gesto de ter estendido a mão para o telefone foi suficiente para me
desorientar. Pensando em Rute, só via Auxiliadora na minha frente.
Voltei atrás, para tentar lembrar-me onde me encontrava e pareceu-me
que nada fazia sentido. Ouvi tiros – eu, que nunca andei na guerra
– e vi reflexos de água no tecto da casa, sobre riscos, palavras
desconchavadas, sílabas fora do sítio. Confesso que tive medo.
Senti-me fraquejar e pus a hipótese de ter piorado de um momento
para o outro. Mas logo a seguir percebi que afinal tudo não passava
de uma distorção passageira dos sentidos, provavelmente derivada do
movimento brusco da mão em direcção ao telefone. Olhei de novo e
não tive quaisquer dificuldades em observar o que se me apresentava
diante dos olhos. As coisas tinham voltado ao lugar, tinham
recuperado a sua lógica e eu reencontrara o meu nexo.
Para
passar o tempo, voltei ao meu divertimento preferido, que era fazer
corridas de carros sobre a cama. A mão esquerda seguia num sentido e
a direita no oposto, a ver qual delas atingia a meta em primeiro
lugar. Com a boca, fartava-me de fazer barulho de motores em alta
velocidade e manobras perigosas na ultrapassagem das dobras mais
salientes do lençol. Ao fim de uns minutos, senti que o cansaço se
apoderava das minhas articulações e músculos. O pulso doía-me. A
ambulância não chegava. E os meus carros já não tinham
combustível para contornar a montanha íngreme que se elevava na
passagem do lençol para o cobertor. Eu já tinha bastante menos
poder físico que uma criança. Estava a consumir-me, a negar-me aos
poucos, a esvair-me.
Para
evitar que a fraqueza e a velhice a dominassem, Rute procurava
ocupar-se com algo que a prendesse ao presente, que não a obrigasse
a analisar o que deixara para trás. Até os seus momentos de maior
silêncio e concentração eram devotados aos outros. Quando se
debruçava sobre um dos seus doentes tentando descobrir que tipo de
maleita o apoquentava era de si mesma e da sua beleza que Rute
continuava a fugir. E fugindo de si mesma, ficava com a sensação de
que tinha mais vida pela frente.
A
beleza de Rute foi sempre uma dor de cabeça para muita gente,
incluindo para ela. Este não era um dos seus temas preferidos de
conversa, embora não se recusasse a falar sobre que assunto fosse.
Mas a sua beleza era tão grande, tão invulgar, tão descomunal, que
não era de admirar que Rute se sentisse incomodada ao falar de si
própria. No seu lugar, qualquer um sentiria o mesmo. A sua beleza
era ainda mais estranha porque, ao fim e ao cabo, fora sempre um
equívoco.
Quando
Rute passou a fronteira dos quarenta, não lhe restaram dúvidas de
que a sua fenomenal aparência em nada contribuíra para a realizar
profissionalmente. Se fosse bonita, pensava ela, teria casado e
conseguido um bom emprego no hospital local ou no ministério da
Saúde. Como assim não acontecera, estava mais que provado que era
feia, feia da cabeça aos pés. Ninguém a convenceria do contrário.
E quanto mais vezes lhe dissessem que era bonita, mais ela se
convenceria do oposto.
Terminara
o curso de Medicina e passara a dedicar todo o seu tempo aos outros,
pobres e ricos, conhecidos e desconhecidos. Se alguém fazia
comentários sobre a sua beleza, nem ouvia.
Na
juventude, habituara-se a aceitar os convites dos pretendentes, na
esperança de, mais tarde ou mais cedo, encontrar quem reconhecesse a
sua fealdade e se ligasse a ela exactamente por aquilo que era e não
por aquilo que aparentava. Rute queria que alguém reconhecesse que
gostava dela por ser quem era e não por ser quem parecia. Queria que
alguém a olhasse e não dissesse que ela era bonita. Mas todos os
que a abordavam pensavam exactamente o contrário, pensavam que ela
gostaria que lhe reconhecessem a beleza. Era o que faziam. Com
resultados catastróficos.
Inicialmente,
alguns pareciam capazes de a compreender, mas, depois, acabavam por
derrapar e confessar a atracção pelo seu físico. Rute não admitia
que isso pudesse determinar uma relação. Reagia de tal maneira que
eles acabavam por se afastar. Criou aversão à sua imagem e à das
pessoas que conheceu de perto. Retirou de casa todos os espelhos para
não se confrontar com o reflexo de si mesma, para não ter que
discutir com um pedaço de vidro se o seu aspecto era mais assim ou
mais assado, para não esclarecer dúvidas acerca da sua aparência.
Preferia
viver sem dramas, sem questões de maior a apoquentarem-lhe a alma. A
beleza fora a grande tragédia da sua vida na altura da entrada para
a adultez e isso bastara-lhe. Quando lhe vinham lembranças à mente,
afastava-as com rapidez e eficácia. E para não ser levada por
alguma tentação avançava para a casa de outro doente.
Não
valia a pena recordar. Para Rute, recordar era um acto de fraqueza.
Era sinal de que, no presente, não havia nada para pensar nem viver.
E, vendo bem, não havia, realmente. Só que, se hoje não havia nada
que valesse a pena viver, isso só poderia significar que antes não
houvera nada que valesse a pena recordar. Era tudo banal e
transitório.
Rute
falava muito, mas falava sempre de coisas à sua volta, de situações
acabadas de ocorrer, de pessoas que via ou de ideias que tinha. Se ao
longo dos anos me contou a sua vida foi porque eu insistia em
condicionar as nossas conversas e porque ela, no fundo, era incapaz
de não aceitar um desafio. Por iniciativa dela, nunca me teria
contado uma vírgula do seu passado.
Rute
decidira dedicar-se aos outros porque os outros eram banais,
transitórios, mortais? Com certeza. E, além de tudo, não a faziam
pensar nela mesma. Visitava doentes, de livre vontade, sem cobrar um
tostão. Trabalhava noite e dia.
Desde
há anos que exercia a profissão de médica, por conta própria,
atendendo todos os que necessitavam dos seus serviços, como se
aquele fosse o único sentido que a vida lhe tivesse reservado.
Quando lhe perguntavam o custo da deslocação ou da consulta,
limitava-se a sorrir, sugerindo que aceitaria o que lhe dessem. Um
dia, deram-lhe um pacote de rebuçados e ela ficou tão feliz como se
lhe tivessem dado um contentor de moedas.
O
que lhe davam eram mais do que suficiente do que necessitava para o
dia a dia.
“Não
percebo como vivo com tão pouco dinheiro”, disse-me ela, certa
vez, como se a modéstia dos seus dias se devesse a um milagre divino
e não à arte com que geria a sua dedicação aos outros.
13
Raimundo
chorou uma vez na vida, quando a banca lhe recusou crédito para a
aquisição de um conjunto de prédios urbanos degradados, cujo preço
de mercado era especialmente favorável ao comprador. Na altura, ele
não dispunha de liquidez financeira para concretizar a operação.
Na banca, bombardearam-no com perguntas, escalpelizaram a sua
contabilidade e demonstraram que não estava em condições de
contrair o empréstimo.
“Compreenda
a nossa posição…”, disse-lhe o administrador, na hora de lhe
comunicar a decisão.
Raimundo
olhou-o no instante em que terminava a frase e não conseguiu mais do
que repetir o que o outro dissera:
“Compreenda
a nossa posição…”.
Vendo
bem as coisas, a posição do banco era compreensível de um ponto de
vista tradicional. Só que, numa perspectiva mais ampla, Raimundo
achava que era fundamental o banco perceber que nenhuma das partes
devia perder aquela oportunidade. O conjunto de prédios em questão,
uma vez recuperado, passaria a ter um valor de mercado bastante
superior ao da aquisição, o que permitiria a Raimundo realizar
invejáveis mais-valias.
“Este
é um desafio decisivo para o meu futuro”, dizia Raimundo a um
administrador visivelmente céptico.
Apesar
da recusa, porém, Raimundo não perdeu a esperança. Voltou ao banco
uma quantidade de vezes, procurando inverter a situação a seu
favor. O negócio era-lhe tão favorável que lhe custava a aceitar
que o seu banco de sempre não se dispusesse a financiar-lhe a
operação. Além do mais, a recuperação de vários edifícios
degradados seria um ganho para a cidade e para muita gente que não
tinha posses para adquirir novas habitações ou escritórios.
Pareceu-lhe
injusto que a banca não tivesse critérios para compreender que uma
boa oportunidade para ele seria também uma boa oportunidade para
quem confiasse na sua capacidade de gestão.
Se
era verdade que se tratava de uma operação de risco – o banco
considerava que a sua capacidade de endividamento tinha atingido o
limite – não era menos verdade, também, que ele dispunha de um
sólido capital de confiança junto da instituição. Era impensável,
para ele, que esse capital de confiança não se traduzisse em
números.
No
que respeitava à sua situação financeira, Raimundo estava
convencido de que a aquisição de uma quantidade de prédios que ele
recuperaria e posteriormente venderia era uma operação decisiva
para o restabelecimento da sua tesouraria. O importante era obter o
empréstimo para a compra dos prédios e para as respectivas obras de
recuperação.
O
banco, contudo, e apesar da sua insistência, manteve a recusa. Ao
fim de algumas reuniões com técnicos e directores, a resposta
negativa acabou por chegar, seca e sucinta, definitiva, pelo correio.
A
carta deixou Raimundo mergulhado num ataque de fúria que
estrebuchava de espuma pelos cantos da boca. Sentia-se ofendido.
Sobretudo depois de todo o empenho que colocara nas negociações.
Aquela recusa era uma completa humilhação. Raimundo tinha o
pressentimento de que o objectivo de quem lhe negava o crédito era
rebaixá-lo, martirizá-lo, um sentimento que o destroçava.
Incapaz
de se conter, logo após a leitura da carta que acabara de receber do
administrador com quem dias antes estivera reunido, deu vários
toques no tampo da secretária com a ponta do dedo indicador, um
gesto que era o sinal maior da sua revolta e que significava:
“Se
o apanho, juro que não lhe deixo um osso no lugar!”
Era
o que lhe apetecia fazer e ele sentia-se capaz de concretizar a
ameaça, caso o bancário lhe aparecesse no escritório naquele
preciso instante. Raimundo atirar-se-ia a ele de unhas afiadas,
atacá-lo-ia como um leão enraivecido.
Por
vezes, sonhava que cometia uma loucura, desfazia alguém aos bocados,
arrancava vísceras, cortava cabeças e corria para a rua com duas ou
três levantadas na mão, para que toda a gente visse o resultado da
sua proeza. Isto independentemente de as vítimas lhe terem feito
alguma coisa, ou não.
Para
o enfurecer, bastava não lhe fazerem a vontade. À noite, Raimundo
fervilhava em sonhos de vingança. E quanto mais tinha consciência
de que só matava em sonhos – e que por isso ninguém o poderia
condenar – mais devastador era o seu ímpeto de destruição.
Não
se tratava de “matar” por razão nenhuma, mas sim de “matar
cruelmente” por razão nenhuma. Fazia diferença. Raimundo
detestava ver sangue. Por isso, talvez sentisse necessidade de
exercitar a inconsciência com cenários em que havia muito sangue,
sempre sangue, quanto mais sangue melhor. Não se atreveria a cometer
um crime em estado de vigília. Nem seria capaz de dar uma bofetada
em alguém. Era completamente inofensivo, nem que fosse para não
perder a oportunidade de ser livre e continuar a ganhar dinheiro por
muitos e longos anos. Por isso, não me preocupei quando ele um dia
me falou nos seus sonhos violentos.
Os
crimes que Raimundo praticava a dormir eram o seu único devaneio, a
sua única ficção. Nunca seria julgado por eles, mantinham-no
ocupado durante o sono e contribuíam para o aliviar da pressão de
todos os dias. O sono era o mundo das suas vinganças secretas. A
morte, mesmo que apenas sonhada, era um caminho para devolver sentido
à sua realidade apagada e triste.
Raimundo
preparava-se mentalmente para o crime antes de adormecer. Sabia que
quanto melhor se concentrasse num objectivo maiores seriam as suas
hipóteses de o alcançar, ainda que em estado de inconsciência ou,
conforme acontecia muitas vezes, de semiconsciência, que era o que
maior prazer lhe dava. Pensava neste e naquele, num concorrente ou
num vizinho, nos filhos deles e nas mulheres, nos negócios que
tinham ou que ambicionavam ter, cogitava sobre a melhor maneira de os
tramar, de os aniquilar, e depois deixava o resto entregue ao sonho.
E os seus sonhos eram quase sempre implacáveis, muito mais
implacáveis do que se na verdade matasse alguém. No dia a dia, na
realidade palpável e imediata, Raimundo não tinha coragem de puxar
o gatilho de uma arma, nem sequer de arranhar a face de um
desconhecido. Era durante o sono que a sua crueldade se manifestava
em todo o esplendor. Matar a dormir era uma forma de se limpar por
dentro, de se libertar dos traumas e angústias que o apoquentavam.
Os seus sonhos tornavam-se tão realistas que, frequentemente, ao
acordar de manhã, a primeira coisa que fazia era verificar se tinha
sangue nas mãos. Era um sobressalto acordar assim, mas ele não se
importava dos sustos que apanhava porque estes o faziam levantar mais
depressa da cama, despertando-o, tornando-o mais célere nas
respostas que se via na obrigação de dar a todo o momento.
Raimundo
estava convencido de que cometer crimes a dormir era, além do mais,
uma forma de nunca os vir a cometer na verdade. A ficção do crime
servia para a sua vingança e, ao mesmo tempo, acabava por constituir
uma terapia. Para ele, só a ficção da crueldade valia a pena. O
resto era perda de tempo.
“Depois
de matar alguém a dormir sinto que tenho menos um problema para me
chatear”, disse-me ele num dia raro em que abordou o assunto e
parecendo completamente seguro de que eliminava mesmo pessoas. E
ainda havia o aspecto de ele considerar que só venceria o trauma de
não poder ver sangue se as mortes fossem cruéis, determinantemente
cruéis.
Raimundo
sabia que ninguém, nem sequer Estela, fazia a mais pequena ideia
sobre quanta revolta e poder de vingança acumulava dentro de si. E
fazia-o na certeza de que se comportaria com o maior civismo na
eventualidade de alguém em nome do banco o visitar no momento em que
terminara a leitura da carta que confirmava a recusa do tão almejado
empréstimo para a compra dos imóveis, alguém do banco ou alguém
que ele já tivesse matado enquanto dormia. Estas eram, aliás, as
únicas pessoas que na realidade tratava com deferência e
cordialidade, como se tivesse remorsos de lhes ter tirado a vida
durante o sono. Tentava compensar o crime com a cortesia do trato. O
que não o impedia de, na primeira oportunidade, adormecer a pensar
afincadamente nas mais diversas formas de eliminar novamente as
pessoas em questão.
Matar
a dormir tinha ainda a vantagem de Raimundo poder sacrificar uma
vítima mais do que uma vez. A dormir, a pessoa morria, mas no dia
seguinte recuperava a vida, os gestos, as falas, o andar. Deste modo,
Raimundo tinha a possibilidade de fazer voltar à carga o seu
instinto assassino.
A
partir do dia em que recebeu a resposta negativa do banco, Raimundo
teve a certeza de que dali em diante detestaria todos os empregados
bancários que conhecia e com os quais se relacionara
profissionalmente nos últimos anos, teve a certeza de que
intimamente os trataria com sobranceria e desprezo, teve a certeza de
que veria um execrável empregado bancário em toda a gente que lhe
surgisse pela frente e passou a odiar toda a alma viva que lhe
fizesse lembrar uma instituição de crédito.
Se
lhe parecesse que alguém na rua tinha as características ou os
tiques de quem trabalhava num banco a primeira coisa que pensava era
a forma como tiraria a vida a essa pessoa naquela mesma noite.
Registava mentalmente os seus dados físicos para que mais tarde
pudesse ser exacto e eficaz na forma de matar.
Quando
tinha um sonho verdadeiramente feroz, Raimundo começava pelos olhos.
Arrancava as órbitas e, depois, seguia-se a boca, à qual arrancava
a língua, e por aí adiante. Tudo dependia, também, da reacção da
vítima. Tinha várias opções: se a vítima cedia à sua vontade,
ia-a destruindo a partir dos olhos, progressiva e metodicamente. Se
se confrontava com uma reacção desesperada, procurava desnorteá-la,
machadando-lhe a cabeça, decepando-lhe as pernas, quebrando-lhe os
joelhos. Atacava sempre de forma imprevisível, com vista a aumentar
o efeito de choque. Os sonhos de Raimundo eram tão precisos e
rigorosos que, por vezes, ele chegava a duvidar se se tratavam mesmo
de sonhos. Mas a hipótese de o não serem revelava-se de tal maneira
perturbadora que nem chegava a tentar averiguar o que realmente se
passava.
Os
crimes de Raimundo só aconteciam em sonhos, só podiam acontecer em
sonhos, conforme tive o ensejo de lhe garantir no dia em que me tocou
no assunto. Eram tão malvados que ninguém seria capaz de alguma vez
os concretizar. Nem sequer Raimundo.
Para
ter a certeza de que ninguém se apercebia da fúria que o atacava no
momento em que digeria o primeiro fracasso bancário do seu percurso
de investidor, Raimundo foi trancar a porta do gabinete e quando
vinha em direcção à janela, aproximou-se da secretária, levantou
o auscultador do telefone e poisou-o, levantou-o e poisou-o,
levantou-o e poisou-o repetindo o gesto mais de uma dúzia de vezes.
A sua revolta hesitava sobre se deveria telefonar ao administrador do
banco ou se deveria conformar-se com a recusa do empréstimo.
Enquanto
não se decidia, insultava os bancos – todos os bancos – em
surdina, entre dentes, insultava um a um os bancários que conhecia,
pronunciando as sílabas dos seus nomes, de forma martelada, como se
obedecendo a um estranho código; erguia-se e sentava-se; pronunciava
palavrões com as narinas; dava pulinhos nas pontas dos pés
parecendo um bailarino em exercício momentos antes de subir ao palco
ou parecendo que esmagava todos os bancários do planeta.
Como
medida preventiva, não fosse dar-se o caso de sofrer um colapso
cardíaco, Raimundo dirigiu-se ao armário que tinha junto à mesa de
trabalho, abriu uma pequena embalagem de medicamentos e engoliu dois
comprimidos. Enquanto engolia, pensava no seu coração e na forma
como aguentava os imprevistos do dia a dia. Depois, pensou que, se
morresse, ninguém apareceria no seu funeral. E se alguém
aparecesse, fá-lo-ia a pensar no seu dinheiro e não para se
despedir dele. Mas Raimundo também sabia que não existiam motivos
para que alguém se compadecesse dele no momento da sua morte. Em
vida, não quisera saber de ninguém e aqueles por quem um dia se
interessara acabaram por se afastar com o passar dos anos.
O
tempo matava tudo, até o interesse que os seres humanos a dada
altura despertavam. Com o decorrer do tempo, as pessoas cresciam,
adoeciam, mudavam de sítio, casavam, envelheciam, morriam, alterando
os sentimentos, os relacionamentos mais sólidos.
As
pessoas que o rodeavam eram constrangidas e falsas. Se mostravam
simpatia, faziam-no por formalidade.
Por
mais que tentasse distrair o espírito, Raimundo acabava por voltar
ao assunto do banco. Não conseguia aceitar a ideia de que a
instituição com a qual sempre trabalhara estivesse a recusar-lhe um
pedido de empréstimo.
“Sei
muito bem o que eles querem!”, disse para si próprio num ligeiro
murmúrio, à falta de outro interlocutor, enquanto fixava um ponto
invisível na parede. “Se acham que sou tolo, eu dou-lhes o tolo…”.
Raimundo garantia a si mesmo que só pretendiam extorquir-lhe uma
comissão sobre o empréstimo. Se desse o seu consentimento à
falcatrua, não tinha dúvidas de que o caso se resolveria. Mal
encaminhado estaria o banco se o julgasse desprevenido. Não haviam
de se consolar, porém, pensava consigo próprio, enquanto arrastava
os pés no soalho à procura de uma alternativa. Dez por cento de
comissão? Nem se atrevessem. Nem dez, nem dois, nem um por cento!
Não obtivera o empréstimo, mas também não daria um tostão a
ganhar a ninguém. Ao fim e ao cabo, quem lucrava era ele.
Mas
este pensamento, por mais legítimo que fosse, não o impedia de
enfrentar a dura realidade que era a incompreensão do banco. Claro
que podia recorrer a outra instituição financeira, mas a verdade é
que depois de ter passado o que passou não lhe apetecia ir bater a
outras portas. Mendigar não era a sua profissão.
Imaginou-se
a pedinchar crédito, deixou-se cair sobre a poltrona que ficava
diante da secretária, cobriu o rosto com as mãos e desatou a chorar
como uma criança que não esquece a mágoa, a agressão, a ofensa.
Foi aqui que chorou, já depois de ter descarregado toda a sua fúria
em sonhos calculados de morte.
Queria
ter alguém com quem desabafar naquela altura, queria estar com
alguém que tivesse pena dele, mas ao mesmo tempo não queria ver
vivalma porque era incapaz de chorar diante de gente. Raimundo só
gostaria que tivessem pena dele, mas sabia que isso era impossível.
E indignava-se por não ter a oportunidade de se sentir mais humano,
mais frágil, como acontecia sempre que arrastava os pés pela casa
ou pelo escritório.
Ninguém
se apiedava dele porque era rico. A piedade tem tudo a ver com a
falta de dinheiro. Geralmente, sente-se piedade de um pobre que não
tem onde cair morto e Raimundo era tudo menos pobre.
Chorou
lágrimas finas e silenciosas, chorou facas líquidas projectadas nas
paredes brancas que o encurralavam. Fê-lo, sabendo que era a última
vez que chorava. Não que o prometesse a si próprio. Apenas sabia
que depois daquelas lágrimas não lhe restariam mais para derramar.
Para Raimundo, as lágrimas corriam para secar e com as lágrimas
secavam as pessoas.
O
desgosto de Raimundo era tal que nem sequer lhe apetecia continuar a
trabalhar para não alimentar a cobiça dos bancos. Apetecia-lhe
desistir de tudo, fechar-se em casa, não ver ninguém e ficar para
ali à espera de que a morte o viesse buscar.
Mas,
ao mesmo tempo, havia qualquer coisa que o impelia em outra direcção,
que o incentivava a prosseguir, nem que fosse para se vingar das
instituições de crédito, demonstrando que podia continuar a
crescer sem ter de recorrer ao financiamento de terceiros.
Não
teve pressa em acabar de chorar. Deixou correr tudo o que havia para
correr. Chorou até sentir que estava seco, garantindo a si próprio
que nunca mais passaria pelo vexame de um banco lhe recusar crédito.
Este
foi um dos episódios da sua vida profissional que Raimundo me contou
e que julgo ter sido determinante na definição do seu percurso.
Quando mo relatou, anos mais tarde, parecia ainda estar a viver o
acontecimento, parecia ainda ter necessidade de desabafar. Nunca o
tinha visto possuído por tanto rancor.
No
banco, haviam-no flagelado com perguntas e dúvidas de toda a espécie
para, no fim, insistirem em discordar da sua estratégia e lhe
recusarem o empréstimo.
Na
altura, Raimundo chegou a pensar que o mundo era como era porque a
sociedade em geral obedecia aos constrangidos ditames financeiros dos
bancos. E não teve dúvidas de que a banca poderia ter muito mais
sucesso e peso se tivesse meios de contabilizar as emoções dos seus
clientes. Ao menos não precisaria de fazer lavagens de dinheiro e
recorrer a operações menos lícitas. A honestidade não era
incompatível com a riqueza. Um número não devia ser apenas um
símbolo de uma equação racional, mas também o símbolo de uma
equação nervosa, capaz de enriquecer e solidificar toda e qualquer
transacção financeira. Raimundo não tinha dúvidas de que o
segredo de tudo estava na “equação nervosa”. O sucesso e o
insucesso. Quando matava gente a dormir efectuava uma equação
nervosa. E tanto assim era que no outro dia de manhã, ao despertar
de um daqueles sonhos que ninguém hesitaria em considerar de
horrível se sentia descontraído e leve como uma andorinha.
Quando
as lágrimas estavam praticamente no fim e ele se preparava para
dizer a si mesmo que aquelas seriam as últimas, o telefone tocou.
Porém, ele não atendeu, deixando que a campainha insistente
parecesse o eco da revolta que carregava dentro de si. Uma revolta
hirta e fria, uma revolta só dele, que levaria para o túmulo, como
se martelando ainda as sílabas do nome do administrador que se havia
recusado a confiar nele (e, por arrasto, o nome de todos os
empregados bancários existentes no planeta; e, por maior arrasto, o
nome de todos os que se cruzavam com ele e que tinham cara de ser, ou
de ter sido, empregados bancários).
O
administrador do seu banco merecia a pior morte. Havia de preparar o
caso numa das próximas noites quando não tivesse ninguém mais
odioso a quem tramar. Não lhe restavam dúvidas de que a noite em
que mataria o reles director de crédito havia de ser inesquecível e
repousante. Raimundo não se sentia pior do que o comum dos cidadãos.
Ele próprio mo disse uma vez, receoso do que eu pudesse pensar:
“Posso
ser um assassino em potência”, explicou. “Mas deixo de sê-lo a
partir do momento em que assumo que o sou apenas em potência.
Aniquilo a minha potência ao reconhecer o que sou”.
Raimundo
tinha aquela forma de se explicar não explicando, enrolando palavras
que se contradiziam ou que nada acrescentavam…
Apesar
de tudo o que arquitectou para se vingar do banco, sabia que dali em
diante se limitaria a mudar de forma radical o seu relacionamento com
as instituições de crédito, independentemente das vénias que
faria aos bancários que com ele se cruzassem. Tinha a certeza de que
enriqueceria mais depressa sem os bancos e sem a submissão aos seus
métodos de trabalho. Quando o contrariavam, ia aos píncaros, mas
sabia que aquilo só lhe fazia bem porque estimulava o seu raciocínio
e o obrigava a encontrar novos caminhos que eram geralmente melhores
do que os inicialmente pensados.
A
partir daquele dia, ordenaria o encerramento de todas as suas contas
(dele e da empresa) no banco em questão, o que significaria uma
perda para a instituição com que desde sempre trabalhara.
De
ora em diante, Raimundo seria o seu próprio financiador, seria o seu
próprio banco. Era uma questão de começar aos poucos, de ir
gerindo os recursos de acordo com um novo entendimento do processo
financeiro. Um entendimento que assentava nas virtualidades do
racional e do emocional. Poria ambas as virtualidades ao seu próprio
serviço. Esqueceria o negócio dos imóveis degradados, mas
empenhar-se-ia doravante em aplicar os seus investimentos com rigor e
eficácia, ora de forma cerebral e implacável ora de forma hesitante
e emotiva, para que a sua racionalidade e implacabilidade fossem
ainda mais convincentes. O importante era nunca perder de vista o
objectivo do negócio. Por vezes, o sucesso da caça estava na
demonstração de um espírito de incerteza e divagação que
conduzia a presa aos braços do atirador. A recusa do banco tinha
acabado por conduzi-lo a um novo caminho de negócios, um caminho
solitário, diferente do que ele projectara, e que se viria a revelar
bastante mais produtivo do que alguma vez imaginara.
14
Não
me admiraria se Rute aparecesse cá em casa ao mesmo tempo que a
ambulância. Estranho de tal forma o seu afastamento que tendo a
relacioná-lo com o atraso dos serviços de emergência. Rute está
sempre tão junto de mim que nos dias em que não me visita sinto que
a sua presença é ainda mais forte, mais avassaladora. Esta
sensação, porém, não substitui a pessoa.
Como
Rute fala pelos cotovelos, quando estou só, fico com a impressão de
ouvir o eco das suas palavras. E o eco é bastante mais do que a
palavra, porque a estende, amplifica, aumenta os contornos.
Conheci
Rute quando, certo dia, um dos meus vizinhos lhe pediu ajuda para me
tratar de uma gripe invulgarmente prolongada. De então para cá, a
amizade cresceu e, ainda hoje, quando não tem outros doentes para
ver, é frequente Rute deslocar-se a minha casa a propósito disto e
daquilo, ou a propósito de nada:
“Passei
para saber como estava”, costuma dizer, com voz arejada, longe de
adivinhar a profunda alegria que a sua presença me causa.
Muitas
vezes, nem se demora. Entra e sai, como se apenas precisasse de me
ver, como se quisesse certificar-se de que ainda estou por cá, de
que ainda resisto.
Inicialmente,
Rute visitava-me uma ou duas vezes por mês. Depois, passou a
visitar-me todas as semanas e, mais tarde, praticamente todos os dias
– e até mais do que uma vez no mesmo dia – por não poder
dispensar os momentos, conforme ela mesma assumiu, em que me fala das
coisas mais improváveis. Fá-lo por prazer, pelo puro prazer de
contar e de manter a mente ocupada.
A
nossa diferença de idades é superior a três décadas. E em três
décadas, há milhões de coisas que afastam e aproximam. Por isso,
nunca teríamos tempo para pôr em dia as nossas vidas, mesmo que o
tentássemos. Mas partilhamos muita coisa. Falamos de todas as
maneiras, sem inibições.
Quando
Rute não vem, como tem acontecido ultimamente, sinto-me chorar por
dentro, tal a necessidade que tenho dela. Chorar por dentro dói mais
do que todas as outras formas de chorar. É um choro abafado que
nasce na raiz das células e que nos inunda até ao mais ínfimo
recanto. Chorar por dentro é como ir morrendo em pedaços maiores.
Hoje,
Rute não veio, mas contenho a dor porque a ambulância pode chegar a
qualquer momento e não admito apresentar-me com ares de fraqueza,
nem de pieguice, a quem quer que seja, nem que me encontre a poucos
segundos de morrer. Não quero que me adivinhem, nem que me
pressintam.
Há
outros dias em que a ausência de Rute se transforma numa dor física,
concreta e material, uma dor que me invade e que sou incapaz de
controlar. É como se fôssemos da mesma matéria e eu não pudesse
estar longe dela.
Às
vezes, também a lembrança de Rita, que não sei onde está, me
destroça. Dou comigo frequentemente a recear que ela já nem se
recorde de mim. Sei que isso é totalmente improvável, mas acumulo
receios, desconfianças fundas. Pode acontecer tanta coisa a uma
jovem que toma a vida nas suas próprias mãos.
Quando
suspiro mais fundo, procuro fazer que não me oiçam no andar de
baixo. Não quero que saibam da minha dor e da minha comoção. Não
quero que pensem que enlouqueci com a idade e que ponham a hipótese
de me entregar a um hospício. Sabe-se lá as suspeitas que um
suspiro, um suspiro mais cavado, mais sonoro, pode gerar num prédio
urbano.
Suspiro
porque me vou embora. E nem suspiro de tristeza. Suspiro de emoção.
Suspiro por ter concluído as minhas tarefas. Suspiro porque sei que
Rita está viva, está algures fazendo o percurso da sua estafeta.
Suspiro por tanta coisa que não sei explicar, que não recordo, mas
que palpita em mim como se tivesse acabado de acontecer ou estivesse
prestes a repetir-se com uma intensidade redobrada.
São
poucas as coisas que actualmente me interessam. Uma é o ruído dos
passos de Rute subindo os degraus da escada do prédio onde moro,
outra é o toque do telefone, altura em que ponho sempre a hipótese
de ser Rita a dar notícias, mesmo quando se trata de alguém a
tentar recolher dados para um qualquer inquérito comercial.
Sempre
apreciei que Rute e Rita se metessem comigo, se intrometessem na
minha vida. De contrário, nada faria sentido para mim. Sempre
apreciei que me provocassem, que me incomodassem, que se fizessem
sentir vivas nos meus dias. Sem elas, eu teria sido outra pessoa.
Provavelmente, já não estaria por cá.
Foi
entre visitas curtas, entre idas e vindas, entre risos e horas
somadas de conversa que fui conhecendo Rute. Para além disso, há
muita coisa que se sabe através de um olhar, de uma hesitação na
voz, de um rosto mais baço ou mais ofuscante. Há muita coisa que se
sabe através de um sorriso, daqueles sorrisos nervosos cheios de
amargura estridente. Pelo odor da pele, quando se aproxima para me
saudar, chego a adivinhar os dias em que Rute toma duche antes de
sair de casa e os dias em que apenas se apressa a pôr qualquer peça
de roupa sobre o corpo.
Geralmente,
pressinto quando ela me vem visitar (nos últimos dias não pressinto
nada). Tem a ver com a cor dos dias, com a intensidade da luz
cinzenta, embora o cinzento não tenha intensidades dignas de
registo. Não sei explicar. O certo é que daí a pouco a ouço subir
as escadas do prédio onde vivo, até ao primeiro andar, com passos
suaves, delicados, cuidadosos e ponho-me logo a adivinhar muito do
que se passou na sua vida pelo som e pelo ritmo do seu andar. Se sobe
devagar, é porque anda a remoer alguma coisa do passado que acha
nunca ter resolvido adequadamente; se sobe depressa, é porque tem
alguns doentes à espera, mas passou pela minha zona e quis entrar
para me ver.
Ultimamente,
porém, não tenho tido sinais de Rute. Não a tenho ouvido subir as
escadas do prédio nem depressa nem devagar. Não tenho forma de a
adivinhar. Sinto-me no meio de uma perdição que me tolhe por
completo. E é essa perdição que faz explodir em mim a visão mais
ofuscante de Rute.
Um
dia, ela contou-me que ajudava as pessoas a morrerem felizes.
Contou-mo com um brilho nos olhos, como se dizer-me aquilo fosse um
momento de especial significado na sua vida. Contou-mo como se
tivesse esperado anos até arranjar coragem para partilhar o seu
segredo com alguém.
“Por
que não hei-de fazê-los felizes no momento da partida?”,
perguntava, entusiasmada com a certeza de que eu dificilmente
reprovaria a sua atitude.
Num
primeiro momento, quando as palavras ainda causavam um impacto de
ondas agitadas nos meus ouvidos, não tive a certeza de perceber os
termos que ela proferira, pensei que fosse confusão minha e esperei
para ouvir o resto.
“Só
os faço mais felizes na hora de morrer”, continuou ela. “Espero
o tempo que for preciso até chegar a altura de partirem e então
ponho-me a dizer as coisas bonitas que me vêm à cabeça. Sem
esforço, as palavras saltam, tropeçam umas nas outras e eu só me
preocupo em ordená-las, moderá-las”.
Naquele
dia, no preciso momento em que me contava algo de tão íntimo, Rute
falava como se mal pudesse parar para respirar, como se quisesse
certificar-se de que eu percebia tudo o que dizia e que, além disso,
aprovava o seu comportamento, embora não lhe restassem dúvidas de
que não poderia ser outra a minha posição. Nos intervalos da
conversa, olhava-me nos olhos, numa clara tentativa de adivinhar os
meus pensamentos.
Trouxera-me
à cama um copo de leite e tinha-se sentado na beira do colchão,
como fazia sempre que pretendia controlar melhor os meus gestos. A
minha reacção foi não esboçar qualquer gesto. Não me atrevi, não
quis influenciar o seu relato.
“Acho
que é preferível partirem felizes do que aterrorizados e
revoltados!”, acrescentou, algo aturdida com o meu silêncio.
Apetecia-me
fazer-lhe perguntas, saber mais pormenores, revolver a conversa para
deslindar melhor o que ouvia, mas receava que uma intervenção minha
lhe fizesse perder o rumo da conversa.
Ela
continuava a não hesitar em relação a mim, parecendo segura de que
eu não me intrometeria no seu raciocínio. A sua preocupação era
explicar, fazer-me perceber. Naquele instante, eu não era Lis. Era
muito mais. Era muitas mulheres e muitos homens ao mesmo tempo.
Como
era médica, ninguém estranhava que Rute quisesse ficar junto aos
doentes para os acompanhar nos derradeiros instantes de vida, ninguém
punha em causa as suas intenções. Não havia motivos para isso.
Rute limitava-se a garantir felicidade aos mortos, nacos de consolo
às famílias desesperadas…
Em
muitos casos, ela tinha a preocupação de organizar a morte com
antecedência, dependendo a urgência dos seus preparativos do estado
de saúde do doente. Rute sabia quem morreria dentro de pouco tempo,
calculava quem resistiria, e aproveitava as suas visitas de rotina
para recolher informação sobre o passado de cada um. Deste modo,
não lhe era difícil saber qual a pessoa já falecida que o
moribundo mais amara, por quem se tinha deixado marcar especialmente
(regra geral, um filho, a mãe, o marido…).
Esse
era um aspecto essencial para Rute. Na sua maneira de ver, só era
possível morrer bem, morrer em paz, na companhia de quem mais se
amava. Por isso, Rute procurava encarnar a pessoa que era mais
querida do moribundo, procurava encher de esperança o último
suspiro de mães, crianças, idosos. Preferia mulheres,
confessava-me, porque com elas se sentia mais à vontade, mas não
virava a cara a ninguém. Chegou a vestir-se de homem, com uma barba
postiça que tivera o cuidado de arranjar no dia anterior, só para
ter a certeza de que a mãe de duas gémeas de seis meses chegava ao
paraíso convencida de ter morrido na companhia do marido.
Depois
de a mulher ter expirado, quando Rute despiu as roupas de homem e a
verdade tomou conta dela nas suas vestes femininas, chorou que se
fartou, chorou de desgosto por não ter feito nada pelas duas órfãs
que uma das tias embalava na sala ao lado, enquanto a mãe morria
abraçada a uma estranha que pretendia fazer-se passar por seu
marido.
Rute
fazia um esforço tremendo para simular felicidade no momento em que
alguém morria, para não correr o risco de o defunto chegar ao outro
mundo mais desconsolado do que fora em vida. Se ela soçobrasse,
deitaria tudo a perder. Por mais que lhe doesse o papel que fazia,
sentia-se obrigada a desempenhar a sua tarefa com alegria. Havia
alturas em que ria muito, ria quase despropositadamente, para que não
restassem dúvidas de que a morte era um momento crucial de
felicidade que permitia o reencontro com os entes queridos, a
encruzilhada fundamental na vida de qualquer humano. E nenhum
moribundo resistia ao seu riso.
Eu
limitava a ouvi-la, descobri-la, compreendê-la, tentar
compreendê-la. No fundo, Rute era a actriz da morte. A actriz de um
só espectador, com o qual fazia tudo para o ajudar a desligar o
interruptor da vida.
De
todas as histórias que me contou, houve uma em que a vi claramente
recear que eu considerasse abusiva a sua atitude. Junto ao leito de
um homem com pouco mais de quarenta anos de idade, que padecia de
cancro intestinal, Rute começou por prepará-lo, dizendo:
“Deixe-se
ir… deixe-se ir ao encontro da felicidade, não tenha medo, eu
levo-o pela mão, estou aqui para o ajudar, feche os olhos, não se
aflija, os seus filhos estão bem entregues, estão preparados para a
sua partida, já lhes deu tudo, fez muito por eles, sacrificou-se
como ninguém, agora é tempo de pensar em si, é tempo de
descansar…, sossegue, dê paz à sua consciência, a sua alma quer
tranquilidade, a sua alma quer regressar”.
E,
depois, mudando completamente de tom, com uma voz pausada e grave,
como se de repente tivesse sido tomada por outro corpo, Rute moderou
o sorriso como o da foto da mulher que o doente tinha há anos sobre
a mesa-de-cabeceira, prendeu um lenço rapidamente à nuca, uniu as
mãos e garantiu ao homem ser ela a sua legítima esposa (falecida
duas década antes):
“Vem
querido, vem ter comigo, vem beijar-me e abraçar-me, que saudades
tinha do teu corpo junto ao meu. Zelei todos estes anos por ti.
Trataste muito bem o Casimiro e o Guilherme, fizeste dois filhos
lindos que amo acima de todas as coisas. Estão dois homens bonitos,
corpulentos, educados e regrados. Por eles se vê a generosidade do
pai que soubeste ser. Mas agora está na hora de seres generoso
contigo. E também comigo. Acabou-se o teu tempo na terra. Agora, é
a minha vez de te ter, de te sentir a meu lado, de te absorver a
alma. Os nossos filhos precisam de viver por eles, precisam de
caminhar sozinhos. Não deves tornar-te um peso nas suas vidas. Tudo
tem os seus limites. Não tenhas pena de partir. Só podes sentir
alegria, porque sabes que vens ter comigo. Guardei-te aqui no céu um
cantinho. Fiz-te a cama de lavado, incensei o quarto e esperei por
ti. E agora chegou o momento. Foi Deus quem me ordenou que te viesse
buscar. Deus compadeceu-se de ti. Não te aflijas. E achou que já
era tempo de nos reunirmos no seu reino divino”, ofegava ela,
transformada, transtornada, transmutada na mulher do moribundo,
tornada outra, uma estranha dela mesma sob os lençóis do doente.
E
após um compasso de espera, Rute disse-me sem pestanejar:
“Não
sei como foi possível acontecer aquilo, não me achava capaz de
fazer o que fiz. Nunca contei isto a ninguém. Peço que não leve a
mal o que vai ouvir, mas preciso de desabafar. Só espero que tenha a
frontalidade de me dizer se sentir que perde a consideração por
mim”, concluiu com um ligeiro estremecimento na voz.
Vendo,
porém, que não me arrancava palavra, deu o passo em frente, disse o
que nunca sonhara dizer, o que nunca se achara capaz de revelar nem
em segredo de confessionário: “Chegou uma altura em que me perdi”,
explicou. “E quando dei por mim, tinha na mão uma massa débil,
murcha, desencantada, que excitei com toda a energia da minha alma.
Era como se as minhas mãos tivessem adquirido um movimento próprio”.
Rute
parecia ter sido abandonada pelas forças da narrativa. Estava tão
cansada como o moribundo depois do último prazer terreno.
Tive
que desviar os olhos dos dela. Não aguentei. Precisei de reflectir.
Não perdi a consideração por Rute, mas espantou-me tomar
conhecimento do que ela me contava.
“Só
fiz aquilo para que ele tivesse a certeza de que eu era a sua
esposa”, acrescentou ela, querendo deixar claro que, na sua
opinião, a felicidade de um moribundo estava acima dos códigos que
os humanos engendram.
A
sua pretensão era que o homem se sentisse desejado naquele momento,
se sentisse bem recebido, se sentisse em casa, numa nova casa, para
lá do muro da vida, para lá do último suspiro. Se ela conseguisse
iludi-lo, o doente não teria problemas em passar a fronteira, não
teria receios, nem sofreria com a despedida dos filhos.
Quando
reencontrou os meus olhos, Rute sentiu confiança para continuar o
seu relato e disse-me que, depois do prazer que deu ao moribundo, se
aninhou contra ele, deitou a cabeça no seu peito e prosseguiu a
torrente de palavras por entre as quais a sua alma levantaria voo
para a eternidade: “Estás a ver-me, querido? Gostaste? Estás a
reconhecer-me? Acreditas agora que sou a Maria Alberta, a tua
mulher?”
E,
virando-se para mim, explicou que, à medida que falava, à medida
que Maria Alberta enchia o quarto do incenso que transbordava do seu
corpo, o homem assentia com a cabeça, sorria levemente, aflorava
movimentos de lábios ressequidos, sem no entanto conseguir travar a
companheira: “Quero-te forte e satisfeito”, dizia Rute… –
dizia Maria Alberta – diziam as duas ao mesmo tempo. “Agora que
estás consolado, vou mostrar-te as belezas do paraíso. Não te
arrependerás de vir comigo. Desprende-te, não penses no que fica
para trás, o que passou lá vai, agora tens-me junto de ti para
sempre, não voltaremos a separar-nos”.
Rute
disse-me que, extasiado pelo que lhe acontecia, o homem recuperou
forças e tentou erguer-se na cama, a fim de observar melhor a sua
Maria Alberta. E apesar da debilidade em que se encontrava, conseguiu
balbuciar por entre a saliva escassa que se lhe colara aos lábios:
“És a Maria Alberta, és a minha querida Maria Alberta…”,
deixando-se cair, de novo, sobre o colchão, sem peso, enquanto Rute
não parava de o acarinhar sob os lençóis, com movimentos de mão
em todas as direcções, afagando-o, aquecendo-lhe as carnes
esqueléticas.
Depois,
explicou que a morte de uma mulher era geralmente mais tranquila do
que a de um homem. Por isso, ela preferia acompanhar mulheres, que
eram ternas, se abraçavam a ela, respondiam às suas palavras doces,
lhe davam beijos e seguiam viagem convencidas de estarem abraçadas à
mãe.
Quando
morria uma mulher, Rute chegava a cantar melodias suaves,
embalando-a, ajudando-a a convencer-se de que estava às portas do
céu, onde os anjos ocupavam o tempo entoando cânticos de salvação.
Eles eram mais exigentes, mais concretos, queriam provas…
Depois
de tudo o que fiquei a saber sobre a vida de Rute e sobre a forma
como encarava os últimos instantes de vida de uma pessoa, percebi
que, para ela, a morte era o momento em que as almas se salvavam, ou
não. Se partiam tranquilas, chegavam ao céu. Se partiam em
desespero, não encontravam sossego. O que ela fizera ao marido de
Maria Alberta fora tentar escancarar-lhe as portas do reino de Deus.
Pouco
mais lhe fizera do que fazia a todos os outros moribundos. Na sua
opinião, o importante era que as pessoas não morressem sós. Se
tinham prazer físico, ou não, isso era o que menos contava.
Rute
ia-se deixando cair em generalidades, acabando por defender que a
morte feliz, a morte acompanhada, contribuía para a pacificação da
alma, ao passo que a morte solitária era uma forma de morrer duas
vezes (morrer porque se chegava ao fim e morrer porque não se tinha
ninguém ao lado).
A
presença de Rute junto aos leitos de morte era a sua forma de amar,
a sua forma de maior amor, a sua forma de dar – só dar – sem
discussão; a sua forma de acompanhar até ao último instante gente
que ela pouco conhecia, gente de quem gostava, gente a quem prestava
assistência, gente que nunca vira na sua frente, gente sem esperança
e sem condição.
Rute
sofria nesses momentos, como ela própria me dizia, mas achava que
estava vocacionada para encaminhar almas para a eternidade. Sofria,
mas também se sentia feliz pelo papel que desempenhava à cabeceira
dos doentes. Acompanhar na morte era a sua forma de realização.
Contava histórias à pessoa que estava prestes a partir, ria-se com
ela, tentava fazê-la esquecer os maus momentos, incentivava-a a
libertar-se, aconselhava-a sobre como proceder para garantir uma
viagem tranquila, metia-se na cama com ela, abraçava-a, beijava-a.
Não
devia haver quem não quisesse morrer com Rute à ilharga, imaginava
eu. Quem morria com ela morria certamente feliz. Alguma vez um
moribundo recusaria sentir o calor de Rute por baixo dos lençóis?!
Com certeza que não. Morrer com Rute ao lado, calculo, é morrer com
esperança, é morrer pensando que a outra vida nos reserva de
presente para toda a eternidade a mais bela mulher do mundo. Morrer
na companhia de Rute é encontrar na morte a felicidade suprema que
nos faltou em vida.
O
desafio de Rute era levar as pessoas a enfrentarem o fim de braços
abertos, a desejarem-no, a compreenderem que não se trata de um
termo… mas de um princípio. Há quem lhe chame eternidade, há
quem lhe chame “possibilidade de eternidade” (digo possibilidade
porque a eternidade não é uma garantia, é uma hipótese,
dependendo de a pessoa ser capaz de a alcançar, de a construir, de
dar um contributo para a sua concretização). Quanto mais gente for
capaz de colaborar na construção da eternidade, maior será o seu
alcance. Tudo depende dos humanos. Da sua inteligência, da sua
capacidade de descoberta.
Por
vezes, desconfio de que Rute anda à espera que chegue o meu dia de
partir. Por isso, me visita com tanta assiduidade. Às vezes, penso
que ela me visita por amor, outras vezes, desconfio que o faz apenas
na expectativa de me poder acompanhar nos derradeiros minutos.
Bastante
para lá dos oitenta anos de idade, encontro-me na bicha de espera
para o dia em que hei-de partir, de preferência com Rute a meu lado.
Não tenho dúvidas de que Rute o sabe. E eu também o sei. Até
porque ela, há algum tempo, teve a preocupação de me fazer
perguntas sobre a minha mãe, enquanto observava distraidamente a
foto que tenho sobre um dos móveis da sala de espera. Sei que se
está a preparar para representar a minha mãe quando chegar o meu
fim (durante uns tempos, hesitou entre mãe e pai). E sei, também,
que hei-de fingir acreditar na sua representação, nem que seja para
que ela se sinta útil, para que mantenha a ilusão de que o seu
gesto é importante na recta final da minha estafeta. Ou, então,
hei-de mesmo acreditar piamente que estou a morrer com a minha mãe
ao lado, sorrindo-me e beijando-me como quando era criança, uma mãe
não exactamente parecida com Rute, mas de qualquer modo, a minha
mãe, o grande amor da minha vida, debruçada como um anjo sobre os
lençóis da minha infância.
Rute
nega veementemente que me visite tantas vezes por estar à espera do
dia da minha partida. E para o comprovar já chegou a insinuar que
não se importa de desaparecer por uns tempos.
Pedi-lhe
encarecidamente que não o fizesse. Deixei de poder imaginar a minha
vida sem as visitas de Rute. Até porque a sua presença é uma das
formas que tenho de me ir preparando para a última viagem.
Mas
ela desapareceu, realmente, o que me leva a concluir que pode ter
levado por diante a sua intenção de provar que é apenas minha
amiga e que não me visita com outro objectivo. Não tenho dúvidas
de que agiu para me fazer sentir a sua falta.
15
Mesmo
quando passeava com Estela aos domingos, Raimundo só pensava em
dinheiro, só fazia contas mentalmente, só congeminava estratégias
para levar à prática no dia seguinte.
Quando
estava com ele, Estela tentava dizer alguma coisa, fazer um
comentário, a ver se captava a sua atenção, mas só obtinha uns
ligeiros murmúrios, uns “uhhs…”, uma espécie de grunhidos,
umas sílabas arrastadas que nada adiantavam e que não se sabia que
significado podiam ter.
Enquanto
caminhava ao lado de Estela, Raimundo chegava ao ponto de ocupar o
espírito com o registo cirúrgico do preço do chocolate que tinha
por hábito oferecer-lhe. Nunca o confessaria a quem quer que fosse –
só mo referira uma vez – para que não tivessem prova da sua
sovinice, mas fazia-o com um impiedoso, quase doentio, espírito de
minúcia, como se o seu futuro dependesse daquela ínfima quantia.
Nas suas mãos, o ínfimo atingia proporções incalculáveis. A soma
dos ínfimos acabava por constituir a explicação da sua prodigiosa
fortuna pessoal.
Com
o passar dos anos, Estela habituara-se ao estilo dele, habituara-se à
infelicidade de estar com alguém que não tinha em conta a sua
existência, a não ser quando lhe oferecia um chocolate aos domingos
à tarde.
Muitas
vezes, ela preferia que ele nada lhe desse, que esquecesse o
chocolate, mas que ao menos lhe dissesse alguma coisa, que ao menos
lhe dirigisse uma palavra de carinho e compreensão.
Raimundo,
porém, parecia longe de adivinhar os desejos de Estela. Para ele, o
chocolate que lhe oferecia era a prova bastante dos sentimentos que
nutria por ela. Por que havia Estela de querer mais do que um
chocolate? Que poderia ela ambicionar mais? Um chocolate era quase
uma prova simbólica, mas era uma prova. E uma prova doce. Para
gostar de alguém não era necessário estar “sempre aos beijos”
e “sempre a falar de amor”, dizia-me ele. Gostar era uma coisa
que havia dentro de cada um e que valia por si.
Ele
desconfiava que Estela era infeliz, mas recusava-se a ponderar a
hipótese de essa situação se dever ao relacionamento que ambos
mantinham. Para Raimundo, Estela era infeliz porque, à semelhança
de quase toda a gente, tinha sido educada no sonho e não na
realidade, tinha sido educada no delírio das convenções e não na
crueldade do dia a dia. Ao tornar-se adulta, percebera que nada era
como lhe haviam ensinado em criança e então caíra naquela
tristeza, naquele desalento que Raimundo não tinha meios para
combater. A tristeza de Estela era a tristeza de toda a gente. Contra
isso nada a fazer. Raimundo achava que os passeios que dava com
Estela, aos domingos, já eram uma grande ajuda, um assinalável
contributo para desanuviar o torpor que ela carregava na alma.
É
que ele também não era feliz. Não fora a labuta quotidiana pelo
dinheiro e Raimundo não saberia o que fazer à vida. A tristeza era
um estado de alma, era uma opção, uma vocação. A tristeza corria
nas veias e esfarelava o coração, desarticulando-lhe os músculos,
emperrando-lhe as entradas e saídas da sensibilidade. Por isso,
Raimundo entendia que ajudar Estela era uma tarefa impossível. Ela é
que tinha de fazer alguma coisa por si. Não estar sempre em casa,
nem estar sempre à espera dos telefonemas dele, dele, dele. Ela é
que tinha de reagir. Tal como Raimundo elegera o dinheiro a causa da
sua vida, Estela devia fazer o mesmo, devia arranjar uma causa, por
singela que fosse.
Em
outros tempos, ele incentivara-a a isso, mas Estela nunca dera o
passo decisivo. Foi como se tivesse ficado na expectativa de que ele
operasse o milagre. Só que Raimundo não gostava que ficassem à
espera dele para coisa nenhuma. Por isso, nunca lhe deu o que ela
queria, nunca prestou atenção à angústia que ela carregava nos
ossos.
Raimundo
tinha muita coisa a seu cargo, não dispunha de tempo para se deter e
preocupar com os humores de Estela. Ao fim de uns anos de trabalho, e
em virtude do sucesso dos seus métodos, tornou-se proprietário de
um sem número de imóveis cujo aluguer lhe proporcionava invejáveis
níveis de rendimento, comprava e vendia acções com perícia e
sentido de oportunidade, fazia parte dos conselhos de administração
de diversas empresas, possuía restaurantes nas melhores zonas do
país. Tudo pelo prazer que lhe dava acumular dinheiro, dinheiro,
mais dinheiro. Raimundo punha o dinheiro acima das pessoas, porque o
dinheiro lhe obedecia, ao passo que as pessoas, por mais submissas
que se mostrassem, tinham sempre um elevado grau de
imprevisibilidade.
As
suas responsabilidades eram tais que não se podia dar ao luxo de
ficar dependente da disposição de Estela, ou de quem quer que
fosse. A sua vida era de uma disciplina férrea, obedecia a critérios
e planos, seguia uma direcção sem inflexões. De outra forma, não
teria conseguido atingir os seus objectivos. E, agora que os
atingira, não podia alterar a estratégia que o conduzira ao êxito.
Raimundo
não gostava de ser rico pelo conforto que o dinheiro proporcionava,
mas sim pelo prazer que lhe dava a posse do dinheiro. Só isto. Não
lhe interessava o que o dinheiro podia comprar, interessava-lhe o
dinheiro em si mesmo, como nos interessa uma pessoa ou um animal de
estimação. Se o investia era porque sabia que só deste modo podia
ganhar mais e mais dinheiro, mais e mais pessoas, mais e mais animais
de estimação. Se assim não fora, guardá-lo-ia até ao último
tostão. O prazer maior da vida de Raimundo estava no odor do
dinheiro. Era a sua única excitação, uma espécie de forma
concreta e definida que o motivava para os negócios e o animava nas
agruras do quotidiano.
Com
o decorrer dos anos, Raimundo acabou por aceitar tudo, quase tudo,
mesmo aquilo que em tempos remotos considerava acima de todas as
tolerâncias. As desilusões eram como a chuva: por mais que
tentássemos abrigar-nos, éramos sempre atingidos, sempre
atravessados pelo veneno das gotas. Raimundo cedeu em tudo, menos no
dinheiro.
O
dia em que tinha de pagar impostos era o pior do ano para ele. Logo
de manhã, ainda na cama, doía-lhe o corpo todo, sentia náuseas e
falta de ar só de pensar no contabilista e na repartição de
Finanças. Apetecia-lhe fugir, esquecer projectos, abandonar tudo.
Porém, o chefe da contabilidade não parava de lhe ligar para casa,
a lembrar-lhe que precisava da sua assinatura para liquidar a quantia
em dívida ao Estado. Raimundo dizia que sim, garantia que em breve
estaria no escritório, mas na verdade procurava demorar-se o mais
possível, arrastando exageradamente os pés ou encontrando os mais
diversos pretextos, como uma camisa mal passada ou um par de calças
com uma cor que não lhe agradava, na esperança de que acontecesse
alguma coisa, algum milagre… até à hora de o cheque dar entrada
nos cofres públicos. Mas havia um momento do dia, havia um ponto,
havia uma passagem de minuto em que Raimundo percebia que não tinha
hipóteses de fugir à situação. E avançava para o escritório,
contrariado, quase se insultando a si mesmo por não ter meios de
escapar a um tal pagamento. Considerava-se estúpido só por não ser
capaz de contornar a liquidação dos impostos. Se não fosse
estúpido, pensava consigo mesmo, conseguiria imaginar uma
alternativa.
Vergado
à realidade dos impostos, Raimundo deixou de sentir interesse pelo
que quer que fosse, desde que a sua riqueza continuasse intocável.
Fez-se apático, meditabundo, quezilento. Excepto quando o dinheiro
vinha à baila. O dinheiro tomou conta da sua vida. Tornou-se um
vício, o seu vício exclusivo. Tudo o que fazia, mesmo sem
premeditação, acabava sempre por desembocar em análises ou
operações financeiras, o que significava, dinheiro, sempre
dinheiro.
A
organização da sociedade, para Raimundo, era responsável por esse
fenómeno. Porque tudo na sociedade estava orientado para os negócios
e para o dinheiro. Ele limitava-se a reagir de acordo com a tendência
geral. Queriam dinheiro? Preocupavam-se com dinheiro? Só pensavam em
dinheiro? Ele mostraria como proceder, ele exemplificaria o modo de
acumular riqueza, ele enfrentaria as adversidades. Fá-lo-ia sozinho,
sem ajudas, sem partilhas, sem lamentos.
A
sua missão no mundo era essa demonstração de independência
absoluta. Não precisava de ninguém. O dinheiro era o seu único
amigo. O dinheiro libertava-lhe o coração, prolongava-lhe a vida. O
dinheiro seduzia, tudo comprava. Um dia, se fosse possível, gostaria
mesmo de comprar a sua própria imortalidade, nem que fosse para
demonstrar às gerações futuras quão capaz era de desprezar tudo
menos o dinheiro.
O
dinheiro não envelhecia, não adoecia, não chateava, não traía,
não fugia, não dizia hoje uma coisa e amanhã outra, não era
ciumento, não comia, não bebia, não dormia, não enganava. Era o
que era. Um valor simbólico, um valor taxado, sem tirar nem pôr,
nada de confusões nem de meias tintas. Nem o perturbavam as
oscilações a que o valor da moeda estava sujeito porque a moeda,
para Raimundo, não valia pelo que comprava, valia por si mesma.
O
dinheiro estava acima dos sentimentos, da bondade, do ódio. Era a
única coisa que dava sentido a uma existência sem sentido. O
dinheiro era a mola dos dias, a força da acção, o motivo para não
desistir. Era um valor, como a família, o amor, o bem. Um valor
quantificável, por isso, fundamental.
Raimundo
não percebia por que havia gente que tinha uma ideia negativa do
dinheiro, que criticava o consumismo e o investimento, quando era
mais do que evidente que o consumismo e o investimento eram a alma da
sociedade, as suas molas propulsoras. Sem consumismo e sem
investimento, os cidadãos morreriam de tédio, o dinheiro não faria
sentido. Uma sociedade sem dinheiro estaria condenada à doença e à
desintegração porque a riqueza não circularia, seria um sangue
morto. O dinheiro fora a mais importante invenção do Homem. Mais
importante do que o fogo, a roda, os transportes, a exploração
espacial.
Raimundo
também achava que eu acabava por pactuar com os críticos de um
mercado em desenvolvimento porque vivia para uma actividade sem me
preocupar com os proventos dela resultantes. Bastava-me ter o
suficiente para viver e isto fazia-lhe uma enorme confusão. Na sua
forma de encarar as coisas, o meu desinteresse pelo dinheiro – o
único factor de felicidade ao nosso alcance – era uma aversão
camuflada que eu nutria pelo mercado e pelas suas regras. Só não o
assumia abertamente para evitar que a minha atitude parecesse radical
ou extemporânea.
“Nem
te preparas para os imprevistos!”, disse-me ele, certa vez, quase
se indignando com a minha indiferença perante o seu argumento. “Rita
cresceu e viveu contigo durante anos e nunca puseste uns cobres de
parte para alguma urgência, algum contratempo”, insistiu Raimundo,
certo de que eu não tinha resposta para a sua argumentação.
“Mas
não foi por isso que ela deixou de ter uma educação como a das
outras crianças”, repliquei. “Se saiu de casa tão cedo foi
porque quis. Nunca lhe faltou nada”.
“Eu
sei…, eu sei…”, retorquiu ele. “E não é segredo para ti que
o investimento na educação me parece um desperdício, um verdadeiro
disparate. Mas já que aceitaste a rapariga em casa devias ter agido
de outra forma! Eu, ao menos, sou coerente: recuso-me a ter filhos
para não gastar dinheiro com eles.”
Raimundo
não deixava de ter alguma razão, mas eu não lhe dava grande
réplica, porque até me sabia bem vê-lo falar daquela maneira, com
tanto à vontade, o que não era frequente nele. No fundo, eu sentia
que as suas críticas eram vagas e sofriam de alguma falta de senso
porque jamais me surgira um imprevisto que eu não tivesse sido capaz
de solucionar de forma atempada e adequada. Mas Raimundo nunca
aceitara, nem compreendera, que eu levasse uma vida sem ambições.
Leccionar bastara-me e ele entendia que eu fizera a pior opção. O
ensino sobrevivia na cauda da sociedade.
“Andas
a perder o teu tempo”, dizia-me, sempre que me via com menor
entusiasmo, como se tivesse a intenção de aumentar o peso que eu
sentia na alma. “Com a prática da vida é que aprendemos. Atiram
os miúdos aos milhares para as escolas, fecham-nos numa sala e
esperam que aprendam alguma coisa? Não faz sentido. Depois, os
jovens querem emprego, chegam às empresas e pouco mais sabem do que
assinar o nome. E isto para quê? Para dar de comer aos milhares de
professores que de outra forma não teriam com que se ocupar e
sobreviver. Já pensaste no dinheiro que se gasta com toda essa gente
que não sabe fazer mais nada? Para que serve um professor? Para
orientar jovens estudantes? Mas quem orienta os jovens são os pais,
familiares, amigos, vizinhos, conhecidos, colegas, artistas,
gestores, mendigos, transeuntes, desportistas, cientistas! Os
professores são uma lacuna no sistema, são os responsáveis pelas
distorções e aberrações do mundo em que vivemos. Os primeiros e
únicos responsáveis. Porque introduzem a artificialidade na
aprendizagem, porque manietam, porque condicionam o crescimento”.
Sempre
que o ensino vinha à baila, Raimundo falava mil vezes mais do que o
normal. Parecia uma pessoa diferente, comunicativa, expansiva. E
fazia-o sem receio de me ofender porque sabia que eu lhe dava espaço
para expor as suas ideias, embora não concordasse com a maioria
delas. Se eu mostrasse ressentimento, ele diria que a sua crítica
era dirigida à classe docente em geral e não a mim em particular,
que eu até desempenhava as minhas funções com dignidade. Por isso,
não me dava ao trabalho de lhe responder. Ao fim de um tempo, já
nem o ouvia.
“Olha
para Estela”, dizia ele. “Para que lhe serviram os estudos?
Esteve sempre em casa. Ofereceram-lhe vários empregos, mas ela achou
que não tinha jeito para as tarefas que lhe propunham. Foi uma vida
desaproveitada. No fundo, nunca se percebeu o que ela queria, muito
menos o que pretende hoje. Ainda está a tempo de fazer alguma coisa,
mas não se resolve. É uma eterna indecisa. E depois olham-me como
se a culpa pela sua situação fosse minha. Era o que faltava! Achas
isto bem, Lis? Achas justo?”, insistia ele, acentuando as palavras,
como se eu não estivesse a ouvi-lo, ou como se tivesse alguma coisa
a ver com o que se passava entre ele e Estela.
Mas
eu ouvia-o. Só não tinha paciência para alimentar o diálogo. Por
isso, acabava por concordar com ele, dizendo que não, que não
achava justo…
16
Raimundo
passava meses sem me bater à porta, apesar de as nossas casas não
distarem muito uma da outra. E quando o fazia nunca se percebia a
razão da sua iniciativa. O tempo em que estivera emigrado
naturalmente contribuíra para nos habituar a esse distanciamento.
Quando nos víamos, era geralmente eu que o procurava. Ou então
encontrávamo-nos casualmente na rua ou em algum outro lugar público.
Mas também me parecia que ele evitava visitar-me para não correr o
risco de dar de caras com Rute. Eu tinha a impressão de que não lhe
agradava a minha proximidade com uma mulher tão bela e atraente. Era
estranho que ele nunca fizesse referência a Rute, sabendo da amizade
que me unia a ela. Podia fazer alguma pergunta por simples
curiosidade: “Que tal é ela? Como a conheceste?”, ou qualquer
coisa do género. Seria uma conversa normal entre pessoas que
confiavam uma na outra, e nós confiávamos.
O
seu silêncio sobre Rute era um dos motivos por que me parecia que
ele não era capaz de suportar a beleza, sobretudo quando ela
ultrapassava os limites do bom senso. E era mais do que certo
Raimundo considerar que eu devia ter a mesma postura.
Não
me restavam dúvidas de que ele não aprovava o meu relacionamento
com Rute, nem que fosse pela diferença de idades que nos separava.
Lá no mais íntimo dele, devia achar que alguém na minha situação
não tinha o direito de conviver proximamente com uma pessoa tão
deslumbrante.
O
dia em que chamei a ambulância, contudo, foi um daqueles em que
Raimundo, inusitadamente, me procurou em casa. Ouvi uns passos
arrastados subindo as escadas do prédio e percebi logo que não se
tratava de Rute. Aquela cadência de pés, quase resfolegando sobre
os degraus, só podia ser de Raimundo.
Talvez
tenha pressentido alguma coisa, talvez tenha adivinhado que eu não
estava bem, talvez tenha receado que pudesse partir a qualquer
instante. Mas nunca me pareceu que Raimundo pudesse ter
pressentimentos. Na sua alma, só havia espaço para o dinheiro. Como
podia ter adivinhado o que se passava comigo? Como podia sequer ter
imaginado que eu não estava bem?
Apesar
da amizade que nos une, não sei porque não tive a ideia de o
contactar no momento em que me senti mal. Na ausência de Rute, podia
ter-lhe pedido ajuda. Se não o fiz, provavelmente, foi porque nunca
pensei que Raimundo tivesse disponibilidade para vir a minha casa
numa terça-feira ao início da tarde. Na minha cabeça, ele estava
sempre envolvido em grandes e complexos negócios, razão pela qual
não me ocorreu que dispusesse de uma brecha de tempo para me
socorrer. Também é possível que não me tivesse lembrado dele por
guardar algum ressentimento pela forma brusca e deselegante como
muitas vezes me tratava. É verdade que eu acabara por me habituar
aos seus modos intempestivos, mas também não era menos verdade que
havia ocasiões em que sentia mágoa pela sua forma de proceder.
Quando
me apercebi dos seus pés arrastados nas escadas, pus-me a pensar nos
motivos que podiam justificar a sua visita. Não encontrei nenhuns. E
apressei-me a esticar o lençol, não fosse ele desconfiar das
correrias de automóveis com que me andava a distrair.
Considerá-las-ia uma patetice. Um sinal de desordem mental.
Pela
forma como entrou e se sentou, concluí que aparecera só por
aparecer. Foi a única vez que me visitou num dia de semana, em horas
de expediente. Era estranho que naquele momento não se encontrasse
embrenhado em negócios que lhe pudessem render avultados lucros.
Apesar de já ter mais de sessenta anos de idade, Raimundo não
desistia de trabalhar nos seus projectos e de acumular riqueza, ao
ponto de eu me ter habituado a dizer-lhe, na brincadeira, que o
haviam de enterrar num caixão de ouro.
A
demora da ambulância deixara-me num tal estado de amolecimento que
ao ver Raimundo não tive coragem de lhe dizer o que se passava
comigo. Se a ambulância chegasse numa altura em que ele estivesse em
minha casa eu podia sempre dizer-lhe que a tinha requisitado para me
deslocar a uma consulta de rotina. De qualquer modo, não adiantaria
informá-lo de que eu não estava bem de saúde. Se o fizesse, o mais
certo era ele não ligar e parodiar com os meus exageros.
–
Passei por aqui para
ver como estavas… – explicou Raimundo, sem que eu abrisse a boca.
Os
nossos encontros, quando não se falava de ensino, eram sempre vazios
e infrutíferos porque nenhum de nós precisava do outro para o que
quer que fosse. Quem nos visse havia de ficar com a ideia de que era
um sacrifício estarmos juntos. Como se, em nome de um qualquer
credo, fôssemos obrigados a conviver, a rezar em silêncio, numa
espécie de penitência descrente e depressiva.
Muitas
vezes, nem nos apetecia estar juntos. Mas, por algum motivo, havia
momentos em que, por maiores que fossem as diferenças que nos
separavam, outra coisa não fazia sentido.
Não
querendo nada um do outro, só pretendíamos estar sentados na
companhia de alguém que para ele podia ser eu e para mim podia ser
ele. Só pretendíamos estar algures, sem palavras, sem comentários,
como nos desenhos humorísticos em que a imagem fala por si.
Sempre
que nos encontrávamos, tornava-se evidente que eu era absolutamente
inútil para Raimundo e ele igualmente para mim. A nossa amizade em
nada contribuía para melhorar as vidas que levávamos.
Raimundo
nunca se interessara pela docência, actividade à qual eu dedicara
todo o meu percurso profissional. Para mim, ensinar era uma profissão
singular, a mais nobre de todas as profissões, porque era através
do ensino que o saber evoluía e se perpetuava. O ensino era a
passagem de testemunho em vida, era a transmissão de conhecimentos,
era o caminho para lá de nós mesmos.
Para
Raimundo, contudo, o ensino não acrescentava cifrões ao dia-a-dia,
não agitava as bolsas financeiras, não motivava grandes decisões
nas empresas. Era uma completa perda de tempo.
Ele
ainda chegara a sugerir que eu enveredasse por outras formas de
ensinar, que pusesse de lado os programas oficiais, que criasse a
minha própria maneira de transmitir conhecimentos, que levasse os
alunos para as empresas a fim de que pudessem conhecer a realidade, e
eu não discordava dele, só que também não podia alhear-me por
completo das orientações da tutela. Na minha óptica, o ensino era
uma questão de prudência. Dando ao outro o que sabíamos, devíamos
perseguir o equilíbrio para evitar a indiferença, mas também as
catástrofes emocionais.
O
ensino absorvera-me durante toda a vida. Ao longo dos anos, eu
acabara por adquirir a minha própria forma de encarar a realidade.
Hoje, eu já não sabia viver fora das fronteiras ilimitadas do
outro. Tudo acontecia no meu exterior. Eu não contava. E se, muitas
vezes, falava de mim, como faço nestas páginas, se pensava em mim,
era para melhor entender os que me rodeavam. Nunca me coloquei no
centro dos meus próprios interesses.
O
ensino era a maneira mais óbvia de aumentar o que nos rodeava.
Fazendo-o, eu tinha mais possibilidades em todas as áreas, mesmo no
que respeitava à educação de Rita. Mais: aumentando a realidade,
eu podia perceber melhor esse acrescento que lhe transmitia. E
percebendo melhor o acrescento, ficava em condições privilegiadas
para entender o resto. O ensino tornava a realidade elástica.
Não
era o ensino em si que me seduzia, mas o poder que através dele eu
exercia sobre os outros, sobre a realidade, influenciando-a em maior
ou menor grau.
Há
muita gente que se dedica à docência por inércia, por necessitar
de emprego, por encarar a escola como um lugar de afirmação. Eu
fi-lo para ter mais campo de vida, mais espaço, mais terreno. O
ensino é uma questão de conquista, de descoberta.
A
minha vida com Rita fez que eu me dedicasse a ela de tal forma que, a
dado passo, não via mais nada à minha frente. Só ela, ela e ela,
Rita e Rita, de noite e de dia, a todos os instantes, o que comia,
quando dormia, como vestia, o que sentia, se via isto e aquilo. Não
admira que me tenha ressentido tanto da sua partida. Quando dei por
mim, eu já fazia parte de Rita, já era a própria Rita,
confundia-me com ela, quase assumia o seu próprio destino.
Raimundo
diz que foi um exagero da minha parte, mas fi-lo com a consciência
de que era o melhor que estava ao meu alcance.
Poder-se-á
pensar que Rita terá saído de casa aos dezasseis anos por não
suportar os meus níveis de entrega à causa da sua vida, por querer
fazer o seu caminho sem me ter sempre ao lado, mas creio que esta é
uma interpretação abusiva, porque a verdade é que sempre dei todo
o espaço a Rita, toda a liberdade. Havia uma forte ligação entre
nós, mas isso nunca a impediu de experimentar e viver o que quis e
bem lhe apeteceu. Não faz parte da minha natureza servir de
obstáculo a alguém, seja para o que for. Para não ser empecilho,
muitas foram as vezes em que preferi sofrer em silêncio e a sós.
Não
me admiro que Raimundo tenha dificuldade em compreender o
relacionamento entre educador e educando porque nunca viveu nada de
semelhante. Nesta matéria, as suas opiniões são absolutamente
duvidosas. Há muitos anos que Raimundo e eu temos posições claras
sobre as nossas maneiras de viver. Discutimos sobre isso uma ou outra
vez. E fazemo-lo sempre de forma inequívoca. Seguimos rumos
diametralmente opostos, mas nem assim deixámos de ser amigos. O que
sempre nos uniu foi a diferença abissal que nos separava. Quando
estávamos juntos, se um dizia alguma coisa, o outro depressa se
preocupava em deixar claro que não lhe apetecia, que não estava nos
seus dias. A não ser que a conversa incidisse no ensino.
Não
havia nada de especial entre nós. Apenas uma amizade antiga, que
teimava em sobreviver. Éramos íntimos, mas profundamente estranhos
um ao outro.
Raimundo
estava mais magro. Parecia definhar, perder corpo. Nas raríssimas
vezes em que me visitava, porém, nunca se esquecia de ir ao
frigorífico. Era como se viesse a minha casa para matar a fome.
No
dia em que me visitou pouco depois de eu ter telefonado a pedir uma
ambulância, pediu-me licença para se servir pouco depois de ter
entrado, escandindo as sílabas com o ar de quem tem a cabeça
completamente vazia, ou completamente ocupada com algo que me era de
todo alheio.
Voltou
da cozinha com dois iogurtes líquidos na mão, mas ante o meu gesto
de recusa, acabou por ficar com ambos, um em cada mão, pondo-se a
ingeri-los alternadamente numa tentativa de misturar os sabores.
Depois,
sentou-se na minha frente e pôs-se a olhar para coisa nenhuma, como
se eu não estivesse ali, como se nada acrescentasse aos seus
pensamentos, como se não contasse, como se eu fosse Estela e ele já
me tivesse dado o chocolate do costume.
Às
vezes, fazia um ou outro comentário desconexo, reflectindo em voz
alta qualquer coisa inofensiva como “pois é…”, “vê-se…”,
“uhm…”, comentários aos quais eu não dava resposta,
limitando-me, de forma pontual, a breves acenos de cabeça.
Concluídos
os iogurtes, levantou-se, num claro sinal de que se preparava para
sair. Despedimo-nos com um ”até um dia destes” e ele
desapareceu, deixando-me ainda na dúvida sobre as razões que o
teriam levado a procurar-me.
Raimundo
regressou a casa, provavelmente amaldiçoando o tempo que perdera, o
tempo em que nada ganhara, enquanto, por minha parte, eu amaldiçoava
a demora da ambulância.
Fui
espreitar à janela. A rua estava cinzenta e vazia, só com alguns
carros estacionados à sombra do prédio onde eu residia.
Sentei-me
na cama, por ter voltado a sentir um aperto no coração. Não sei
bem se senti mesmo um aperto, ou se foi impressão minha. Talvez uma
vertigem. Há alturas na vida em que não há certezas de nada. Eu
estava num desses dias. Qualquer vibração me aturdia, confundia,
obrigando-me a pensar intensamente antes de reagir ou de fazer um
julgamento. Pelo sim, pelo não, deixei-me estar em sossego, de olhos
fixos em nada, procurando não pensar para não ajuizar. Por mais que
me esforçasse, contudo, não conseguia evitar a ideia de que aquele
podia ser o momento da minha morte, da minha partida.
E
se o fosse? Se aquela fosse a altura de eu me ir, não haveria
vivalma do meu círculo de conhecimentos para tomar a iniciativa de
responsabilizar os serviços de emergência médica pelo atraso em me
socorrerem. Eu deixara partir Raimundo sem lhe falar do meu estado de
saúde. Se eu partisse naquele instante, não me preocupava que
alguém fosse, ou não, punido por desmazelo ou incúria. Só me
entristecia não ter Auxiliadora ao pé de mim. Disse Auxiliadora…
mas na verdade pretendia dizer Rute. Depois de tudo o que Rute me
contara sobre o que fazia para tornar as pessoas felizes no momento
em que morriam, eu não admitia a hipótese de sucumbir na sua
ausência, não prescindia do direito à minha felicidade derradeira.
Era fundamental eu resistir até que Rute me visitasse.
No
momento exacto em que pensava nisso, senti um suor frio por todo o
corpo (desta vez não tive dúvidas) senti-me gelar, como se as mãos
de Auxiliadora – quero mesmo dizer Auxiliadora – me puxassem das
profundezas da terra.
“Não
te deixes ir”, dizia para comigo, “não te deixes ir…, esta não
é a tua hora”, e enquanto o afirmava, dirigia o meu pensamento
para Rute e para as suas mãos com dedos delgados deslizando-me sobre
o corpo. Vi-a com nitidez na minha frente. Senti o seu odor fresco
invadir-me e receei já não ser capaz de distinguir se Rute estava
na verdade junto de mim ou se eu apenas me deixara levar pela doce
ilusão da sua presença. De uma forma ou de outra, eu só tinha de
me entregar nas suas mãos e seguir as suas instruções.
De
repente, cedi, perdi a noção das coisas, deixei escapar o que me
rodeava. Desfaleci.
Imagino
que devo ter estado uns tempos sem dar acordo de mim – durante
quanto tempo? – com o corpo atravessado na cama porque, ao acordar,
reparei que o cinzento do dia desaparecera e o sol entrava radioso
pela minha janela. Surpreendentemente, sentia-me bastante melhor.
Estava como se nada se tivesse passado.
Os
ponteiros do relógio tinham-se deslocado cerca de trinta minutos,
tempo suficiente para as nuvens se afastarem e deixarem o dia
clarear, como se estivesse a amanhecer. Agora, eu já não sabia se
devia continuar à espera da ambulância ou se devia esquecê-la.
17
Devem
achar que falo demasiado de mim, mas esta é a forma que tenho de
compensar o abandono a que me votaram. Além de que prometi que nada
do que me diz respeito ficará por contar. E o certo é que, ao falar
de mim, não é de mim que falo, mas de outros. Por não ter uma
identidade definida, sinto que sou menos eu. E se sou menos eu, sou
mais outros, sou mais os seus desencantos, as suas dores, as suas
ilusões.
Esta
forma de ser outro é de um enorme poder sexual. Porque nunca nos
satisfazemos. Queremos sempre mais, queremos sempre ser mais outros.
Não ter identidade é não ter órgão sexual exactamente definido,
mas é também sentir que o órgão sexual acontece em todos os
momentos e se expande por todo o corpo. Não conheço nada
verdadeiramente importante para além do sexo. Um sexo que nada tem a
ver com órgão genital.
A
importância que dou ao sexo não significa que eu o tenha praticado
de forma excessiva. Quando os outros o praticam, sei, com certeza,
que o fazem por mim. É um prazer aumentado para todos. Um prazer sem
lugar e ao qual procuro também retirar a componente temporal. Deste
modo, nunca estou só. E faço que os outros também nunca o estejam.
Dou
o que sou, dou o que me pertence. Sou carne viva. Sou mamilos,
joelhos e rins. Sempre o fui. Como um selo impossível de descolar. É
uma condição, a minha condição. Com mulheres e com homens, sou
mamilos, joelhos e rins, essencialmente. É como se visse com os
mamilos, como se compreendesse com os joelhos, como se conquistasse
com os rins. Como se os mamilos, os joelhos e os rins fossem mais do
que são. Como se representassem uma espécie de identidade superior
pela qual me oriento. Sinto com os mamilos, penso com os joelhos,
revelo-me com os rins. É esta a minha plenitude, a minha forma de
não limitar os outros em mim.
Nada
me provoca mais prazer do que me lamberem os mamilos, os joelhos e os
rins. O segredo está em sugarem-me, lamberem-me. Os mamilos são o
meu eixo, os joelhos são a minha vertigem, os rins são a minha
rendição.
Por
que não dizê-lo? Nada me eleva mais, nada me define tão
correctamente. Os mamilos tornam-me melhor pessoa, os joelhos
reforçam a minha crença, os rins fazem-me ver mais longe. Os
mamilos, os joelhos e os rins são as minhas fontes de vida. Pode
parecer desprovido de nexo dizê-lo, mas esta é a minha convicção
mais arreigada.
Muitas
vezes, fui para a cama com mulheres e com homens e só partilhei os
mamilos, os joelhos e os rins. Não admitia que possuíssem outras
partes de mim. Além de tudo, partilhar apenas os mamilos, os joelhos
e os rins era uma forma de evitar confusões, perguntas, dúvidas
maiores, hesitações, receios. E de ambos os lados o prazer era
tamanho que eu não sentia necessidade de partilhar mais nada. Para
quê? O que é um órgão genital? Um mero elemento reprodutor? Ora,
como eu não queria reproduzir, nem reproduzir-me, explorava o resto
do corpo, sobretudo os mamilos, os joelhos e os rins. Era como se eu
fosse apenas essas três partes do corpo.
Fui
para a cama com algumas pessoas que tinham o hábito de se meter
entre as minhas pernas, fazendo movimentos lúbricos contra o meu
sexo escondido, isto enquanto me chupavam os mamilos. Os seus gestos
excitavam-me mais do que se me despissem por completo e me
possuíssem. Depois, voltavam-me de costas para cima e deslizavam a
língua sobre os meus rins e nádegas, fazendo-me endoidecer. Eu
pulava, dizia coisas descabidas, ria-me, gritava, quase me extinguia
em prazer.
Não
interessava quem me lambia. Não interessava se era homem ou mulher.
O importante era que houvesse uma língua! O que contava era apenas
os meus rins e a língua de alguém. Não há nada melhor do que uma
língua desacorrentada sobre o corpo.
Muita
gente pode não apreciar este tipo de prática sexual, mas essa
atitude só é explicável por uma visão deturpada, manietada,
complexada, do desejo que há em nós.
A
seguir aos rins, a língua voltava a subir pelas costas, até às
omoplatas, enquanto a pessoa me voltava de barriga para cima, outra
vez, descendo a toda a velocidade pelo meu ventre até aos joelhos,
que lambia denodadamente, em círculos, fazendo-me ver galáxias para
lá do tecto do meu quarto, ensandecendo-me hora após hora, ao ponto
de eu pedir, por tudo, por favor, que não me fizesse mais aquilo,
mais não, mais não!, era insuportável. Lamberem-me os joelhos em
movimentos levados ao extremo da eficácia era um prazer torturante
superior a todas as minhas capacidades de resistência.
Foi
assim que vivi durante anos. Buscando prazer e mais prazer,
independentemente de ideias preconcebidas ou de críticas que me
pudessem dirigir. Ao longo do tempo, fui percebendo que tanto maior
seria o meu prazer quanto menos eu ligasse à ideia que as pessoas
tinham de mim. Quanto menos eu me importasse com a minha imagem,
tanto maior seria o espaço de manobra que eu teria para explorar as
mais diversas formas de gozo, nos mais variados sítios e momentos.
O
ensino foi, para mim, no início, um tormento. Por mais de uma vez,
pensei mudar de actividade. Todavia, acabei por encontrar nele um
gozo imenso, o maior gozo possível. Talvez tenha sido esta a minha
única arte: transformar tudo em gozo, em prazer! E do prazer
arrancar cada vez mais prazer. Encontrar prazer nos momentos mais
imprevisíveis, nos desfechos mais impensáveis, nas situações mais
improváveis. Sempre o prazer, o prazer dos outros. Porque são eles,
os outros, que dão sentido ao que experimentamos e vivemos.
O
que há de interessante na minha existência são os prazeres
desconhecidos que vou desvendando. Só posso alcançar a verdadeira
criatividade no prazer e através do prazer. Tudo isto, porém, com
sofrimento, um sofrimento que se deve aos outros. São os outros que
nos dão prazer, mas também são os outros que nos provocam dor. São
os outros que, em nós, misturam o prazer e a dor.
Sofri
muito com o desaparecimento de Rita. Mas o que sofri conduziu-me a
outras formas de ver e de sentir que me proporcionaram prazeres novos
que eu não teria alcançado se Rita não tivesse saído de casa.
Foram as situações novas que me permitiram prazeres e sofrimentos
nunca antes vividos.
Raimundo
não percebe a importância do ensino porque não imagina o prazer
que o outro nos concede. Se Raimundo não tem prazer com Estela, não
o tem com mais ninguém. Não me admiraria que fosse mesmo incapaz de
se masturbar só para não perder esses breves minutos com algo que
não lhe proporcione lucro imediato.
Para
Raimundo, só o dinheiro satisfaz. Ou nada pode dar tanto prazer como
o dinheiro. Todos os prazeres são menores ao pé do prazer do
dinheiro.
Mas
o ensino provoca um prazer superior ao de mil orgasmos e ao de mil
milhões de moedas. Porque no ensino se pode ter esses mil orgasmos,
mil orgasmos que são os dos outros, mas dos quais podemos
perfeitamente apropriar-nos. No fundo, é tão simples: na escola, eu
ia ao ponto de sentir o orgasmo dos meus alunos. Eram orgasmos jovens
e cheios de ilusão, repletos de esperança, por isso mais saborosos
e vibrantes.
Se
não fosse o ensino, eu nunca teria percebido a importância que os
mamilos, os joelhos e os rins podem ter na satisfação sexual.
Foi
através dos meus alunos que perdi preconceitos e, em consequência
disso, criei condições para desfrutar os prazeres das partes do
corpo às quais habitualmente pouco se liga. Para me apropriar dos
orgasmos de alguém não precisava de ter sexo com eles. Era tudo uma
questão de sensibilidade, de olhares, de cumplicidades. Por exemplo,
eu sabia quando os meus alunos iam aos lavabos e sabia, muitas vezes,
o que lá se dispunham a fazer. Nessas alturas, sentia que os seus
actos passavam pelo meu corpo, músculos, pele e células. Sentia que
me tomavam, que me possuíam. E sentia que o inverso também sucedia.
Era um processo incontornável.
Quando
atingi a adultez, passei a resolver tudo num ápice e a desvalorizar
o que é secundário, convencendo-me de ter atingido o âmago das
coisas, o que me fez esquecer a superfície dos gestos. Mas foi na
superfície que mais facilmente partilhei. A profundidade foi, muitas
vezes, um engano. Porque se não fui capaz de atingir a minha
intimidade completa, como havia de pretender alcançar a dos outros?
Tive muitas desilusões, muitos equívocos, muitos fracassos.
O
desentendimento começou quando procurei ir além da superfície,
além do ligeiro, do suave. Procurando ir mais fundo, perdi-me. E só
os outros me restaram. Depois, foi difícil reencontrar-me,
reencontrar o caminho de volta à minha natureza. Penso, de resto,
que nunca o consegui.
Na
adolescência, tinha um amigo que por vezes dormia em minha casa.
Passávamos a noite a conversar, estirados sobre o tapete da sala de
estar, e quando já não sabíamos de que falar, entretínhamo-nos a
brincar com os mamilos um do outro. Ele beliscava os meus e eu
beliscava os dele. Apertávamo-los, apalpávamo-los,
contornávamo-los, acariciávamo-los, espremíamo-los, puxávamo-los,
por entre gemidos e respirações intensas. Quando dávamos por nós,
era quase manhã por entre as persianas das janelas. Suspirávamos
fundo com a descoberta daquele prazer novo, mas não atinávamos em
ir mais longe, não nos ocorria a possibilidade de avançarmos para
outras partes do corpo. Se nos sentíamos livres para conquistar os
mamilos, porque não sentíamos o mesmo relativamente a outras partes
do corpo? Tal só podia significar que os mamilos eram quanto nos
bastava para sermos felizes naquele momento, naquela noite.
A
vida acabou por nos separar. Estive muitos anos sem ver o meu amigo
dos mamilos e tive saudades dele com frequência. Eu sentia que
tínhamos ficado unidos. E pressentia que ele também pensava em mim
e nos momentos nocturnos em que nos havíamos descoberto.
Quando
nos reencontrámos, já depois dos quarenta, cada um com a sua vida
organizada, falámos de muita coisa, menos das nossas saborosas
recordações. Ele ainda me levou a dar um passeio por uma zona
descampada à beira-mar, pensando, talvez, que podíamos voltar a ter
oportunidade de conviver intimamente, mas procedi sempre como se de
nada me lembrasse, como se nada se passasse dentro de mim, como se
nada me apetecesse naquele instante a não ser estar com ele,
descontraidamente, tranquilamente, sem memórias antigas. E creio que
o fiz com tamanha convicção que, na verdade, não me dei conta de
nada enquanto estivemos juntos. Só meses depois me apercebi de que
ele me terá levado para o tal sítio ermo na esperança de reviver a
nossa doce experiência de crianças. Terá sonhado que eu lhe
deixaria meter a mão por baixo da roupa a fim de que ele me
acariciasse os seios e que eu lhe pagasse na mesma moeda.
Quando
me apercebi das suas intenções ao levar-me a um lugar isolado ainda
pus a hipótese, uns dias depois, de voltar atrás, de voltar a
procurá-lo, e propor que fôssemos passear outra vez por onde
ninguém nos pusesse a vista em cima, mas acabei por não concretizar
a ideia. Não tive a certeza de que esse fosse realmente o meu
desejo. Uma coisa é ser adolescente, outra é ter mais de quarenta
anos. O que se faz numa altura não se faz noutra. Com o decorrer do
tempo, o próprio desejo altera o seu sentido, o seu significado, a
sua orientação. E mesmo que eu quisesse apertar os mamilos do meu
amigo tantos anos depois, não o faria nem que fosse para não cair
no ridículo.
Na
maturidade, ou se vai mais longe, ou se não vai. Eu não tive
coragem de ceder mais prazeres ao amigo que me havia ajudado a
descobrir os mamilos.
A
descoberta dos rins só veio a acontecer com outras pessoas.
Sobretudo com mulheres, por estranho que possa parecer. Aos homens,
eu preferia dar os mamilos, talvez em virtude da agradável memória
que guardava da adolescência.
A
última descoberta foram os joelhos. Já tinha mais de cinquenta anos
quando fui para a cama com alguém que decidiu lamber-me dos pés à
cabeça, concentrando nos meus joelhos as suas maiores e melhores
atenções. Foram momentos inesquecíveis e que a partir daí
procurei reviver o maior número possível de vezes. Nos joelhos, no
prazer de me lamberem os joelhos, encontrei um gozo espiritual fora
do comum, quase um êxtase, o que me levava a interrogar se seria com
o objectivo de matar o prazer incomparável de entregar os joelhos a
uma língua devoradora que muitos crentes se ajoelhavam perante o seu
Deus numa postura em tudo oposta àquela que eu considerava genuína
e libertadora. Os crentes sacrificavam os joelhos em busca da
santificação, enquanto eu os cedia aos outros para que os
explorassem e conquistassem.
18
Se
Rute aparecesse agora, talvez se oferecesse para fazer café. Ela é
a única a bebê-lo. Eu apenas saboreio os restos da chávena que
habitualmente fica esquecida sobre a mesa depois de ela se ir embora.
Sei que devo prescindir do café, mas não resisto e bebo as últimas
gotas da chávena arrefecida que ela aí deixou há dias. Para mim,
são gotas tão escaldantes como carícias.
Se
Rute viesse agora a minha casa, eu já não me preocuparia com o meu
estado de saúde, nem me importaria com a demora da ambulância. Não
por ela ser médica, mas por ela ser Rute.
Bem
vistas as coisas, Rute é o meu orgasmo, o único orgasmo que ainda
posso ter. Já lá vai o tempo dos orgasmos secretos que os meus
alunos me proporcionavam. Rute é um orgasmo só de se olhar para
ela. É uma forma completa de prazer, é um todo harmonioso que me
enche de paz e rebeldia. Os orgasmos mentais que me provoca são
orgasmos de águas calmas e translúcidas, águas bravas e
misteriosas.
Quando
Rute chega, senta-se na minha cama e desata a falar sobre os seus
doentes, os casos mais complexos, situações de morte e de vida,
dúvidas da ciência, congressos da especialidade. Depois,
levanta-se, vai fazer café e, quando volta, parece outra pessoa:
põe-se a falar de sexo, sexo, sexo. É como se o café lhe desse a
volta ao miolo. Por isso me delicio a saborear as gotas que costuma
deixar no fundo da sua chávena. Talvez os restos do seu café
consigam igualmente incendiar-me.
Quando
entramos no sexo, nunca mais de lá saímos. Mesmo se algum dos seus
doentes volta a ser tema de conversa, o que fazemos é falar de sexo
e das propostas que alguns descaradamente lhe apresentam.
“Só
quero que morram felizes… Não levo a mal o que me pedem”, diz.
Em
certo sentido, falar de sexo, para ela, é uma forma de o
concretizar, é quase tão bom como fazê-lo. Além do mais, é uma
oportunidade para obter dados sobre uma situação que ela nunca
chegará a experimentar.
Falar
de sexo deixa Rute de cabeça perdida. Ela ri muito e, por vezes,
chora até às lágrimas, com coisas simples que lhe conto,
experiências banais, momentos suaves.
Adoro
puxar-lhe pela língua. E faço-o na tentativa de reviver muitos dos
bons momentos sexuais que vivi ao longo dos anos. Rute ri abertamente
quando se toca em questões íntimas. As suas gargalhadas, sonoras e
francas, são expressões de puro prazer. Quando a vejo rir até mais
não poder, conjecturo sobre quantos homens não terão vivido
momentos semelhantes junto dela e sobre quantos, ao vê-la rir tão
aberta e despreocupadamente, não terão caído na tentação de
imaginar que a penetravam, desfrutando do prazer dos seus lábios,
dos seus músculos, dos seus movimentos lúbricos, do seu calor.
Ninguém
podia impedi-los de tal liberdade. Nem ela mesma. Desde que estivesse
com alguém, dispondo-se a conversar sobre os mais variados temas,
ficava completamente à mercê da imaginação alheia. A beleza de
Rute era tal que ninguém merecia ser repreendido ou condenado por se
dar ao direito de ter com ela momentos imaginários de luxúria e
aventura carnal. Com Rute, o sexo era especulativo, mas nem por isso
deixava de proporcionar um prazer extraordinário. Ela própria me
revelou que muitos dos seus amigos lho confidenciaram. E eu acredito
piamente no que me diz.
Apesar
da idade que tenho, os prazeres do sexo não me são indiferentes.
Bem pelo contrário. Hoje, o sexo tem bastante mais importância para
mim do que em outros tempos. E tem-no porque compreendo melhor o
papel que desempenhou, e desempenha, na minha vida.
Na
juventude, deixava-me guiar pelos impulsos. Hoje, deixo-me guiar pela
sabedoria. São dois mundos distintos. Quando se obedece a um impulso
não se sente, não se aprende, não se saboreia. Por outro lado,
quando se pratica um acto com a noção do seu alcance e
consequências, ganha-se inteligência, conquista-se saber. O sexo é
a minha ciência, a compreensão das coisas que me dizem respeito e
com as quais me relaciono, de forma directa ou indirecta.
Quando
Rute me fala dos homens que conheceu e do sexo imaginário que eles
confessam praticar com ela, é como se eu me sinta fazer parte de uma
orgia, com pernas e braços e bocas e cabelos e pescoços e costas e
seios enovelados num só beijo, o beijo que me apetece trocar com
Rute na hora do último adeus.
O
sexo imaginário que aprendi com ela acabou por ser uma experiência
fulminante. Porque, sendo imaginário, permite ultrapassar eventuais
inibições. Só na imaginação o sexo não tem limites. É superior
a tudo o que alguma vez se possa sentir. Por isso, defendo que o sexo
especulativo está acima de tudo e de todos. Porque nos permite
atingir as mais elevadas formas de conhecimento.
Muitas
vezes, deliciada com o que os homens lhe contavam, Rute dizia não
acreditar em algumas coisas que ouvia, mas dizia-o apenas para que
eles reforçassem as suas histórias, para que as enfeitassem melhor,
para que as repetissem até à exaustão, o que eles faziam com
inenarrável prazer, pois repetindo o que tinham vivido
imaginariamente era como se vivessem de novo a experiência.
Rute
vibrava nesses momentos, entregando-se à conversa na tentativa de a
aprofundar o mais possível, como se desejasse uma penetração real
e plena. Pedia pormenores, fazia perguntas, esclarecia dúvidas,
sempre com o deleite estampado no rosto, sempre inteira e livremente
luminosa, dando a ideia de saborear um orgasmo feito de palavras,
ecos, risos, murmúrios.
O
prazer que Rute e os amigos sentiam ao falarem de sexo era um prazer
mútuo, tacitamente partilhado, intencionalmente vivido.
Fazendo
sexo imaginário, Rute e os amigos tinham ainda uma outra vantagem:
podiam desfrutar de quantos orgasmos lhes apetecessem, sem correrem o
risco de se esgotarem fisicamente. Para os homens, havia a vantagem
suplementar de não terem de manter a erecção durante mais tempo do
que eram capazes ou de não terem de passar pelo embaraço de uma
ejaculação precipitada.
A
partir de certa altura, a minha vida tornou-se tão desprovida de
interesse, que só as conversas com Rute, sobretudo as sexuais, me
animavam. Pode até ter sido por isso que, nos últimos anos, nunca
cheguei a considerar seriamente a hipótese de me suicidar. Se não
tivesse conhecido Rute, creio que a minha vida teria sido mais curta.
O
meu estado de debilidade física, hoje, é tão adiantado que nem
consigo levantar as duas pernas ao mesmo tempo! E até já me custa
simular com os dedos corridas de automóveis por entre as dobras da
roupa da cama. Por isso, não me podem condenar por gostar tanto das
conversas com Rute.
Há
uns tempos, pus a hipótese de ela conversar tão frequente e
prolongadamente comigo apenas com a intenção de dar o seu
contributo para que eu tivesse uma morte perfeita. Porque nada melhor
do que o sexo para nos criar a ilusão de que somos uma ilha rodeada
por um mar de rosas.
Rute
adivinha-o e procura envolver-me desse odor mágico sempre que vem a
minha casa, para que eu possa levar para a cova alguma coisa de
valioso, inesquecível. Creio que também o faz para evitar que eu
sinta ciúmes dos homens de que me fala. Ao colocar-me no mesmo
patamar de outros amigos seus acaba por me lisonjear. Porque já não
tenho idade para sonhar com Rute, embora o faça todos os dias, em
todos os momentos, sem restrições nem remorsos. E a verdade é que
não me ressinto das outras amizades de Rute. Provavelmente pela
forma como ela me trata, como me fala, como me provoca.
Os
homens que convivem com Rute acabam, inevitavelmente, por se cansar,
saturar, desiludir, ao perceberem que ela não vai além de conversas
sobre sexo. Por melhores que estas sejam, por mais prazer que
proporcionem, torna-se difícil para eles viver toda uma vida sem
sexo verdadeiro e palpável. Isto, porém, está longe de acontecer
comigo. Quanto mais platónica é a minha relação com Rute mais
intensa é a minha realização física e mental.
Dificilmente
algum homem perceberia a forma que Rute encontrou de atingir prazer.
Era demasiado etérea, demasiado nebulosa, demasiado esquiva. Rute
optou pela solidão do sexo ilimitado. Na sua opinião, alguém que
não fosse capaz de se unir a ela espiritualmente através de um sexo
mentalmente construído também não seria capaz de outras coisas.
Quando
Rute tinha cerca de trinta anos, um dos seus melhores amigos chegou a
dizer-lhe, depois de terem estado horas na cama a conversar, sem que
nenhum deles tivesse tido oportunidade de tocar no outro:
“Não
aguento, Rute, por favor, despe-te!, vamos fazer amor. Isto é uma
loucura…”, mas ela não se comoveu e defendeu-se, com frieza:
“Se
não tenho necessidade de praticar sexo, porque razão hás-de
tê-la?” O amigo deu-se ao trabalho de explicar que os homens eram
diferentes, que não se controlavam com a mesma facilidade que as
mulheres e pediu que ao menos Rute tentasse compreender isso,
sublinhando que, para ela, nem seria um sacrifício, pois havia de
adorar a experiência.
“Se
gostas de conversar sobre sexo”, insistia o homem, “com certeza
que gostarás de o praticar. Gostarás ainda mais, tenho a certeza. O
sexo é a melhor coisa do mundo!”
Mas
Rute replicou que ele dizia isso porque estava desesperado e não
conseguia controlar os seus instintos.
“Os
humanos são diferentes dos animais”, defendeu ela. “Temos o
dever de superar as nossas tendências primárias, para que, um dia,
sejamos capazes de viver o sexo a um nível superior. Começo a
desconfiar de que o sexo é o grande problema da humanidade. Já
imaginaste como o nosso dia a dia seria completamente outro se as
pessoas aceitassem fazer sexo apenas imaginariamente? Não
assistiríamos a violações, nem agressões, nem desentendimentos.”
O
amigo contrapôs que, se fossem proibidas de fazer sexo, as pessoas
tornar-se-iam mais violentas e o número de violações subiria em
flecha porque o nível de frustração de cada um seria enorme.
Para
Rute, porém, não se tratava de proibir o que quer que fosse. Fazer
sexo imaginariamente seria uma opção livre de todos.
Como
resposta, ouviu que a sua ideia era um perfeito delírio!
“Os
homens não têm a mínima capacidade de controlar o instinto”
reagiu ela, levando o amigo a replicar que o controlo do instinto era
uma tolice. Por que se haveria de fazê-lo se os instintos eram bons
e saudáveis? Para quê reprimir ainda mais a nossa vida, que era já
tão castigada? Para quê mais opressão?
Rute
disse que ele interpretava tudo no sentido negativo. Para ela, o sexo
concreto rebaixava-nos e amarfanhava-nos, ao passo que o sexo
imaginário nos elevava e distinguia.
Por
não concordar com os homens que tentavam conquistá-la e seduzi-la,
sobretudo por não se identificar com a linearidade dos seus
raciocínios, Rute preferia ficar reduzida ao espaço que a alma
ocupava no seu corpo. Eles afastavam-se e ela respirava fundo. Com
mais de cinquenta anos, não tinha mudado uma vírgula na sua forma
de encarar a relação afectiva com os outros.
Quando
se sentia demasiado só, ou quando simplesmente lhe apetecia, ou
quando achava que eu tinha saudades dela, vinha bater-me à porta e
contava-me a sua última experiência, o seu último fracasso.
“Cada
vez mais me convenço de que fazer sexo é uma completa inutilidade”,
dizia ela, com o olhar brilhante na minha direcção.
Para
ter a certeza de que não me faltava à verdade e que estava segura
da sua posição, cheguei a sugerir-lhe por mais do que uma vez que
abrisse uma excepção e tentasse fazer sexo de facto, nem que fosse
para dispor de um termo de comparação com o sexo falado que tanto
defendia.
“Não
me diga que vai chegar aos sessenta sem saber o que é o sexo…”,
comentava eu, tentando chamá-la à razão. Mas Rute achava que eu
estava a provocá-la e desatava a rir com a minha insinuação, como
se eu apenas procurasse convencê-la a fazer amor comigo,
proporcionando-lhe a oportunidade de praticar sexo concreto com
alguém que não correspondia exactamente aos padrões sexuais
instituídos.
Risada
atrás de risada, acabávamos por nos perder nos labirintos coloridos
das ideias que trocávamos, engalfinhávamo-nos em argumentos,
discutíamos entre frases ternas e carícias amigas e nunca mais
recuperávamos o cerne do diálogo. Mas não nos aborrecíamos por
isso. O que mais prezávamos era o prazer que a nossa liberdade nos
permitia. Sabíamos que não nos restava muito mais tempo de
convívio, mas sabíamos que todos os momentos que nos esperavam
seriam vividos com entrega total.
19
Vou
escrevendo estas páginas aos saltos, aos soluços, como quem regista
num livro de ponto a matéria ensinada nas aulas. Na verdade, não
escrevo um livro, de forma organizada e metódica. Tomo notas,
conforme o apetite de cada momento, conforme a disponibilidade de
cada hora e de cada dia. Por isso, a demora da ambulância acaba por
me dar jeito.
Quando
me senti mal há pouco mais de uma hora atrás, quando me apercebi de
um esticão no peito que parecia levar-me o coração para a outra
margem, estava precisamente a terminar uma frase mais trabalhosa. Mas
não acredito que esse tenha sido o motivo da minha indisposição.
As frases não atacam o coração de forma tão drástica e cortante.
Moem, por vezes, mas depois libertam.
Não
entro em angústias com a minha tarefa de escrever sobre os anos que
vivi. Um pouco hoje, um tanto amanhã, vou marcando o tempo por aí
fora. Não tenho momentos brancos. Quando me surgem dúvidas, não
hesito, não desespero. Simplesmente avanço. Sempre foi esta a minha
maneira de proceder. Avanço como um barco para o alto mar,
independentemente das condições do tempo. O que importa é chegar a
algum lado, alcançar a dimensão que se procura. Por vezes, chego
bem, chego forte, com o barco inteiro; outras vezes, aporto aos
bocados, com a embarcação desconjuntada. O importante, contudo, é
chegar. Chegar sempre.
Quando
escrevo, não ouço, não vejo, não cheiro, não nada. Não preciso
de música, não preciso de ambiente, não preciso de natureza.
Deixo-me tomar pelo que conto e o que conto torna-se tudo em mim. O
que me rodeia torna-se outro mundo, a cujos critérios o meu
comportamento passa a obedecer.
Se
estou envolvido com Rute, se escrevo sobre ela e depois tenho de
passar a escrever sobre Raimundo, ressinto-me e sinto que a mão não
se adapta facilmente à mudança. Por vezes, tenho de parar, abrir um
saco de café, meter o nariz lá dentro e cheirar… (é o que faço
quando Rute não me deixa fundos de chávena), respirar… para
desanuviar e preparar a minha entrada em outro tempo, outra
existência.
Se
tenho de passar a escrever sobre mim, ainda pior. Ou ainda mais
difícil. Porque a minha parte neste livro exige tudo, exige o que
nunca pensei contar, exige a maior profundidade sobre o que sou, por
eu ser como sou.
Ninguém
me perdoará se este livro tiver fragilidades no que se me refere.
Depois de tantos anos a ensinar, aprender, explorar linguagens
desconhecidas, desvendar campos de reflexão, ninguém me perdoará
se eu vacilar algures. Nem eu me perdoaria.
Sei
muito bem o que me espera depois deste livro, ou melhor, deste
registo. A solidão é o meu destino. Sempre o foi, sempre o será,
antes e depois deste monte de páginas. Se dei, e dou, tanta
importância ao sexo foi precisamente para combater a solidão que me
devorava. Todas as vezes que estive intimamente com alguém senti que
o meu corpo se metamorfoseava, se evaporava, se elevava a uma
dimensão sem medida. Era como deixar de respirar, como deixar de
pensar.
O
sexo abala-nos, projecta-nos, esvazia-nos e, ao fazê-lo, leva-nos a
renascer, fortalecendo-nos na morte. É esta a razão porque uma das
primeiras funções da velhice é acabar com o sexo, pelo menos com o
sexo físico, para que a morte possa efectuar em nós o seu trabalho
de construção progressiva. O que devemos fazer, se não quisermos
deixar-nos vencer, é projectar no outro a nossa vida, o nosso sexo,
para que ele possa continuar por nós a corrente de prazer. Só isso,
afinal, a corrente de prazer, prazer em corrida, prazer em estafeta.
Foi
por saber que o sexo é essencial na luta contra a solidão que Rute,
apesar de não o praticar, não se inibe de falar nele a todo o
momento. O sexo é de tal forma poderoso que até o seu exercício em
palavras é suficiente para nos aliviar, para nos realizar. É que,
ao falarmos no sexo, estamos pelo menos a antecipá-lo. E não há
nada melhor do que antecipar um prazer. No caso de Rute, ela
antecipa-o em permanência. E antecipa-o com tal convicção que
acaba por nunca ter necessidade de o realizar.
Rute
é uma mulher bela que se acha feia e se dedica completamente aos
outros, enquanto Raimundo é apenas um homem rico que só pensa em
dinheiro. Ambos têm sexos definidos (o que facilita a análise, a
descrição e a compreensão das suas personalidades), sabem quem
são, de uma forma ou de outra, gostam mais ou menos de si mesmos, o
que me ajuda a penetrar no íntimo de cada um e descrevê-los de uma
maneira honesta. Nestas páginas, compete-me contar tudo o que sei
sobre Rute e Raimundo e sobre o modo como eles acabaram por ter as
vidas que tiveram.
Sobre
mim, todavia, tenho o dever de ir mais longe. Tenho de me conhecer na
íntegra e, como tal, tenho de me revelar na íntegra. Eu sou o meu
grande desafio nesta narrativa. Rute e Raimundo são o meu outro
desafio, o meu desafio dos outros. E a minha capacidade de os contar
dependerá sobretudo da minha capacidade de os conhecer. Posso
conhecê-los mais ou conhecê-los menos. Ninguém me avaliará pelo
volume de conhecimento que eu tiver deles, mas avaliar-me-ão pelo
volume de conhecimento que eu tiver de mim.
Neste
livro, a exposição da minha vida sexual é a forma que encontro
para conhecer o que me diz respeito e, ao mesmo tempo, para nada
deixar por contar. Não posso ter preconceitos, não posso vergar a
convenções, não posso hesitar entre os vários caminhos. O meu é
o da liberdade. Sei que haverá quem considere que eu não devia
abordar este ou aquele assunto por esta ou aquela perspectiva, em
virtude de haver regras a cumprir, códigos a respeitar, mas a minha
tarefa é contar, simplesmente contar. Sei que me olharão de lado,
que duvidarão das minhas intenções, que tentarão desclassificar o
que escrevo. Contudo, não me deixarei intimidar, não alterarei uma
vírgula ao projecto que abracei.
Quem
se habitua a um rosto como o meu habitua-se a tudo. Durante anos,
tive de sair à rua com o rosto que tenho, com a expressão que me
caracteriza, com a pele que me envolve. Muitas vezes, andei de óculos
escuros, para fugir à realidade. Não era um problema de perfeição
ou de beleza porque esta até pode ser bastante nociva, como o caso
de Rute exemplifica à saciedade. O meu problema era de convicção.
Sempre fui hesitante. E todas as vezes que segui em frente, todas as
vezes que procurei transmitir segurança, fi-lo precisamente para
combater a hesitação que me esboroava.
Eu
devia descrever aqui em pormenor a minha aparência e os contornos da
minha face, devia descrever muita coisa, para agradar aos teóricos,
aos encartados, aos puristas.
Para
além de dizer, como já disse, que o meu rosto é oval, uma sombra
oval, e que as minhas orelhas sobressaem por entre farripas compridas
e longas de cabelo, devia dizer ainda se o nariz é adunco ou
achatado, se os lábios são grossos ou finos, se o queixo é
saliente ou retraído, se as pernas são longas ou curtas. Mas não
me apetece ir por aí, não me apetece ir por onde vai a maioria, não
me apetece seguir a cartilha.
O
meu rosto é o meu rosto. Ninguém tem nada a ver com as suas linhas,
os seus contornos, os seus momentos claros e escuros. O rosto de
alguém reflecte bastante a sua maneira de ser e, como tal, eu devia
esmiuçar o meu até ao limite, para que me conhecessem o melhor
possível. Contudo, se essa fosse a minha escolha, os leitores
continuariam a não ter uma ideia exacta de mim, porque a minha
descrição não alcançaria as zonas onde se formam as linhas da
dúvida, da mágoa, da expectativa, do sonho, do desencanto, da
revolta. Um rosto é um poço sem fundo e, como tal, não vale a pena
tentar dá-lo a conhecer no papel.
Estive
há pouco a escrever sobre Rute, antes já estivera a escrever sobre
mim, por isso, agora, devo dispensar alguma atenção a Raimundo.
Pretendo escrever sobre Raimundo, mas Raimundo está tão distante,
está tão frio, está tão desinteressante, que nem sei o que pensar
dele. Há dias que não me dá notícias, mas também há dias que
não o contacto, há semanas que não folheio as páginas que sobre
ele escrevi. É como se tivesse deixado de fazer parte deste livro,
como se tivesse emigrado de novo.
Não
me apetece nada voltar para junto de Raimundo e contar o que tenho
para contar. O dinheiro, que ele tanto ama – e, como tal, tanto
despreza – irrita-me a um nível tão profundo que só o facto de
eu abordar o tema me provoca náuseas.
Estranha
não deixa de ser, também, esta minha aversão ao dinheiro. Se
calhar, há qualquer coisa que ainda não descortinei por trás da
minha postura. Talvez seja o medo de que um dia o dinheiro me venha a
faltar. Ou talvez seja a lembrança dos tempos de infância em que o
dinheiro faltou à minha família.
Minha
mãe chorava por não ter posses para me vestir com roupas que ela
considerava importantes para a minha afirmação social e ainda hoje
sinto essa humilhação, que era a humilhação da minha mãe, mas
que por isso mesmo é uma humilhação ainda mais minha do que se
fosse realmente minha. Para um filho, não há pior humilhação do
que a humilhação de um pai e para um pai não há pior humilhação
do que a humilhação de um filho. O dinheiro é a causa das maiores
humilhações. E é amado ou odiado conforme a dimensão das
humilhações sofridas ou temidas.
Rita
não era minha filha, mas procurei sempre evitar que ela passasse por
situações vexatórias, como ir para a escola menos bem vestida do
que as outras crianças. No fundo, creio que todos os pais, todos os
adultos procedem e sentem desta maneira. Ninguém gosta de ver uma
criança em posição de inferioridade perante as restantes.
Sobretudo porque uma criança não tem hipóteses de defesa.
Muitas
vezes, Rita fazia-me perguntas sobre a nossa situação financeira,
na tentativa de identificar o patamar social em que vivíamos, e eu
não sabia que resposta lhe dar. Se dissesse que pertencíamos à
classe dos ricos ou dos pobres, estaria a faltar à verdade.
Procurava transmitir-lhe a ideia de que a riqueza não era tão
importante como isso, que era um exagero desnecessário, mas também
não queria que ela pensasse que corríamos riscos de, um dia, cair
numa situação de penúria, por isso acabava por a tranquilizar,
dizendo que nos integrávamos na classe dos remediados. De qualquer
maneira, a sua pergunta incomodava-me, porque me obrigava a ordenar
ideias sobre um assunto que sinceramente me desagradava. Além de que
falar-lhe em “remediados” não deixava de ser uma forma de nos
tabelar.
Não
só não gosto de falar de dinheiro, como não gosto de pensar nele.
Por isso, falar de Raimundo, ou pensar nele, me repugna. Estar com
ele, todavia, não me provoca a mesma reacção. Quando o vejo em
pessoa não o associo ao dinheiro. Vejo-o como um simples homem, como
alguém debilitado, o que não deixa de ser paradoxal, tendo em conta
a sua monumental capacidade financeira. Mas Raimundo, na minha
óptica, é sobretudo uma pessoa fraca. Todo o seu porte aponta nesse
sentido. Fisicamente, ele não tem nada o aspecto de endinheirado.
Como é forreta, como tudo faz para não gastar o que possui, acaba
por ter uma aparência envelhecida e decadente. Quem não o
conhecesse poderia pensar que é um simples mendigo. Curiosamente,
porém, quando estamos juntos, é esta imagem de despojamento que
aprecio nele. Encará-lo, abatido e triste, torna-me mais igual a
ele. Se Raimundo não fosse tão obcecado com dinheiro seria
provavelmente uma pessoa adorável.
Digo
tudo isto assim, digo que Raimundo me repugna, mas sei que, mais
minuto menos minuto, depois de estar a escrever sobre ele, acabarei
por gostar da experiência, acabarei por gostar de me debruçar sobre
o seu egoísmo, a sua avareza, a sua austeridade, porque o verei na
minha frente, porque o ouvirei arrastando os pés sobre o soalho,
porque me aperceberei do odor da sua roupa. Escreverei sobre
Raimundo, nem que seja para sublimar as humilhações da minha mãe
que se tornaram minhas. Há em Raimundo algo que me toca de certa
maneira, porventura de raspão, algo relacionado comigo, que me
reflecte, que espelha qualquer coisa da minha alma mais absurda e
primária. Apesar de não o parecer, Raimundo é caloroso e
sentimental, mas o desafio que mantém consigo mesmo é precisamente
o de não expor a sua intimidade. É isto que alimenta a nossa luta,
a que travo com ele. Porque Raimundo pretende esconder a sua
sensibilidade e eu pretendo provar que ele é bastante mais do que
aquilo que mostra. Para isso, terei que conseguir expô-lo. Com
certeza não tanto como faço comigo, mas sem dúvida expô-lo mais
do que ele alguma vez admitiria.
20
Enquanto
foi emigrante, Raimundo viu-se na obrigação de desmontar a
engrenagem de arames, cordas e fios que lhe haviam instalado na mente
e socorrer-se de outras engrenagens que foi encontrando, aos poucos,
com a paciência do desespero. Novas engrenagens com que se deparava
no dia a dia e que, de uma forma ou de outra, ia carregando entre os
ombros.
No
estrangeiro, a linguagem que Raimundo falava todos os dias era um
puzzle inacabado, mas os sons também o eram, os reflexos do
movimento, as sugestões que lhe chegavam através das frinchas das
portas, os passos na neve, as distâncias incalculáveis, os carros
que passavam constantemente, as buzinas, as montras, os passeios
vazios, as janelas fechadas sobre a brancura, a compreensão do que
havia e não havia, o alcance do que via – entrevia – e não via.
Os
cães não ladravam no estrangeiro. Por isso, era estrangeiro. Os
cães estavam lá, mas não se viam, nem se ouviam. Eram cães mudos,
cães sem existência própria, cães que olhavam os acontecimentos
sem esboçar reacção. Os cães estrangeiros estavam de guarda,
sempre de guarda, de olho em qualquer coisa, prontos a enfiar o
dente.
O
céu não tinha cores ao pôr-do-sol. O firmamento estrangeiro era de
cinza, permanentemente de cinza, e a noite chegava sem que se desse
pelo cair do sol. Passava-se do cinza para o negro, de repente, sem
se esperar, sem se notar.
Depois,
a noite parecia não acabar. Era tão longa e tão funda que Raimundo
não conseguia estar muito tempo na cama, com receio de não voltar à
vida. Levantava-se e saía, sem rumo, arrastando os pés, só para se
sentir vivo, para se sentir mexer. Procurava algum café aberto na
zona onde vivia, pela madrugada fora, entrava, sentava-se e demorava
horas vendo passar o tempo, lentamente, passo a passo, milímetro a
milímetro, enquanto a empregada do estabelecimento lhe ia servindo
cafés atrás uns dos outros.
De
vez em quando, entrava e saía alguém, por entre resmungos,
esfregando as mãos, olhando em volta sem nada ver, e sentava-se,
também, para ficar ali, à beira do abismo, sobre o qual assentavam
as curvas do destino.
Raimundo
esqueceu o que tinha vivido e começou de novo, a partir do
desconhecido. Começou pé aqui, pé ali, passo atrás de passo,
contando os minutos que a engrenagem da sua mente permitia articular.
Por vezes, os mecanismos rangiam, como se tivessem falta de óleo,
quase emperravam, desarticulados, mas ele persistia em sobreviver,
teimava, não desistia de conquistar outros lugares.
Foi
nas madrugadas que passava nos cafés, sem nada pensar nem dizer, que
Raimundo foi esquecendo o que vivera, progressiva e metodicamente,
até se tornar outra pessoa, que era ele mesmo, mas já com outra
pele, com outra estrutura interior, com outra noção das coisas. Por
isso, ele não se admirava que não o reconhecessem, que o
ignorassem, que lhe passassem ao lado. Só ele era capaz de ouvir a
sua voz, como uma espécie de eco interior, que ia fazendo contas. E
não se preocupava com mais nada. Cada passo que dava era um novo
país da sua emigração, cada pessoa que conhecia era uma nova
língua da sua aprendizagem, cada momento que atravessava era um novo
calendário do seu abandono.
Foi
com a emigração que aprendeu a viver sozinho. Não havia nada à
sua volta. E o que havia não lhe pertencia. Por isso, era como se
nada houvesse. Tudo o que via não contava, não pesava, não mexia.
Era oco, era ilusão.
Muitas
vezes, davam-lhe ordens e ele não entendia os termos daquela língua
estranha. Então, punha-se a olhar, a olhar, procurando destrinçar
algum sentido nas arestas dos olhos de quem lhe falava. Depois,
berravam com ele. Erguiam a voz e insultavam-no. Pelo menos, era o
que parecia. E, se não o insultavam, ele sentia-se como se o
fizessem. Sentia-se inferiorizado.
Nessas
alturas, rezava. Rezava sem saber o que dizia, mas rezava. Já tinha
esquecido as orações de criança, esquecera-as no dia em que tomara
avião para o estrangeiro, mas ainda conseguia lembrar-se vagamente
de uns sons que articulava para não morrer. Se Raimundo não rezasse
naquelas ocasiões, desfaleceria, sem que alguém o pudesse socorrer.
Quando
não olhava para quem lhe dava ordens, Raimundo reagia conforme
calhava, fazia gestos ao acaso, na esperança de satisfazer a vontade
de quem lhe dava instruções. Mas logo a seguir ouvia mais insultos,
mais berros, mais ordens. E voltava a rezar. Não atinava. Não
percebia as ordens que lhe davam, nem as orações que ele mesmo
fazia.
Muitas
vezes, Raimundo quase cedeu, quase desistiu, quase deixou o
estrangeiro, a fim de partir em busca do outro estrangeiro onde havia
nascido.
Mas,
com o tempo, os dias foram-se compondo. Como se por milagre. Raimundo
foi-se aventurando aos poucos por novas esquinas, foi puxando pela
cabeça, foi descobrindo novas formas e significados nas sombras
brancas da paisagem, que era todos os dias a mesma, mas sempre
renovada.
Passou
fome, por não perceber o que se passava à sua volta, por não saber
onde se comprava alimentos, por não conhecer as estradas, por não
fazer ideia de como pedir ajuda, por não ter carro para se deslocar,
por não compreender o funcionamento dos transportes públicos. Tinha
a sensação de que se dirigisse a palavra a alguém podiam detê-lo,
fazer-lhe mal, agredi-lo. Olhava as pessoas e não era capaz de
adivinhar o que tinham em mente. A linguagem dos olhos não era a
mesma que aprendera em criança. Tinha outra construção, outro
brilho, outro fundo para lá das pupilas.
À
sua volta, tudo era grande e inacessível. Desde o céu à mais
insignificante pedra de caminho ou aos lábios de uma pessoa que
passava na rua. Uma mesa grande, um jarro grande, um carro grande,
uma criança grande, uma loja grande. Tudo grande e ele tão pequeno
arrastando os pés sobre o gelo. Foi nessa altura que se recorda de
ter tido a consciência de que não podia deixar de arrastar os pés,
muitos anos antes, quando ainda se encontrava na força da vida. Foi
o frio, a finura do piso sobre o qual caminhava que o convenceu a
nunca deixar de arrastar os pés. E assim foi pela vida fora.
Arrastar os pés era a garantia de que não cairia, de que não se
desequilibraria, de que não tropeçaria. Ou, se se estatelasse, a
queda seria reduzida, seria amortecida pelo arrastamento dos pés.
No
estrangeiro, Raimundo aprendeu a gostar da rotina. Para ele, a rotina
tornou-se a garantia de uma vida sem sobressaltos, a certeza de que
em cada dia não teria menos do que no dia anterior. À medida que
foi percebendo as virtualidades da rotina, não foi difícil optar
por nunca sair dela. O seu objectivo era poupar dinheiro. Poupar para
depois investir na terra onde nascera, para a qual regressaria e que
haveria de ser, um dia, o seu segundo país estrangeiro.
Raimundo
fazia sempre tudo igual, todos os dias. Assim, era como se o tempo
tivesse parado, enquanto ele ia ficando cada vez mais rico. Se nada
se alterasse no dia a dia, a sua fortuna não correria riscos.
Aumentaria sempre.
Às
vezes, preferia não falar a língua do país estrangeiro onde vivia,
para não se ver obrigado a dar explicações, para não se ver
obrigado a pensar. Limitava-se a fazer, executar, concretizar. Fazer
era dar uso às mãos, o que permitia manter a cabeça vazia pelo
maior período de tempo possível.
Raimundo
achava que o seu corpo não tinha lógica no país onde se
encontrava, previa que necessitava de recuperar alguma coisa à sua
frente, sentia que as suas mãos não eram suficientes para chegar ao
fim da viagem. Era como um sonho em que não se consegue afastar o
pesadelo, não se consegue mudar a agulha do comboio, não se
consegue saltar para a outra margem. O seu barco estava a abarrotar
de dinheiro e não havia maneira de ele dar com o caminho de
regresso.
Viveu
no estrangeiro durante mais de vinte anos, até se esquecer de tal
forma do seu país que acabou por recuperar a memória do passado com
a mais absoluta nitidez.
Certa
noite, certa madrugada, quando se levantou para não morrer na cama,
quando saiu à rua em busca de ar, de movimento, de sons mínimos
sobre a pele fina da calçada, teve a nítida sensação de estar de
volta ao pais onde nascera, embora soubesse que tal não podia ser
verdade. Foi uma visão que teve, uma visão que o penetrou e o
transtornou, uma visão que dava a ideia de ser um pais novo, o seu
país, e que o não era.
Mas
Raimundo não queria saber, não estava em condições de saber.
Pôs-se aos gritos no meio da rua, dizendo que estava na sua terra,
que aquela era a rua onde tinha nascido, que ali estava a escola onde
havia estudado, que mais além ficava a casa da sua namoradinha, e
abordava as sombras que passavam como se fossem farrapos de velhos
conhecidos, velhos guindastes. As órbitas olhavam-no no escuro e
nada diziam, nada acrescentavam. As órbitas eram a sua dor afundada
nos pés.
Aflito,
sem compreender o que se passava – estava na sua terra, mas também
no estrangeiro ao mesmo tempo – Raimundo procurou o café do
costume, o café onde costumava passar as madrugadas quando tinha
medo de dormir para não morrer e não viu estabelecimento algum. Era
a prova de que estava no seu país e não no estrangeiro. Deixou-se
cair no meio da rua, sobre o gelo, sobre a lama, sobre o alcatrão
esbranquiçado, de braços abertos, dizendo que finalmente tinha
regressado à sua terra, que finalmente se livrara do pesadelo
estrangeiro, que finalmente tinha enriquecido para sempre.
Deitado
na estrada, Raimundo via sacos de água passarem por cima dele,
embora não o pisassem, como se ele não estivesse ali, como se a sua
existência não fosse reconhecida.
Tempos
depois, nunca soube quantas horas depois, alguém o levou em braços
para o café que ele habitualmente frequentava. Sentaram-no como um
boneco ao balcão, no lugar do costume e ele viu que a empregada já
tinha a cafeteira na mão, preparando-se para lhe encher a chávena.
A sua expressão era como a de um chamamento, um convite para uma
cerimónia cujo alcance não adivinhava.
Debby,
a empregada que tinha o nome escrito num pequeno dístico afixado
sobre o seio esquerdo do uniforme, acolheu-o com um sorriso maior do
que era regra, o que fez que ele acabasse por compreender e aceitar
que estava no estrangeiro mas que, ao mesmo tempo, também estava na
sua terra. Porque só na sua terra podia haver uma mulher como Debby.
Raimundo
olhou e olhou, para ter a certeza de que Debby era mesmo o nome da
rapariga, apesar de já o ter lido vezes sem conta. Mas fazia parte
da sua rotina confirmar tudo. Naquele dia, porém, era a primeira vez
que se atrevia a olhar de forma tão demorada para o seio esquerdo de
Debby.
Sentiu-se
culpado. Mas Debby olhou-o de forma franca e amiga, levando-o a
recompor-se (embora não tivesse feito qualquer esforço para
perceber a intenção dela). Raimundo aceitava o que via, apenas, o
que via diante dos olhos. Para ele, só existia o olhar e o dinheiro.
E o que lhe ficou desse tempo foi mesmo só a claridade de Debby na
noite escura de Toronto. O vento cortava os espaços entre os corpos
feridos de noite, mas nem assim Debby deixava de ser a mulher do
sorriso que o esperava por trás do balcão.
Tempos
depois, Raimundo soube que ela partira de vez, quando se deixara
adormecer ao volante na viagem de regresso a casa pela madrugada.
Debby partira sem ter tido tempo para mais nada, para uma última
palavra, um último sorriso.
Só
então Raimundo percebeu o que ela lhe andara a querer dizer enquanto
vivera e ele nunca entendera; só então captou o sentido dos seus
olhares, dos seus silêncios, dos seus pensamentos; só então se deu
conta de que alguém que parte, afinal, tem tanta coisa para dizer,
para contar, para desejar.
Raimundo
sentiu-se ainda mais estrangeiro, mais enregelado, como se tivesse
conseguido um lugar no cemitério ao lado de Debby.
Quando
me contou isto, Raimundo suspendeu a respiração, fitou-me nos olhos
e disse:
“Poucos
dias antes de voltar, tentei lembrar-me da tua cara, Lis, mas não
consegui. Não consegui ver nada. Só me lembrei da forma das tuas
orelhas, imagina! O resto era uma névoa branca, como o tempo em que
Debby desapareceu da minha vista. Um dia, hei-de voltar à terra onde
a conheci. Hei-de lá voltar, um dia”.
21
Desde
cedo ouvi dizer que as pessoas deviam apaixonar-se por alguém,
deviam envolver-se, entregar-se, partilhar o coração. Quando fiz
dezasseis anos, perguntaram-me se “já” me havia acontecido, se
“já” me tinha apaixonado. Inicialmente, não detectei o alcance
da pergunta, mas depois percebi o que estava em causa. Aquele “já”
queria dizer alguma coisa. Queria dizer que era tempo de eu me mexer,
de acordar, de mostrar o que valia. Antes que pudessem duvidar das
minhas capacidades, decidi resolver o assunto de uma vez por todas.
Não havia motivos para me sair mal. Bastava-me comportar como alguém
que confia, alguém que conhece o terreno que pisa. Eu não queria
correr o risco de constituir excepção. Queria ser como toda a
gente. Não admitia ficar de fora. Tinha horror à diferença.
Receava que me discriminassem, que me olhassem de lado.
Por
isso, e apesar da minha pouca idade, apressei-me a procurar alguém
por quem me pudesse apaixonar, dedicando-lhe o fogo indomável do meu
coração. Agarrei a primeira pessoa que me veio à cabeça:
correspondia aos padrões pelos quais eu ansiava e morava na rua a
seguir à minha. Deste modo, podia vê-la quantas vezes me
apetecesse. Era só dar uma volta pelas redondezas e esperar que
saísse de casa para o trabalho ou que regressasse ao fim do dia. O
importante era que, mais tarde ou mais cedo, os meus sentimentos
fossem recompensados. Porque eu não queria apaixonar-me a troco de
nada.
Mal
imaginei – foi mesmo uma questão de imaginar – que o meu coração
tinha destinatário, percebi que a minha vida mudara radicalmente. Eu
só pensava em Serafim, Serafim, Serafim. Era aflitivo. Mas, ao mesmo
tempo, desanuviava-me. Porque, ao pensar nele, tinha a alma sempre
cheia de esperança. O meu único objectivo era conquistar Serafim.
De resto, o mundo podia desabar que eu não me daria conta dos
estragos à minha volta, tal a obsessão em que vivia.
A
minha primeira paixão foi uma questão de planeamento puro e
simples. Depois de me confrontarem com aquele “já”, percebi que,
à semelhança do que acontecia com a maioria dos jovens da minha
idade, tinha chegado a hora de incendiar os sentimentos com que a
natureza me dotara e não hesitei um momento. Por qualquer motivo,
Serafim parecia-me ser a pessoa mais indicada para o efeito. Era
vários anos mais velho do que eu, folgazão, voz grossa, sociável,
bem parecido, solteiro. Desde os meus dez ou onze anos, quando
passava por ele, ouvia geralmente um comentário simpático. E nem me
ofendi no dia em que, com inusitado descaramento, se atreveu a
beliscar-me uma das nádegas perante vários homens com quem se
encontrava. A minha reacção inicial foi de perplexidade, mas não
demorei mais do que segundos a dar-me conta de que o seu gesto não
passara de uma brincadeira amistosa. Aquele beliscão nunca mais me
saiu da ideia. Fiquei sempre com uma especial predilecção por
Serafim. Em vez de me causar repulsa, o seu gesto fez nascer em mim a
ideia de que eu representava alguma coisa na sua vida, caso contrário
ele não teria feito o que fez.
Anos
mais tarde, quando me apaixonei por ele, fi-lo com a certeza de que o
beliscão que ele me dera fora a maneira de me escolher para algo que
eu desconhecia, mas que tudo indicava teria a ver com paixão, com
efusão de emoções.
O
“já” com que me tinham desafiado era uma forma de me alertarem
para algo que me faltava descobrir. Se calhar, eu devia ter-me
apaixonado quando Serafim me dera o beliscão nas nádegas. Se
calhar, aquele fora o sinal que na altura eu não detectara. Se
calhar, Serafim já esperava por mim desde há anos sem que eu me
tivesse dado conta do seu interesse.
Foi
neste contexto que a minha alma de dezasseis anos se deixou cativar.
Passei noites inteiras, à janela, mirando as estrelas com o
pensamento em Serafim. Eu não duvidava de que na rua ao lado ele
também não pregaria olho só de pensar em mim e no que eu
representava para a sua vida.
Nunca
lhe tinha dado o mínimo indício sobre os meus sentimentos, nem
achava que fosse necessário fazê-lo, porque, de acordo com a minha
forma de pensar, Serafim tinha obrigação de ver, de adivinhar, de
ler, o que me ia no íntimo. Ao passar por ele na rua, eu não
conseguia deixar de corar, pondo a nu o caldeirão da minha
sensibilidade. Por isso, era impossível que ele nada detectasse, era
impossível que não percebesse o meu turbilhão de sentimentos.
Por
vezes, se eu vinha a descer a calçada, ou se me aproximava do café
onde Serafim costumava parar ao fim de tarde, os amigos chamavam-lhe
a atenção, fazendo sinais para que não deixasse escapar a
oportunidade de me ver ou, porventura, de me voltar a beliscar as
nádegas. Se os amigos notavam o que se passava comigo, eu não
admitia que Serafim não notasse.
Eu
sempre ouvira dizer que a paixão era um fogo incontrolável, uma
espécie de sorte grande. Por isso, não tive dúvidas de que ao
deixar-me laçar, ao deixar-me apanhar pelo destino, estava a dar um
passo fundamental.
Contudo,
o tempo foi passando e Serafim nunca tomou qualquer iniciativa em
relação a mim. Quando eu passava por ele, ou o encontrava junto ao
café onde convivia com gente da sua idade, a impressão que me dava
era a de que ele, a partir de uma determinada altura, me passara a
evitar. Os próprios amigos já não lhe davam cotoveladas, nem
diziam piadas quando eu aparecia.
Um
dia, enfrentei Serafim. A sua postura de súbita indiferença era um
enxovalho que eu não suportava. Achava-me no direito de saber se
acontecera alguma coisa, se eu o ofendera, se alguém lhe fizera
chegar algum mexerico a meu respeito. Por maiores que fossem os
nervos que eu sentia, detive-me a alguns metros de distância da sua
roda de amigos, olhei-o nos olhos e aguentei até que ele desse
alguma indicação, até que tomasse alguma atitude.
Serafim
retribuiu-me o olhar com frieza, corou (desta vez foi ele a corar),
contagiando os três amigos que estavam com ele e, sem nada dizer,
deu meia volta em direcção a casa.
Nunca
pensei que o meu comportamento tivesse o condão de o abalar daquela
maneira. Os amigos que se encontravam com ele também pareceram
surpreendidos. E eu demorei uns segundos antes de decidir o que
fazer. Em vez de prosseguir caminho como se nada fosse, como se o
embaraço tivesse tido origem na atitude de Serafim e não na minha,
recuei no meio de uma atrapalhação incompreensível e desatei a
fugir, sob repentinas gargalhadas de escárnio estridente. Foram
gargalhadas que me marcaram durante anos. Só recentemente concluí
que se tinham resumido à insignificância de um momento.
A
desilusão com a indiferença de Serafim fez que eu abrisse o leque
da minha afectividade. Decidi que poderia apaixonar-me por quem quer
que fosse, desde que não andasse longe da minha idade. Precisava de
encontrar alguém que tivesse condições para me perceber. Tanto me
fazia ser rapaz ou rapariga. Seria quem primeiro se dispusesse a
corresponder-me. Eu queria era sentir uma vibração atómica dentro
de mim e experimentar o respectivo retorno. Nunca tinha sentido o
amor de alguém que não fizesse parte da minha família. Não
imaginava, por isso, se amar um estranho seria mais ou menos
importante, mais ou menos significativo, do que amar o pai ou a mãe.
Apaixonei-me
por uma rapariga, lindíssima, com a minha idade, aproximadamente.
Logo que tive oportunidade, corri para ela e comuniquei-lhe os meus
sentimentos. Ela corou e respondeu, com uma expressão pálida e
gélida:
“Isso
não se diz!”
Fiquei
sem reacção, sem ideia sobre como replicar-lhe. A minha segunda
paixão voltava a revelar-se um fiasco. Se todas as paixões fossem
como as duas que eu já experimentara, estava visto que eu não teria
uma vida fácil.
Numa
terceira tentativa, apaixonei-me de novo por um rapaz. E tive
melhores resultados. Ao menos, não senti que a paixão fosse um
sentimento negativo e desaconselhável.
Mas
também me rodeei de maiores cuidados antes de pensar como havia de
lhe revelar, ou não, os meus sentimentos. Não corri para ele a
dizer – “meu querido isto, meu querido aquilo…”.
Punha-me
a mirá-lo, à distância, sorrindo…, corando…
Eu
não tinha a certeza de ele alcançar o meu íntimo, mas nem por isso
desistia de o amar. Só o facto de ele não me repelir, já me
encorajava o suficiente.
Passava
noites sem dormir, só de pensar nos seus olhos. Sentia-me normal,
sentia a loucura da paixão dentro de mim. Adorava não dormir,
adorava passar horas em claro à janela olhando para as estrelas e
para a distância do firmamento. A noite do céu sempre foi uma das
minhas perdições. Sofria por não saber se o meu sentimento era
correspondido, mas preferia viver assim do que enfrentar um desgosto.
Se um dia soubesse que ele não gostava de mim sofreria muito mais do
que se desconhecesse os seus sentimentos a meu respeito.
Não
lhe escrevia cartas, nem poemas de amor. Mas imaginava-os.
Imaginava-os, apenas. Imaginava até a forma da letra em papel
perfumado, a qualidade da ortografia elegante e arredondada.
Imaginava os dizeres, as frases, os raciocínios.
Auxiliadora
era uma das minhas confidentes nessa altura. Era a única pessoa com
quem eu falava sobre as minhas paixões.
Contava-lhe
tudo e ela ouvia-me com tal dedicação que a dado passo quase ficava
sem respirar. Eu despejava-lhe as minhas ideias, abria-lhe os meus
sentimentos, sem pensar nas consequências que os meus desabafos
tinham na sua sensibilidade. Pedi-lhe ajuda para descobrir o nome do
rapaz por quem me apaixonara. Eu não conseguia tomar a iniciativa de
o abordar, de simplesmente lhe perguntar como se chamava. Auxiliadora
fez uma cara muito quadrada quando percebeu o que eu pretendia dela,
mas não se recusou a satisfazer-me a vontade.
No
dia seguinte, disse-me que o rapaz se chamava Edmundo e quando me
apressei a perguntar se ele gostava de mim, Auxiliadora encolheu os
ombros e virou-me as costas. Mais tarde, acabou por admitir que se
esquecera de indagar. Ficou combinado que o faria numa próxima
oportunidade.
Mas
nunca vim a sabê-lo. Auxiliadora dizia sempre que se esquecia e eu
acabava por aceitar a sua fraca memória. Fazia-o tacitamente.
Convinha-me não saber a verdade. Eu desconfiava de que ela estava
apenas a querer poupar-me a um desapontamento. E a querer poupar-se,
também, à humilhação que eu lhe infligia ao estar sempre a
falar-lhe de Edmundo.
Nos
momentos mais difíceis, quando a ambiguidade nos assaltava com maior
determinação, chegámos a passar noites inteiras ao relento,
conversando, amparando-nos mutuamente, consolando-nos. Falávamos de
Edmundo, de mim, dela, das nossas hipóteses.
É
claro que a minha paixão por Edmundo não passou de um amor singelo
e platónico. Nunca lhe falei, nunca lhe ouvi a voz. Com o tempo,
desapareceu na neblina da memória.
Depois
de Edmundo, tive outras paixões. Mas não vou pôr-me aqui a
descrevê-las porque as paixões são insensatas e medíocres, uma
perda de tempo e um mal para a saúde. O verdadeiro obstáculo ao
desenvolvimento do amor são as paixões. Se há tão pouco amor por
toda a parte é devido ao excesso de paixão que há no mundo.
Hoje,
tenho a certeza de que nunca me apaixonei verdadeiramente. O que fiz
sempre foi antecipar-me aos meus próprios sentimentos. Sempre vivi
as paixões antes de as sentir na realidade. O que fez que nunca as
sentisse na verdade.
Ainda
hoje não sei se sei o que é uma paixão. Foi tudo sempre artificial
na minha vida. Nunca me ligaram – nem elas, nem eles – o que me
levou a desistir de ter esperança num entendimento amoroso.
Actualmente,
não tenho saudades de nada nem de ninguém, embora recorde com
nostalgia as noites que passava à conversa com Auxiliadora.
Passávamos horas olhando o horizonte escuro da planície e
especulávamos sobre o que o futuro nos reservava. Tínhamos a
certeza de que manteríamos uma firme união pela vida fora, o que
não veio a acontecer, porque ela partiu tão antes do tempo. Partiu
e sinto que me chama cada vez com maior entusiasmo para junto dela,
tal como eu não me canso de reclamar o seu calor intenso na escrita
destas páginas.
22
Nos
dias em que eu tinha a oportunidade de olhar Rute contra a luz da
janela, magra e elegante como se não tivesse idade, como se tivesse
catorze, vinte ou trinta anos, sentia um prazer inigualável, um
prazer físico e psicológico superior a tudo o que alguma vez
experimentara. Era uma prazer maior do que o normal porque a visão
do seu corpo contra a luz do dia me dava a sensação de ver a sua
alma, de ter o seu espírito nos braços. O espírito de Rute é
muito mais perfeito do que o corpo, que já de si é de uma beleza
incomparável. Por isso, não admira que eu me sinta nas nuvens
quando ela está comigo e também não admira que eu me sinta tão
fora de mim por não a ter aqui ao pé.
Por
vezes, penso que não resisto à sua ausência. Receio sucumbir ao
abandono, ir-me, perder-me, soçobrar, cair no esquecimento, por não
estar junto dela, por não a ouvir, por não a vislumbrar. No fundo,
foi esse medo que me fez chamar a ambulância. Porque, vendo as
coisas de uma forma distanciada, se Rute estivesse cá em casa,
provavelmente eu não teria sentido qualquer indisposição física.
Acredito que posso ter mesmo fabricado a situação, com o intuito de
alguém me socorrer, na esperança de que a notícia pudesse chegar
aos ouvidos de Rute. Para minha infelicidade, ninguém se importou
com o telefonema que fiz. Nem o hospital se preocupou em garantir a
disponibilidade de uma ambulância para me transportar às urgências.
Assim,
só me resta pensar em Rute, imaginá-la, reconstruí-la de memória,
agarrar-me a pedaços dela, a fragmentos do seu corpo e dos seus
risos, o que, só por si, é já uma partida, pelo menos um início
de partida.
Com
os anos, a imagem que guardo de Rute é a de uma mulher que sorri,
que ri, e que não pára de andar de um lado para o outro, como se a
minha casa tivesse qualquer coisa que a incendeia, estimula,
inquieta.
No
meu espaço, Rute move-se com à vontade e confiança desde há muito
tempo. Contorna os móveis, fala, argumenta, ri, conta coisas, com a
segurança de quem não receia sobressaltos ou armadilhas. Nessas
alturas, vendo-a tão livre que me parece despida, não consigo
deixar de me lembrar de Ilda, uma amiga que tive e que era
precisamente o oposto de Rute: Ilda só queria sexo, sexo na prática,
sexo puro e duro, nada de conversas, nem de imaginações, nem de
filosofias. Tivemos um namoro de meses e ainda hoje o recordo como
uma das experiências mais gratificantes da vida.
Ilda
era o oposto de Rute, mas havia em ambas qualquer coisa que me levava
a associá-las. Possivelmente, o sexo. Rute fazia-o com a mente e
Ilda não se cansava de o fazer com o corpo, deixando sempre claro,
porém, que o seu objectivo era dar prazer e não recebê-lo. Ilda
fazia muito sexo, mas evitava ter orgasmos. Para ela, ter um orgasmo
era ceder, fraquejar, deixar-se cair na tentação do egoísmo.
Era
isto que me fazia ligar Ilda a Rute. Ilda fazia sexo recusando o
orgasmo, as carícias, a ternura, as palavras doces, ao passo que
Rute recusava o sexo directo e palpável. Ambas, no fim de contas,
viviam para a rejeição do sexo. Para ambas, o sexo era o outro e
não elas mesmas.
Rute
sabia que dava prazer falando de sexo e Ilda sabia que o dava,
igualmente, praticando-o. Ilda fazia muito sexo, mas exigia que a sua
companhia não lhe desse atenção. Impunha-lhe que procedesse como
se ela não estivesse ali. Pelo menos, comigo, sempre procedeu desta
forma. Fazer sexo com ela era como praticar sexo solitário, com a
vantagem de ter sensações mais aprazíveis e libertadoras. Ilda
queria apenas que a outra pessoa se realizasse, que tivesse orgasmos
e mais orgasmos e com esse objectivo dedicava-se ao corpo da forma
mais completa e abnegada. Era capaz de me lamber os joelhos por horas
intermináveis. E nem desistia quando eu lhe pedia – por Deus, por
todas as almas – que parasse, que já me bastava. O prazer que
proporcionava não tinha paralelo. Era um prazer que estava para o
físico na mesma proporção que o prazer de estar com Rute estava
para o espírito.
Ilda
nada queria receber em troca do que fazia porque, na sua opinião, só
deste modo o prazer fazia sentido. Num acto sexual, o prazer só
devia ter uma direcção. Ilda não se importava que essa direcção
lhe fosse sempre alheia. Estava convencida de que esta era a via mais
coerente para a felicidade.
Mas
Ilda alegava também que evitava o orgasmo para que nunca chegassem a
dominá-la. Na sua perspectiva, o sexo era uma oportunidade de poder
e ela não estava disposta a fazer qualquer cedência nesse campo.
Era na dádiva do prazer que edificava as suas defesas. E não valia
a pena argumentar que era precisamente a perda momentânea de poder
que tornava o sexo sublime porque Ilda achava que o poder de dar não
se resumia ao instante do orgasmo, ao instante em que duas pessoas se
entregavam uma à outra.
Para
Ilda, o orgasmo (uma situação da qual os outros se aproveitavam,
segundo dizia) acabava por ser uma fraqueza. Uma fraqueza evitável.
A força do sexo estava na anulação do orgasmo. Na sua opinião,
quem assim não procedia limitava-se a trocar a segurança da vida
por meia dúzia de espasmos ridículos.
Certa
vez que estávamos na cama, eu quis ter mesmo a certeza de que Ilda
aplicava a sua regra de forma generalizada e me encarava como outra
pessoa qualquer. A resposta não se fez esperar:
“Não
tenho motivos para te tratar de maneira diferente.”
Aleguei
que a sua atitude significava uma enorme falta de confiança em mim,
o que ela não hesitou em confirmar:
“Claro
que não confio em ti”, disse-me, com descaramento.
“Nunca
te dei razões para isso”, argumentei.
“A
minha falta de confiança é uma questão de princípio. Nada tem a
ver contigo, pessoalmente.”
“Apesar
de não confiares em ninguém, entregas a tua intimidade a troco de
prazer nenhum?”
“Aí
é que reside o desafio! Que vantagem haverá em dar prazer a pessoas
em quem se confia?”
Depois
daquele dia, nunca mais me restaram dúvidas sobre a forma como eu
devia fazer amor com Ilda. Passei a gozar o máximo sem qualquer
remorso por não vê-la enrolada em gemidos e gritos de luxúria. E a
ausência de remorso fez-me perder a noção das barreiras.
Já
que Ilda recusava o prazer máximo no acto amoroso, eu direccionaria
todas as minhas forças e energias para o meu próprio orgasmo. Era
um orgasmo multiplicado, superior, fruto da concentração das minhas
forças e das dela.
A
partir de então, o sexo que fazíamos era uma loucura. Fornicávamos
como verdadeiros animais. Não desperdiçávamos tempo. Eu era só
prazer da cabeça aos pés, era só corpo, era só entrega total dos
seios, dos joelhos, dos rins.
Ela
recusava o seu próprio orgasmo, mas não recusava contribuir para
que eu os tivesse em elevado número. Lambendo-me os joelhos e, ao
mesmo tempo, afagando-me os rins era quanto bastava para eu trocar
aquele momento por mil viagens de morte que se seguissem. Desejei-as
por mais de uma vez, desde que pudesse ter Ilda comigo para me dar o
que só ela dava em tamanha medida.
As
regras tinham sido estabelecidas por Ilda. Se alguém poderia
queixar-se era eu, que não tinha o direito de lhe dar prazer. Mas é
claro que eu não me queixava, bem pelo contrário, era só gratidão,
qual pedinte de esquina a quem tivessem depositado na mão o prémio
de uma lotaria!
Para
Rute, de outra parte, o sexo – tal como a sua beleza (que ela
transformara em fealdade) – era, também, sem sombra de dúvida,
uma questão de poder. Mas era um poder que ela evitava exercer. Ou
não teria renegado a sua beleza. Rute queria ser amada, não pelo
poder do sexo ou da aparência física, mas sim pelo poder da alma. A
relação que ela tinha comigo era o melhor exemplo disso.
A
visão de amor de Rute nada tinha a ver com o corpo, ao contrário do
que sucedia com Ilda. Para Rute, o amor era sentimento puro e
recíproco. Por isso, ela podia dar-se ao luxo de evitar o sexo,
convencendo-se de que era uma das pessoas mais feias que alguma vez
existira. Conseguia dizê-lo com os olhos a brilhar, sorrindo, na
certeza de que decidira o melhor para si.
Rute
tinha uma beleza que escapava ao orgasmo do clítoris. Uma beleza
pura, espiritual, que nunca se deixara levar pela loucura da carne. E
era isso que mais cativava nela. Quanto mais parecia recusar o poder
do sexo concreto, mais atraente se tornava, o que não deixava de ser
irónico para alguém que era tão bela e que acabou por se convencer
exactamente do contrário.
Rute
era uma espécie de eterna adolescente, com a dose de maturidade que
os cinquenta anos lhe acrescentavam.
O
meu caso era diferente. Eu não sabia se era mulher ou se era homem e
tinha em cima o peso de uma idade maior. Além do mais, Rute permitia
que eu lhe tocasse, que me aproximasse dela, que lhe pegasse na mão,
um privilégio a que poucos tinham direito.
Quando
se sentava na minha cama, dava-me um beijo na fronte, por vezes na
face, e estendia a mão sobre os lençóis, para que eu tivesse algo
a que me agarrar. Ela sabia que a sua mão era determinante. Sem ela,
sem a sua mão, eu seria menos pessoa, menos sensível, menos
inteligente, teria menor capacidade de comunicação.
A
sua mão era o detonador das nossas conversas. Logo que sentia a
pressão dos seus dedos finos e ágeis sobre o ombro, o braço, o
pulso, dava-me conta de que as palavras desatavam a correr em
direcção à garganta, como se não pudessem esperar por conhecer a
luz do dia. E a conversa nunca mais parava.
À
medida que o diálogo fluía, Rute acariciava-me a palma da mão, por
vezes; acariciava-me os dedos; subia com as suas unhas delicadas pelo
meu braço, enquanto sorria, com olhos meigos e lábios húmidos,
inclinando ligeiramente a cabeça. Eu pedia-lhe que me afagasse os
joelhos, mas a resposta que obtinha era um sorriso entendedor. Muitas
vezes me arrependi de a ter posto ao corrente de alguma da minha
intimidade. Se o não tivesse feito, tenho a certeza de que Rute não
hesitaria em pousar a sua mão nos meus joelhos. Um dia, porém, eu
sabia que teria a recompensa. Seria o dia derradeiro, sem dúvida,
mas valeria por todos os outros.
O
que eu mais desejava, ao morrer, era que Rute se encontrasse a meu
lado, contribuindo para que eu tivesse esperança no momento da
partida. Eu tinha a certeza de que, no instante da minha morte, só
nesse instante, ela faria tudo o que eu lhe pedisse e mesmo o que não
pedisse. Por isso, esperava com impaciência que chegasse a minha
hora. Às vezes, até me perguntava se não valeria a pena antecipar
o fim, só para experimentar o prazer indescritível que Rute me
proporcionaria. Porém, logo mudava de ideias, ao lembrar-me de que,
se o fizesse, veria imediatamente reduzido o meu tempo de convívio
com ela. Qualquer iniciativa que eu tomasse para alterar o estado de
coisas corria o risco de arrancar Rute definitivamente da minha vida.
Era tão bom estar com ela no dia a dia que eu não prescindia do seu
convívio por troca com uma morte feliz. Todos os dias em que recebia
a visita de Rute eram dias da minha morte feliz.
Ouvi
passos nas escadas. Pus-me alerta. Rute foi a primeira pessoa que me
veio à mente, mas depressa desanimei. Por qualquer razão, por
qualquer instinto obscuro, percebi que não se tratava dela. Bateram
à porta com os nós dos dedos. Protestei, arenguei, pedi que
esperassem, levantei-me a custo, apertei o roupão e fui abrir aos
tombos.
Era
o carteiro com uma carta registada que eu devia assinar. Uma carta da
repartição de Finanças. Tive um sobressalto, por ser das Finanças
e por ter que assinar um documento.
Sempre
que o carteiro me procurava e me pedia para assinar alguma coisa, eu
obedecia, mas fazia-o com um aperto no peito, como se a minha
assinatura tivesse a marca de uma clandestinidade que eu procurava
não descortinar.
Os
meus receios não tinham a ver com as cartas que eu recebia (excepto
quando vinham remetidas das Finanças), mas sim com o meu nome, com
as palavras que me identificavam, que me revelavam. Quando eu
assinava algum documento não o fazia apenas com a palavra Lis.
Fazia-o com o nome completo. E era isso que me angustiava, na
verdade. O facto de escrever num papel o meu nome passava a
constituir prova de quem eu era, da minha identidade, embora eu
tivesse a certeza de que um nome era apenas um nome que nada tinha a
ver com a realidade de todos os dias. Ou seria que as pessoas, ao
longo dos anos, se adaptavam, moldavam, aos seus nomes? Eu sempre
desejara que o meu nome fosse o espelho fiel da minha consciência e
sensibilidade. Mais do que desejar, sempre trabalhara nesse sentido.
O sonho de toda a gente é que o seu nome seja a síntese da sua
vida. Eu não era diferente.
Por
vezes, pensava que as dúvidas se resumiam à terminação (masculina
ou feminina) de um nome, mas também havia ocasiões em que achava
ridícula essa suposição. Se o nome não podia dar a garantia de
explicar a natureza e personalidade de uma pessoa, era óbvio que a
terminação do nome ainda o garantia menos. Contudo, por mais
caricato que parecesse, o meu problema era a terminação. E tanto o
era que, no decurso dos anos, transfigurei de tal maneira a minha
assinatura que a tornei praticamente ilegível. Resumia-a a uns
círculos ovalados, uns travessões oblíquos e pouco mais, uma
garatujada que nada significava e que não devia ser reconhecida
legalmente. Mas o carteiro já se habituara aos meus rabiscos. Fingia
não perceber a artimanha, agradecia delicadamente, guardava a caneta
no bolso e seguia o seu caminho.
23
Quando
eu vivia com os meus pais na adolescência e na juventude, estava
sempre à procura de um pretexto para discordar deles, para fazer
vingar os meus pontos de vista. Eles respondiam-me com olhares
silenciosos, não querendo contradizer-me, não querendo provocar
discussões. Mas diziam-me que, um dia, eu pensaria de outra maneira,
o que me deixava completamente fora de mim. Sobretudo pela segurança
com que previam o futuro. Era como se quisessem apropriar-se de mim
para sempre.
Eu
achava que nada era como eles diziam. Pensava que tudo se
desenrolaria conforme a minha perspectiva. Porque eu era jovem e
acreditava que ser jovem era ter acesso ao saber actualizado.
Mesmo
numa altura em que a minha mãe e o meu pai já nem trabalhavam, por
motivos de doença, e se encontravam em casa à espera de partir, eu
não lhes dava um minuto de descanso sempre que tinha oportunidade
para isso, sobretudo na hora das refeições.
Fazia-lhes
perguntas com o propósito de os chocar, e chocava-os, embora eles
tudo fizessem para me demonstrar o contrário. Queriam que eu me
abrisse com eles, que lhes falasse de todos os assuntos, e, por isso,
não podiam dar-se por ofendidos.
Eu
amava-os, sabia que iam morrer e, por isso mesmo, não os deixava em
paz. Queria inquietá-los, desassossegá-los, como se pretendesse
castigá-los pelo facto de um dia me virem a deixar só. Não
suportava que me abandonassem e que sabendo que um dia me deixariam
não passassem todo o tempo das suas vidas lamentando a minha perda.
Para
mim, amar era gostar tudo, exigir tudo, ocupar tudo. Não fazia
sentido saber que o espaço dos meus pais ficaria vago, um dia. Esta
era a minha grande dor. E terá sido essa dor uma das razões porque
então me liguei tanto a Auxiliadora. Pensava que depois da morte dos
meus pais só ela me restaria.
A
partir de certa altura, fui-me afastando de casa. Os meus pais
perceberam a minha atitude. Sabiam que eu o fazia por estratégia. À
medida que crescem, as pessoas afastam-se dos progenitores,
afastam-se dos amigos e conhecidos, afastam-se por precaução, por
cautela, para não sofrerem tanto com o desaparecimento daqueles que
amam.
Durante
dias consecutivos, e embora vivendo na mesma casa, os meus pais só
me viam pela manhã, quando eu me levantava, dirigindo-me
apressadamente à casa de banho, e à hora das refeições. Viam-me
passar, mas percebiam que eu não estava ali por eles. Percebiam que
o meu objectivo nada tinha a ver com os seus sentimentos. E não
tinha. Mas não se ofendiam por isso, não mostravam ressentimento.
Diziam “meu amor… andas sempre a correr de um lado para o outro,
nunca te pomos a vista em cima!”
Aquele
“meu amor” arrepiava-me, enchia-me de remorsos e eu prometia com
todas as forças da minha alma passar a dar-lhes mais atenção,
passar a conversar mais com eles, passar a amá-los de forma mais
consequente. Prometia isto e muito mais, embora sabendo que
continuaria a vê-los apenas às horas de comer e que realmente nada
mudaria no nosso relacionamento.
Imagino,
agora, como não deviam eles sofrer com as minhas ausências que,
ainda por cima, eram puro desperdício de tempo, puro vaguear pelas
ruas, puro desencontro comigo e com os outros. As minhas ausências
eram simples evasões e escapadelas, que me davam a impressão de
viver num buraco de dimensões ilimitadas. Imagino quanto não
sofriam os meus pais com a distância a que eu os votava, eu que hoje
sofro tanto por não ter Rita comigo, Rita que nem é minha filha,
Rita que só achei perdida à minha porta. Imagino quanto não
sofriam os meus pais por saberem que eu me limitava a usar a sua casa
para dormir e comer. E nem assim me condenavam. Manifestavam-me
sempre a maior afeição, como se os minutos que eu demorava a
ingerir a comida fossem a eternidade que lhes restava para me
partilhar, para conviver comigo, para me amar.
Eu
vivia com a sensação de que tinha todo o tempo do mundo para os
amar. E tinha. Mas esse era um sentimento que então eu estava longe
de saber construir. Os dias passavam e eu sentia (não sabia) que
faltava cada vez menos tempo aos meus pais.
Mais
tarde, quando eu os perdesse, quando os seus ecos se esvaíssem,
quando eles fossem apenas conjectura e sombra, então chegaria a
ocasião de eternizar o seu amor. Nessa altura, sim, eu teria todo o
tempo do mundo para os amar, todo o tempo do mundo para tanta coisa.
No
fim das refeições, que nunca me faltaram, quando me levantava da
mesa e dirigia para o meu quarto, não podia deixar de ver os meus
pais com os olhos meigos, claros, sorrindo, agradecidos por aquele
pedaço de tempo que eu acabava de lhes dar. Em vez de chorarem,
acarinhavam-me com os olhos, abençoavam-me. Cada olhar deles era um
sol que me cobria.
Passavam
dias inteiros sem me ver e quando me viam estavam sempre agradecidos.
Nem que eu lhes desse apenas um segundo de atenção. Sorriam, para
me agradar. Agora, sei que sofriam horrivelmente. Só lhes restava
sofrer. Sofriam por mim como eu sofro por Rita.
Anos
mais tarde, já eu leccionava há quase meia década, o meu pai
pediu-me para passar uns dias em minha casa. Estranhei o pedido, mas
não fui capaz de dizer que não. Só depois percebi – muito depois
– que o seu desejo era morrer na minha companhia. Um desejo talvez
não consciente, mas nem por isso menos desejo…
Uma
vez instalado em minha casa, ao fim do segundo dia, o meu pai passou
a queixar-se disto e daquilo, insistindo que não se sentia bem e
pedindo por tudo que eu telefonasse a um médico.
Perguntei-lhe
o que tinha, mas ele não sabia explicar, metia a cabeça entre as
mãos e apenas dizia que não se sentia bem. Era pouco para mim; mas,
para ele, era tudo.
De
início, pensei que talvez estivesse a exagerar. E não dei muita
importância ao caso. Pus a hipótese de, no fundo, ele estar com
saudades de minha mãe, que tinha deixado em casa sem companhia.
Após
uma semana, contudo, ele insistia que precisava de um médico e
garantia que estava a piorar de dia para dia. Mesmo assim, pensei
que, se ele já tinha aguentado todo aquele tempo sem que lhe tivesse
acontecido nada de grave, era porque, na verdade, o seu mal devia ser
mais psíquico do que físico. E como não dizia que lhe doía a
barriga, a cabeça ou o coração, como não explicava nada, fui
sempre adiando o telefonema para o médico, ora dizendo-lhe que o
consultório estava encerrado para férias, ora que me tinham
prometido telefonar quando surgisse uma vaga.
Logo
a seguir, contudo, apercebia-me de que se estavam de férias no
consultório não fazia sentido eu dizer que tinham prometido
telefonar-me quanto houvesse vaga e então embrulhava-me em
justificações, acabando por admitir que o mais certo era ter-me
enganado na marcação do número.
Um
dia, perguntei-lhe se queria voltar para casa, para junto de minha
mãe e a resposta dele foi peremptória:
–
Se gostas de mim,
deixa-me ficar aqui contigo. Mas, por favor, não lhe digas nada. Se
me tens amizade, não lhe digas nada…
Não
me restavam dúvidas de que ele se tinha zangado com a minha mãe,
mas pensei que, tarde ou cedo, haviam de fazer as pazes e cair de
novo nos braços um do outro.
Eu
não acreditava que o meu pai estivesse nas últimas. Pressentia que
lhe sobrava pouco tempo de vida, mas alimentava a convicção de que
esse pouco tempo ainda seria razoavelmente dilatado.
Ele
resignava-se e acreditava no que eu lhe dizia sobre as férias e
sobre a agenda ocupada do médico. Protestava contra o serviço de
saúde, ao que eu lhe respondia que nos haviam de telefonar, mais
tarde ou mais cedo, quando o consultório reabrisse. Aconselhava-o a
ter alguma paciência e deixava-lhe uns livros distraidamente sobre a
mesa-de-cabeceira, embora tivesse a certeza de que ele não lhes
punha a vista em cima.
No
início da terceira semana de queixas, ele pediu-me que contactasse
outro médico, mas eu repliquei que não valia a pena, porque todos
os médicos deviam estar bastante ocupados naquela altura do ano.
Junho era sempre um mês de gripes e vírus, um mês de mudança de
estação. O melhor, defendi, seria esperar por uma vaga no médico
de família.
Quando
eu lhe falava em ir às urgências, recusava veementemente. Mas eu
também só lhe acenava com essa possibilidade porque sabia que por
nada deste mundo ele aceitaria a minha sugestão.
“Uma
consulta privada é caríssima, não é?...”, dizia-me ele,
aproveitando para salientar que a saúde estava acima dos interesses
financeiros.
Mas
o meu problema não era financeiro. E eu dizia-lho, ainda que os seus
olhos estivessem longe de acreditar nas minhas palavras.
Apesar
de saber que nas urgências o atendimento era imediato, ele
mantinha-se firme na sua determinação de lá não pôr os pés.
“Prefiro
morrer aqui e agora”, afirmava com uma veemência que me levava a
mudar de conversa prontamente. A sua posição, contudo, deixava-me
com um vago alívio de consciência, que era apenas uma forma de
contornar a evidência de que eu podia fazer por ele bastante mais do
que fizera até ao momento.
Nunca
me explicou por que não concordava em ir às urgências. Sempre que
lho perguntei, o seu semblante ficava carregado, tenso, distante, e
eu acabava por desistir.
No
fim da terceira semana, o meu pai morreu. Morreu durante a noite.
Foi-se sozinho. Apagou-se, após ter perdido a esperança de ser
visto por um médico. Faleceu sentado na cama, com as costas de
encontro a duas almofadas. Durante a noite, tenho ideia de ter ouvido
uns vagos murmúrios a que não dei importância, possivelmente por
achar que faziam parte de um sonho qualquer. Eu dormia no quarto ao
lado do dele e não sei a que horas pareceu-me ouvir uns ruídos à
distância, uns gemidos, uns sons guturais. Pensei levantar-me, para
ver se estaria a acontecer alguma coisa, mas enquanto reflectia sobre
a decisão a tomar, voltei a adormecer. Tenho a certeza de que
adormeci porque nunca achei possível que alguma coisa estivesse
realmente a acontecer.
Quando
me levantei, de manhã, saí da cama com um pressentimento confuso,
com um peso na consciência, como se tivesse procedido de forma
ilegal ou criminosa. Dirigi-me a toda a pressa para o quarto onde o
meu pai passara a noite e no momento em que pus a mão no trinco da
porta, compreendi que ele já lá não estava. Quase não me dei ao
trabalhar de entrar para verificar o óbito. Mas depois pus os pés
no chão e percebi que não tinha outro remédio senão avançar. O
meu pai estava meio sentado contra as almofadas da cama, pálido, de
olhos azuis muito abertos na minha direcção como se tivesse morrido
à minha espera, à espera de que eu entrasse a qualquer momento para
ouvir a sua última vontade.
Não
precisei de fazer nada, de lhe ver o pulso ou de lhe colocar um
espelho diante do nariz. A morte estava escrita em letras esculpidas
na pedra da sua fronte. Morrera sozinho, sem consolo nem companhia.
Morrer sozinho comigo a dormir ali a meia dúzia de metros dele.
Se
Rute já fosse minha conhecida nesse tempo, talvez a sorte do meu pai
tivesse sido outra, porque eu não me teria esquecido de lhe pedir
que vigiasse a sua saúde e lhe garantisse um final sem dor como só
ela sabia fazer.
Ainda
hoje procuro entender o motivo por que nada fiz para que o meu pai
fosse visto por um médico, conforme ele me pediu insistentemente
durante três semanas. Não encontro resposta. Ou prefiro não
encontrá-la. Nem que seja por saber que não me é possível voltar
atrás para corrigir a agulha do tempo. Creio que não teria descanso
se viesse a descobrir o que esteve subjacente à minha atitude.
Prefiro passar adiante.
Por
vezes, ponho a hipótese de contar a Rute este episódio, a ver se
ela, porventura, conseguiria maneira de dar um salto no tempo (mesmo
que imaginário) para tentar ainda aquecer o pulso de meu pai,
trazendo-o de volta à vida por uns instantes (um regresso
fantasioso, uns instantes de ficção) e transmitir-lhe uma chama,
uma réstia de luz no fim da caminhada, ela, Rute, que tudo consegue
nas mortes, ela que tudo faz para amaciar o momento em que o corpo
descola do cais e segue de âncora solta.
Mas
não sei se valerá a pena contar a Rute alguma coisa. Porque nem sei
se voltarei a pôr-lhe a vista em cima. E mesmo que voltasse a vê-la,
a verdade é que sempre que ela me entra pela porta, esqueço tudo…
24
Ao
voltar do estrangeiro, Raimundo viu que havia inúmeras coisas
diferentes na sua terra. A paisagem era sensivelmente idêntica, mas
as pessoas não. Muitas haviam mudado. Pareciam outras, como se
tivessem vindo de um país estranho. Estavam diferentes, apesar de os
rostos serem os que desde sempre conhecera. As mudanças eram
interiores, invisíveis, o que não o impedia de as detectar com
relativa facilidade. As faces estavam mais vividas, mais velhas,
contudo eram as mesmas, tal como os gestos, as formas de andar, os
feitios.
Raimundo
ouvia as conversas, os comentários, as trocas de impressões sobre
os mais diversos assuntos, só que tinha dificuldade em perceber o
seu significado profundo. Era como se houvesse algo por detrás das
palavras, como se houvesse uma sombra movediça que ele não
alcançava, como se tivesse acontecido alguma coisa que lhe escapava
como areia por entre os dedos. Parecia que a sua língua materna era
agora falada com sotaque e que as pessoas com quem antes convivia
tinham passado a fazer parte de um território que lhe era vedado.
Raimundo
residira no estrangeiro e acabara por regressar a outro estrangeiro,
um estrangeiro que ainda era mais duro do que o país para onde
emigrara, porque agora os desconhecidos eram aqueles ao lado de quem
tinha crescido e brincado nos tempos de infância. Agora, os
desconhecidos que o rodeavam até falavam a sua língua. Ou, pelo
menos, articulavam as sílabas conforme ele sempre as conhecera. E
mesmo assim o que diziam era misterioso. Por vezes, entendia uma
sílaba ou outra, mas isso não era suficiente para captar o cerne
das conversas, dos olhares, dos sorrisos.
Entre
o que não mudara no seu país, estava o cheiro da terra, o odor a
sal dos telhados. Mas um cheiro não faz o berço de uma nação.
Tudo
estava tão alterado na sua terra que Raimundo chegava muitas vezes a
pensar que continuava a viver no estrangeiro. Havia alturas em que
tinha a sensação de que a qualquer momento daria consigo a entrar
no café onde passara muitas das suas madrugadas no estrangeiro. Era
uma sensação tão forte que só lhe faltava ver Debby ressuscitar e
recebê-lo com aquele sorriso das três da manhã por entre o calor
da cafeteira que aquecia as almas ao balcão do estabelecimento.
Raimundo
notava que, ao falar, pretendia dizer uma coisa, mas as pessoas
pensavam que ele estava a dizer outra. Era uma confusão que o
intrigava e inibia. Se antes era pouco sociável, após o seu
regresso ainda se tornou mais reservado.
Poucas
semanas após ter voltado, Raimundo comentou com um antigo colega que
o reconhecera na rua e que lhe perguntara numa grande efusão – És
tu? És o Raimundo que andou comigo na escola?... – Raimundo
comentou que gostava de rever uma tal Angelina, gostava de saber que
era feito dela, que rumo tinha tomado a sua vida. E a sua curiosidade
teve tal pontaria que acertou exactamente no homem que era marido
dela.
Ao
dar-se conta da situação, Raimundo não conseguiu recuperar a
naturalidade, recuar, emendar a mão. Apenas balbuciou que só
pretendia matar saudades, embora a expressão “matar saudades”,
em vez de aliviar o ambiente, o tivesse tornado mais crítico.
Palavra atrás de palavra, Raimundo perguntara por Angelina,
inocentemente, Angelina saíra-lhe pela boca de forma impensada,
quase trivial, e provocara todo aquele embaraço.
Numa
terceira tentativa de corrigir o que dissera, procurando recorrer a
uma frase que se adequasse mais às circunstâncias, Raimundo afirmou
– garantiu de forma convincente – que nunca houvera nada entre
ele e Angelina, embora não conseguisse deixar de dizer que mesmo
assim o passado deixava sempre marcas.
Perplexo
e confuso, o marido de Angelina não sabia que fazer às mãos.
Sobretudo, não compreendia a atrapalhação de Raimundo. O que o
incomodava não eram tanto as palavras que ouvia, mas a visível
intranquilidade do antigo colega.
“Não
fiques a pensar coisas”, disse Raimundo, sem atinar com a saída do
beco em que se metera. E logo a seguir: “Mas se tivesse acontecido
alguma coisa, não tinhas nada a ver com isso”, afirmou, dando
palmadas nas costas do outro, com a descontracção devida a um
antigo colega, rindo muito, rindo desbragada e desusadamente, o que
só evidenciava o seu nervosismo.
“Nessa
altura”, continuou Raimundo, “tínhamos dezasseis anos, éramos
irresponsáveis, não sabíamos o que fazíamos. Não digas a
Angelina que te falei nisto, se calhar ela já nem se lembra do que
aconteceu, se me vir na rua provavelmente nem me cumprimenta. Eu
posso ter marcas desse tempo e ela não. Se casou contigo é porque
não as tem. No teu lugar, eu ficaria descansado. Tudo o que estive
aqui a dizer não interessa, não foi nada disto que se passou, mas
não sei como explicar, não sei o que dizer. Quanto mais me
justifico, mais me afundo. Que disparate! Não leves a mal, por
favor, a culpa foi toda minha, não a culpa do que fizemos
antigamente, mas a culpa do que aconteceu agora. Não estou a atinar
com nada disto. Não fiques com uma ideia errada de mim, muito menos
da tua mulher, pois é com ela que vives e com certeza que ela nunca
te deixou mal, nunca te deu razões para desconfiares do seu
comportamento. Como já te disse, éramos crianças quando nos
conhecemos. Hoje, estás numa idade madura e tens responsabilidades,
tens uma família para sustentar. As situações não se podem
comparar. Peço-te perdão. Nem sei como se pede perdão. Se Angelina
te perguntar alguma coisa, agradeço que não lhe contes esta nossa
conversa, não lhe digas que me viste, prefiro que ela não saiba que
perguntei por ela. Angelina é boa rapariga (desculpa, hoje já deve
ser uma mulher… – é mesmo uma mulher). Como vês, não consigo
pôr em palavras o que sinto, por isso, não te ofendas por me ter
metido nesta embrulhada. Estive muitos anos fora, já não estou
habituado a certas complicações, não sei bem como as coisas
funcionam, está tudo diferente. Passei anos a falar outra língua e,
agora, sinto dificuldades quando pretendo debater algum assunto mais
pessoal, mais fora do comum. Tenho a certeza de que me compreendes,
um dia destes havemos de ir jantar…”.
Quando
Raimundo falou em jantar foi porque se apercebeu de que já tinha
perdido todas as possibilidades de remediar a situação. O marido de
Angelina não reagira, mas era evidente que ficara alterado com as
explicações atabalhoadas de Raimundo. Não podia ter gostado do que
ouvira, nem da forma como o assunto fora abordado. Recordava-se de
ter apanhado no ar expressões como “o que aconteceu…”, “só
queria matar saudades dela…”, “há coisas que deixam marcas…”,
“desculpa esta embrulhada…”, “não fiques com uma ideia
errada de mim…” e sentia-se atingido por pedradas a que, por mais
que tentasse, não conseguia esquivar-se.
Vieram-lhe
à ideia os cenários mais improváveis. Sentiu uma tal revolta que
preferiu não responder a Raimundo. Não estava disposto a
envolver-se num eventual desacato ou discussão.
Apesar
de se sentir confuso e perplexo, o marido de Angelina deu meia volta
e afastou-se, deixando Raimundo sozinho no passeio a brandir
argumentos que o procuravam convencer do contrário que as suas
palavras diziam ou deixavam transparecer.
Dias
depois, Raimundo voltou a dar de caras com o homem que era casado com
Angelina, mas este apressou-se a mudar para o outro lado da rua antes
que Raimundo lhe estendesse a mão e recomeçasse a exposição de
uma extensa lista de razões sobre o papel relevante que Angelina
desempenhara na sua juventude…
Raimundo
não perdeu a compostura. De certa forma, até se sentiu aliviado por
não ter que voltar a justificar-se perante o marido de Angelina.
Nunca tinha falado tanto de si como no dia em que procurara explicar
o inexplicável ao antigo colega de escola. Até ficara com a boca
ressequida. E, conforme se vira, o esforço não valera a pena. O
problema de Raimundo era não estar habituado a falar de mulheres,
nem a lidar com imprevistos. Para ele, tudo era planeado, estudado,
calculado. Qualquer surpresa o deixava desnorteado.
No
exacto minuto em que o marido de Angelina evitou enfrentá-lo,
Raimundo decidiu que, de ora em diante, reduziria ao essencial o seu
convívio. A decisão fê-lo sentir-se outro homem. Foi a partir daí
que se tornou um verdadeiro solitário. Fugindo às pessoas, Raimundo
achava que tudo era mais simples, tudo ficava facilitado. E o assunto
do marido de Angelina morria ali. Não queria saber mais dele, nem da
mulher. Uma simples amizade de juventude provocara um mal-estar
caricato na sua vida. Nunca lhe acontecera nada de semelhante. Nem no
estrangeiro, onde era fácil ocorrerem equívocos por uma incorrecta
utilização dos termos.
A
fim de não subsistirem equívocos e com vista a não alimentar novas
confusões, Raimundo habituou-se a acelerar o passo, ainda que
arrastado, sempre que saía de casa, para que não reparassem nele,
na sua forma de vestir, nas suas ideias, que podiam ser percebidas,
receava ele, pelo mais distraído dos transeuntes. Sobretudo,
procurava evitar encontros com antigos colegas de escola. Mesmo
quando arrastava os pés, apressava a marcha. Para que não o
captassem, retratassem, roubassem, com um simples olhar. Um ligeiro
movimento de rosto corria o risco de o levar a perder qualquer coisa
de seu, qualquer coisa que não identificava, qualquer coisa com peso
e significado. Depois do que sucedera com o marido de Angelina,
acelerar o passo arrastado tornou-se a sua regra de marcha sempre que
ia a algum sítio. E até nos domingos à tarde Estela se via por
vezes em dificuldades para o acompanhar, ao ponto de desabafar a meia
voz: “Parece que vais pagar fogo!”
25
Na
noite em que Rita saiu de casa para ir conhecer o mundo, sentiu que a
vibração das cidades a esperava, disse-mo ela ao telefone num dia
em que pediu para a chamada ser paga no destino. Sentiu que se podia
perder e depois salvar-se. Sentiu-o nessa noite em que saiu de casa e
sentiu-o muitas outras vezes. Rita sempre se interessara pela
salvação (pela sua e pela dos outros), mas os caminhos através dos
quais procurava atingi-la nada tinham a ver com o pensamento que eu
lhe conhecia. Só alguém que tivesse assistido ao crescimento de
Rita, conforme aconteceu comigo, poderia conhecê-la verdadeiramente.
A imagem que dava à maioria das pessoas pouco ou nada tinha a ver
com o seu íntimo. Muitas vezes lhe perguntei porque ocultava a sua
personalidade por detrás de um espírito aventureiro que não era o
seu, mas ainda hoje estou à espera de resposta.
Todavia,
não me restam dúvidas de que, se eu responder por ela, não estarei
longe da verdade. A atracção pela aventura e pelo risco era uma
forma de poupar a sua sensibilidade. Não sendo ela mesma – mas
outra – nesta ou naquela situação, Rita acabava por se
salvaguardar, por se adiar. Se lhe acontecesse alguma tragédia,
algum acidente irreparável, ela poderia sempre sentir-se intocada e
alegar perante si mesma que a sua natureza era outra, não aquela que
expunha todos os dias. Deste modo, podia experimentar o mundo e, no
entanto, sentir-se limpa como no dia em que saiu de casa. Rita achava
que só se poderia salvar se tivesse coragem de descer ao inferno que
havia no paraíso das cidades.
“Pensa
bem no que andas a fazer”, dizia-lhe eu ao telefone, numa pilha de
nervos, sempre que tinha oportunidade de a chamar à realidade.
Embora não imaginasse onde ela se encontrava, tinha receio de que a
certa altura ela não estivesse em condições de suportar algum
problema, algum imprevisto, alguma surpresa desagradável. Mas o mais
normal era eu ainda não ter acabado de pronunciar a última palavra
e já ela ter desligado o telefone.
Desde
que saíra de casa, muitas das nossas conversas terminavam sem aviso
prévio. Rita socorria-se da distância para deixar claro que eu não
tinha o direito de me intrometer na sua vida. Mesmo que não o
fizesse – como poderia sequer tentá-lo se nem sabia por onde ela
andava? – Rita faria sempre tudo para me impedir de manipular os
cordelinhos dos seus dias.
Desde
muito cedo, ela achara que tinha coisas novas para viver. Estava na
sua vez de errar, de não perceber, de descobrir, de cegar, de pensar
que havia algo à sua espera, algo que valia a pena. O mundo tinha de
passar pelo corpo das pessoas, pelo corpo dos jovens. Só assim os
podia modelar, preparar para o sofrimento. Não fossem essas
primeiras desilusões e ninguém suportaria a dor indescritível que
vem depois.
Rita
queria partir e nunca mais me dizer nada sobre a maneira como lidava
com o mundo. E fê-lo. Mas eu tinha a certeza de que ela pensava em
mim com frequência. Ela só queria ir sempre mais longe, só queria
distanciar-se mais e mais, a ver até onde chegaria, a ver onde se
localizaria o extremo da existência. Mas quanto mais inacessível
fosse a sua viagem, mais perto eu estaria dela, mais facilmente
sentiria o seu ritmo cardíaco suspirando por um instante de repouso.
Apesar
de não haver laços familiares a unir-nos, a partir de determinada
ocasião, passou a ser notório que Rita faria um percurso semelhante
ao meu. Ela absorvera a forma como eu via as coisas e solucionava os
problemas. Dava a sensação de que herdara o meu testemunho antes de
eu lho passar. Por isso, não podíamos continuar na mesma casa. Ela
percebeu-o e agiu em conformidade, sem me ter pedido opinião.
Durante
muito tempo, não fiz a menor ideia sobre quem continuaria o meu
caminho, mas depois acabei por me convencer que Rita se sentara à
porta da minha casa e vivera comigo durante doze anos apenas com a
finalidade de aprender esse destino.
Da
parte de Rita, também não restavam dúvidas de que ela, apesar de
não ter consciência disso, vivia como se nas nossas veias corresse
o mesmo sangue.
Rita
era mais do que minha filha. Quem continua o nosso caminho para a
eternidade contribui de certeza para a nossa salvação. Rita tinha
essa consciência profunda. Ela expunha-se e feria-se porque sabia
que assim tinha de ser, mas, ao mesmo tempo, poupava-se, para que não
a traísse o excesso de esforço na corrida desenfreada que fazia.
Ela preferia ser outra que não ela, para que, em caso de fracasso,
pudesse voltar atrás, por mim, e recomeçar sempre. Fazia tudo por
mim. Mesmo quando parecia exactamente o contrário. Não havia prova
de maior amor do que esta dedicação intensa à causa da eternidade.
Claro
que Rita, optando pela aventura e pelo risco, estava a fazer alguma
coisa, estava a fazer muito, pela sua própria vida, mas fazia-o com
um grande desapego por ela e pelas coisas que lhe diziam directamente
respeito.
Só
há duas formas de um amor ser grande: ou quando se faz um trajecto
comum ou quando se recebe o testemunho de alguém. Na primeira
hipótese, vive-se; na segunda, herda-se.
Assim,
pode dizer-se que Rita saiu de casa para ganhar agilidade e
experiência na corrida em que eu lhe passaria o testemunho, a fim de
não ter hipóteses de fracassar o nosso destino de amor. Ela
considerava importante conhecer-se melhor a ela mesma no confronto
com gentes e situações desconhecidas. Considerava importante
avaliar o seu próprio poder de resistência e de aceleração, para
o utilizar nos momentos decisivos de uma corrida que só se efectua
uma vez.
Não
sendo ela mesma, expondo-se sob outras facetas, Rita tinha ainda
hipóteses de, eventualmente, dar a mão a alguém em dificuldades.
Envolvia-se em situações estranhas para aumentar as suas hipóteses.
Havia
momentos em que ela me contava certas coisas, numa clara tentativa de
me chocar ou de, pelo menos, me surpreender. E como eu sabia que essa
era a sua intenção, fazia-lhe a vontade, dando mostras de apreensão
e perplexidade. Por vezes, não escondia mesmo a comoção. Do outro
lado da linha, Rita perguntava-me se eu estava a chorar. A minha
resposta era sempre negativa. Não queria que ela soubesse do enorme
poder que exercia sobre mim. Se eu lhe contasse tudo o que sentia,
era bem capaz de fazer as malas e regressar. Mas eu não queria ser
um obstáculo à sua liberdade. Não era capaz de conviver com a
ideia de Rita estar em casa comigo só porque eu não conseguia viver
sem ela. Preferia morrer a contribuir para que um dia ela
desconfiasse disso. Também me apavorava que ela assistisse ao meu
envelhecimento. Não é por acaso que as pessoas se isolam à medida
que vão avançando na idade. A velhice é uma despedida longa. Como
suportar a ideia de conviver todos os dias com alguém que sabemos
estar à espera de nos ver partir? É dor a mais, emoção a mais.
Não se pode chorar todos os dias, a toda a hora. Seria demasiada
perturbação, demasiada habituação à morte. E esta não permite
que nos acostumemos a ela, para que os efeitos da sua acção sejam
inultrapassáveis, irremediáveis.
Quando
pressentimos que estamos perto de partir, afastamo-nos das coisas e
das pessoas, prescindimos do que nos rodeia. Com Rita, não tive
necessidade de o fazer porque ela vivia longe de mim. Rita tivera a
preocupação de se antecipar à minha velhice, saindo de casa a
tempo de não me ver sucumbir às golpadas do tempo.
Quando
a idade atingiu um ponto em que eu já mal conseguia dar meia dúzia
de passos sem me agarrar aos móveis, não disse nada a Rita. Não
quis que soubesse o que se passava comigo. Para ela, eu era apenas
uma voz ao telefone, era apenas um breve ruído na memória.
Rita
parava pouco no mesmo sítio. Era como se residir por muito tempo
numa mesma cidade a fizesse correr o risco de ser encontrada,
apanhada, recambiada. Nunca me disse onde vivia, mas dizia-me quando
mudava de um lugar para outro, como se pretendesse aguçar a minha
imaginação, o meu desejo de a ver, de a perseguir. Penso que, no
fundo, teve sempre receio de que eu a descobrisse e trouxesse de
volta a casa. Apesar de saber que sendo ela adulta eu não tinha
quaisquer poderes – muito menos jurídicos – sobre a sua vida.
Contudo,
Rita parecia viver com a ideia fixa de que eu era capaz de recorrer a
meios menos ortodoxos para a ter de volta. Falámos várias vezes
sobre essa possibilidade ao telefone:
“Não
quero que me vejas!”, dizia ela, como se tivesse qualquer ferida
visível a esconder, qualquer trauma físico.
“Mas
eu preciso de te ver. Para mim, é importante pôr-te os olhos em
cima nem que seja por umas horas. Depois, prometo não te chatear
mais”, replicava eu, embora com poucas esperanças de que ela me
fizesse a vontade.
“Já
me tiveste doze anos, já me educaste, já me viste crescer, já
fizeste muito por mim. Agora, quero viver sozinha, quero continuar a
descobrir o mundo sem ninguém me dizer para fazer assim ou fazer
assado!”
“Acho
estranho dizeres isso…”
“Livra-te
de me apareceres pela frente! Livra-te de mandar alguém à minha
procura!”
“Está
descansada que não o farei…”
“Não
sei… Tenho medo quando te mostras tolerante.”
“Alguma
vez te contrariei em coisas fundamentais na vida? Um dia,
arrepender-te-ás do que me estás a fazer. Mas, nessa altura, será
tarde demais.”
“Não
me venhas com ameaças! Sabes que gosto muito de ti, mas não quero
tornar-me dependente.”
“Essa
é a tua desculpa. Se nunca dependeste de mim, não era agora que
isso ia acontecer.”
Rita
estava sempre pronta a enfrentar-me como se desde que saíra de casa
tivesse tomado consciência de coisas que eu lhe ocultara.
A
sua mudança foi repentina. Até aos dezasseis anos, nunca me causou
qualquer embaraço. Falávamos de todos os assuntos sem inibições,
ríamos, desabafávamos, trocávamos opiniões. Eu gostava de lhe
colocar as minhas dúvidas, mesmo quando sabia que ela não estava
preparada para mas esclarecer; e ela demonstrava interesse em
partilhar comigo algumas das suas ilusões, mesmo quando sabia que eu
já não as alimentava.
Durante
doze anos, a nossa vida foi um quase encantamento. Por isso me custou
tanto aceitar que ela tivesse desaparecido sem deixar rasto.
Nos
últimos tempos, Rita não me tem praticamente telefonado. É como se
adivinhasse qualquer coisa, como se receasse que eu parta numa altura
em que esteja comigo ao telefone.
Por
seu lado, Rute parece ir pelo mesmo caminho. Não há maneira de me
visitar. Por vezes, até parece que as duas terão combinado entre si
deixarem-me entregue à minha sorte, deixarem-me gerir sem ajuda o
tempo que me resta de vida. Não creio que pretendam ver-me ao
abandono, mas a verdade é que não tenho tido notícias delas.
Passo
os dias de cama, lendo ou entretendo-me com corridas de automóveis
sobre as pequenas elevações do lençol. Não tenho para onde fugir,
ou isolar-me, sinal de que me falta pouco para enfrentar o momento
decisivo.
Rita
sabe de Rute e Rute sabe de Rita, embora não se conheçam
pessoalmente. Quanto menor é a assiduidade com que Rute me visita,
menor é a frequência dos telefonemas de Rita. É como se ambas
tivessem feito um pacto sobre a minha vida. Como se fizessem marcação
cerrada à distância do leito onde espero a minha hora.
26
Só
não se podia dizer que Rute e Rita eram a mesma pessoa porque Rita
não tinha a beleza física de Rute. Nem tinha o sorriso. E as idades
eram bastante diferentes. Para além destes aspectos decisivos, Rute
tinha aparecido na minha vida não muito tempo depois de Rita ter
desaparecido. A minha ligação com Rita fora intensa durante a dúzia
de anos em que partilháramos a casa e sofrera uma transformação
drástica com a sua fuga, ao passo que a ligação a Rute era efémera
e pontual, ainda que prolongada num tempo que ultrapassava a nossa
medida específica e concreta.
Rita
aparecera e desaparecera sem se fazer anunciar, enquanto Rute surgira
espontaneamente no compasso dos dias, sendo certo que a sua presença
continuaria mesmo depois de eu partir. Rute era a permanência e a
segurança, enquanto Rita era o risco e a incerteza. Em Rute, o
comando residia no espírito, ao passo que em Rita residia no
palpável, no imediato de um telefonema ou de uma discussão
acalorada em que o medo geralmente decidia o destino do minuto a
seguir. O meu medo era perdê-la, enquanto o medo dela era o
desconhecido que a esperava longe de casa. O destino de Rita foi
sempre longe de casa, onde residiam os seus velhos temores. Foi-o no
dia em que me bateu à porta e foi-o no dia em que abalou ao encontro
da dúvida para um país sem regresso.
Rita
partiu com a roupa que tinha no corpo, como se para evitar que eu a
localizasse através do cheiro de alguma peça de vestuário ou
através da sombra de um qualquer objecto pessoal. Deixou tudo para
se ver livre de mim. Nem esperou pela segunda-feira para se despedir
dos amigos de escola.
Foi
num sábado à noite que ela não voltou. Saiu como se nada fosse,
para ir dar uns passos de dança com gente da sua idade, mas quando
dei pelo que estava a acontecer já era tarde para a apanhar, já a
tinha deixado sumir.
Sei
que chegou sozinha ao estrangeiro, depois de ter sido vista na
fronteira em companhia de alguém com quem terá entabulado conversa
na viagem e que não se terá atrevido a seguir.
Rita
não consentia colagens fáceis. Admitia aproximações, diálogos
fúteis, troca de dados que pudessem vir a revelar-se importantes
para os seus objectivos, mas acabava por se afastar na primeira
oportunidade. Assim procedeu comigo ao fim de uma dúzia de anos,
quando eu já não previa que fosse capaz de me deixar, muito menos
sem um motivo explícito, sem uma explicação plausível.
Minutos
antes de sair do país, quando se encontrava na fila de espera para o
guiché onde exibiria o passaporte, Rita ainda fez uma tentativa de
ligação para uma amiga, mas, ao que me disseram, a comunicação
não durou mais do que uns breves segundos. O seu passado esvaía-se
por entre uma turbulência de fios que apagava as vozes, os rumores.
As
lágrimas não faziam parte dos dias de Rita. A impressão que ficava
era de que, num dado momento da vida, tinha chorado tudo e que tudo
fizera daí em diante para não repetir a experiência. No fundo,
Rita fugia das lágrimas. Viveu em minha casa enquanto julgou
possível resistir ao peso que transportava dentro de si e depois
pôs-se em fuga, para que a dor não voltasse a demoli-la. Se na hora
da partida não se despediu de ninguém foi ainda para evitar a
mágoa. Rita passou a vida a fugir do sofrimento.
Embora
a barreira da intimidade estivesse claramente definida entre nós
durante o tempo em que vivemos na mesma casa, eu não deixava de
constituir uma ameaça ao seu território. A minha presença devia
recordar-lhe a imagem dos pais e isso ter-se-á tornado insuportável
para ela.
Em
criança, quando eu lhe dava banho, esfregando-lhe o corpo macio,
sentia que ela não me dava a liberdade que teria dado àqueles que a
conceberam e puseram no mundo. Rita esquivava-se, retraía-se, como
se temesse que eu lhe fizesse algum mal. Não fugia propriamente das
minhas mãos, mas media-as com os olhos, estudava-lhes os movimentos,
parecendo rezar para que eu não fosse mais longe nos gestos. Era
evidente que esse receio só podia ter origem nos primeiros tempos da
sua existência, numa idade em que eu não a conhecia, num tempo em
que tinham sido os pais a tomar conta dela. Nunca me contou o que se
terá passado, jamais me revelou uma vírgula dos seus primeiros anos
de vida, fazendo que todos os meus gestos parecessem antinaturais,
calculados, obscenos.
Rita
manteve uma postura de alerta pelos anos fora, como se insistisse em
ter os olhos abertos durante vinte e quatro horas por dia.
À
noite, por vezes, eu entrava no seu quarto, para a observar enquanto
repousava, mas recuava depois dos primeiros passos com a nítida
sensação de que, embora dormindo, ela vigiava as minhas intenções.
Desde o dia em que se sentara à porta de minha casa na esperança de
que eu lhe desse abrigo, Rita sempre estivera perdida para mim. Por
maior que fosse o meu amor por ela, era um amor desencontrado,
desfasado.
Porém,
só mais tarde o compreendi, só doze anos depois, no primeiro
telefonema que ela me fez depois de ter saído de casa:
“Sabes
onde estou?”, indagou, com um tom sobranceiro na voz, um tom de
vitória no qual se podia adivinhar, pressentir, uma réstia de
amargura. Ao ouvi-la, ao estabelecer contacto com o eco das suas
palavras, como num rasgo de lucidez, entendi por fim as razões que a
tinham levado a deixar-me. Senti-me definhar, desintegrar. E
apeteceu-me descansar a cabeça no ombro de alguém desconhecido,
descansar apenas a cabeça, sem justificar nada, sem pestanejar, só
para esquecer aquele passado que assim me entrava de rompante no
presente, amolgando-o, despedaçando-o, atrofiando-o, assustando-o de
uma maneira que só o futuro tinha artes de conseguir.
Rute,
a bela, não teve necessidade de fugir para se ver livre de mim. O
lugar de Rute era o meu, ainda que eu nada devesse à beleza. Não
tínhamos de morar na mesma casa para ocuparmos a mesma dimensão,
nem tínhamos de manter qualquer relacionamento definido para saber
quanto nos unia.
Na
família de Rute, a solidez das raízes foi de tal ordem que nenhum
dos filhos sentiu necessidade de deixar o lar para encetar uma nova
vida.
Rute
vivia sozinha num apartamento seu, enquanto os irmãos, depois de
muito requisitados para diversos e apelativos namoros com as
raparigas mais atraentes, optaram por viver juntos na casa dos pais.
Certa vez, haviam ficado a dormir casualmente na mesma cama, numa
noite de cansaço, de abatimento profundo, de completa exaustão e, a
dado instante, durante o sono, num sobressalto de madrugada, a mão
de um deles avançou por baixo dos lençóis, apalpou e penetrou
através da abertura das calças de pijama do que dormia a seu lado e
só se deteve quando sentiu os cinco dedos da mão realizados e
felizes. Depois da hesitação inicial causada pela surpresa, a mão
decidiu que não recuaria e, fingindo que dormia, fingindo a
excitação de um sonho inaudito, completou a tarefa que a natureza
impunha. Passado pouco tempo, o furor dos corpos tomou conta dos
lençóis e os dois irmãos entregaram-se um ao outro de corpo e
alma, como se aquele fosse um momento há muito esperado. Quando já
não era possível continuarem a fingir que dormiam, os rapazes
passaram a simular perante si mesmos que não se conheciam, que
aquela era a primeira vez que se viam, tocavam, encontravam, uma
encenação que os deixou vergados à imensidão do prazer.
Os
irmãos de Rute nunca mais quiseram estar sexualmente com outras
pessoas. Sentiam que se bastavam a si mesmos. O sexo durante o sono
revelara-se um afrodisíaco sem igual, um prazer superior. Quem o
descobre, seja com quem for, desconhecido ou próximo, nunca mais se
liberta das suas inebriantes grilhetas.
Ao
acordarem na manhã seguinte, os irmãos de Rute perceberam que lhes
restavam dois caminhos: ou nunca mais se verem para não suportarem o
peso do que lhes acontecera ou ficarem a viver juntos para sempre.
Decidiram
pela segunda via. A separação seria uma crueldade. Uma quase
impossibilidade. Os irmãos de Rute eram praticamente a mesma pessoa,
tinham as mãos unidas por um esperma de idêntico sabor silvestre e
com origem no mesmo sangue. Cortaram ambos o cabelo rente, passaram a
vestir roupas semelhantes.
Até
ao dia em que se encontraram sexualmente, sentiram que tinham vivido
na penumbra do coração. Depois da descoberta, da entrega,
tornaram-se capazes do impensável: as suas fraquezas viraram forças,
os seus problemas transformaram-se em vantagens.
Passaram
a dormir no mesmo quarto, todos os dias, como um casal. O assunto foi
discutido em família e os pais aceitaram a situação sem objecções,
ainda que de forma pouco explícita. Preferiam ter os filhos perto
deles do que tê-los longe, desconhecendo por onde andavam.
Rute
falou-me sempre da família de forma desinibida e confessou-me que
foi a partir da altura em que os irmãos passaram a viver
maritalmente que o sorriso nunca mais deixou os seus lábios,
tornando ostensiva a sua boa disposição, como se a felicidade dos
seus tivesse passado a fazer parte de todos os minutos que a
preenchiam. Foi nesse tempo, também, que decidiu viver sozinha.
Se
Rute fosse homem, era bem capaz de ter ficado a coabitar com os
irmãos. Os três fariam uma vida perfeita. Sendo mulher, porém,
Rute sentiu-se excluída de uma relação que não admitia
diferenças. Se tivesse uma irmã, talvez optasse por viver com ela.
A beleza de Rute e dos irmãos era tão sublime que não admitia
interferências do exterior.
Rute
ficou aprisionada no seu mundo de solidão, mas sempre que me
visitava havia qualquer coisa nela que a transcendia.
Certa
vez, apanhou uma grande chuvada por não ter tido facilidade em
encontrar sítio para estacionar o carro e procurou abrigo em minha
casa. Não tínhamos o hábito de grandes intimidades físicas, mas
naquele dia vi-me na necessidade de a convencer a vestir o meu roupão
para que eu tivesse oportunidade de pôr suas vestes a secar.
Inicialmente,
Rute disse que não se justificava, como se surpreendida por eu lhe
disponibilizar uma das minhas peças de vestuário, mas acabou por
ceder, nem que fosse para evitar o risco de uma constipação.
Quando
a vi sair da casa de banho coberta apenas pelo meu roupão, senti que
estava perante a realização de um sonho maior. Durante breves
segundos, ousei alimentar a ilusão de que Rute se preparava para se
estender a meu lado na cama. Foram os segundos mais vibrantes de que
me lembro. Pensar na simples hipótese de Rute partilhar os meus
lençóis era quase tão gratificante como cair numa realidade em que
isso verdadeiramente acontecesse.
Vendo
que eu me deslocara à cozinha, Rute ousou sentar-se na beira do meu
colchão, como se estivesse animada do mesmo delírio que eu. Mas
quando me viu de volta ao quarto de dormir, levantou-se prontamente,
numa reacção sem dúvida precipitada cujo objectivo era evitar que
eu captasse os seus íntimos devaneios.
“Quer
que lhe leia alguma coisa?”, perguntou a despropósito e sem ter
tempo de dissimular a sua repentina falta de à vontade, até porque
a leitura não era um hábito no nosso relacionamento.
Limitei-me
a olhá-la, sem necessidade de esconder o meu deslumbre: Rute estava
soberba, sob o meu roupão, tanto mais bela quanto mais insegura se
sentia, como se tivesse acabado de entrar num corpo que não era o
dela, um corpo que conhecia, que lhe era próximo, mas, ao mesmo
tempo, estranho.
Eu
estava num tal estado de transe que praticamente não me apercebia da
distinção entre o corpo de Rute e o meu. Ao vê-la no meu roupão,
fiquei com a sensação de ser eu, e não ela, quem eu observava, na
verdade. Foi um momento de singular projecção, um momento de
alienação como antes nunca tinha experimentado.
Rute
deslocava-se no quarto e eu sentia a pressão do seu andamento nas
minhas pernas de músculos retesados. Ela olhava-me e eu ficava com a
nítida impressão de me analisar com os meus próprios olhos,
algures fora de mim.
A
dado instante, quando me preparava para dizer o nome dela, percebi
que os meus lábios se limitavam a proferir um som, uma sílaba. Não
diziam Rute, mas sim Lis. Lis de Elisabete? Lis de Lisa? Lis de
Lisandro? Lis de quê? Lis de que nome…, de que memória? Digo
“Lis” como quem imagina a palavra, como quem a murmura, e ao
fazê-lo sei que ninguém calcula o sofrimento que a expressão
contém. Todas as palavras doem, todos os nomes pesam, amarguram,
incomodam. O termo “Lis” não é excepção. E dói mais porque
encerra em si a dimensão de dois mundos. A minha incapacidade de me
identificar, de me reconhecer, torna mais doloroso o nome por que me
chamam. “Lis” é nome de ninguém, nome de vento, nome de cinza.
Os nomes sintetizam o sofrimento. São pequenos relicários onde a
dor se esconde, se anicha, se resume. Um nome significa perder um
filho, a família, a fortuna, as regalias. Significa ficar sem nada
que nos recorde no mundo. Ter um nome é ser incompreendido, ser
desamado, não ter destino. Ter um nome é ser esbofeteado,
espancado, vergastado, açoitado. É perder a liberdade, é ser
encurralado, é não ser. “Lis” não quer dizer nada, mas quer
dizer tudo. “Lis” é a chave de mim, é a porta de entrada no meu
corpo, é a janela da qual alguém desviou as cortinas para que me
vejam. “Lis” dói tanto que nem consigo andar.
O
meu cheiro era o cheiro de Rute que inundava o roupão que eu
habitualmente envergava. A minha respiração era a respiração
dela. Creio que a própria Rute se terá apercebido do que se
passava, porque a vi retraída, confusa, perplexa.
Para
mim, contudo, aquele era o momento mais natural e completo que eu já
vivera com ela. Sempre me dera conta de que a nossa união se
revelaria, só nunca adivinhara que tal sucederia a pretexto de uma
insignificante peça de vestuário.
Apetecia-me
falar, dizer coisas sem nexo, mas nem conseguia que as palavras me
saíssem da boca. Não pela surpresa, mas pela felicidade. Eu queria
estar naquele momento em toda a sua intensidade e sabia que ao
pronunciar qualquer palavra corria o risco de fazer desmoronar tudo.
De
tanto olhar Rute no meu roupão, vi uma luz envolvê-la, uma ausência
completa de sombra, que a tornava mais leve, mais apetecível, quase
incorpórea.
Fiz-lhe
um gesto com a mão para que se aproximasse, para que eu pudesse ter
a oportunidade de a tocar, mas a sua reacção foi no sentido oposto
ao do meu pedido.
Receosa
de cair numa vertigem da qual se não pudesse libertar, Rute
afastava-se de mim em bicos de pés, ameaçando levantar voo,
sorrindo, de olhos brilhantes e dizendo-me coisas silenciosas por
entre o subtil movimento dos lábios, um movimento oposto ao que
havia de fazer, um dia, quando me assistisse no momento de partir.
De
repente, Rute parecia Rita, escapando-se, fugindo para longe,
desaparecendo na poalha da claridade que vinha da janela. Se o
telefone tocasse naquele instante, ou se alguém tocasse na campainha
da porta, eu pensaria que Rita se tinha acabado de materializar
através de um inexplicável fenómeno tecnológico.
Ao
ser absorvida pelo meu roupão, Rute tornava-se outra pessoa, outro
ser; tornava-se mais humana, mais tangível, mais previsível. Com o
meu roupão, Rute tornava-se Lis – tornava-se eu – e depois
tornava-se Rita. Perigosamente eu, perigosamente Rita.
Que
se tornasse Lis ainda lá vai, ainda se tolerava. Que se tornasse
Rita é que nunca. Quase gritei para impedir que Rute se esfumasse,
desaparecendo da minha vista para sempre.
“Não!!”,
ouvi-me dizer, ouvi-me gritar, fazendo Rute abrir os olhos de espanto
para saber o que se passava.
“Nada”,
respondi-lhe. “Não se passa nada. A sua roupa já deve estar
seca”.
Enquanto
o dizia, dirigi-me à máquina de secar que ficava num compartimento
ao lado da cozinha e voltei para junto de Rute entregando-lhe o
roupão. Ela foi para a casa de banho mudar de indumentária e,
quando voltou, já recuperara o aspecto da Rute de sempre, da outra
Rute, a verdadeira, a que vivia fora do meu corpo, a bela, a
insuperavelmente bela.
27
Será
que me enganei no número de telefone e em vez de telefonar para o
hospital telefonei para um restaurante ou para uma igreja? É
estranho que uma ambulância se esqueça de um doente que pede ajuda.
Terão pensado que o meu telefonema era brincadeira ou farsa? Terão
posto a hipótese de eu me estar a divertir? Não deveriam confirmar
a veracidade das chamadas que recebem antes de se porem a caminho?
Terá ocorrido um acidente com a ambulância que me era destinada?
Neste caso, porém, não deviam tê-la substituído por outra?
Haveria falta de pessoal no departamento de emergência hospitalar?
Eu
não sabia o que pensar. Ouvia-se dizer tanta coisa, havia tantas
notícias sobre a ineficácia dos serviços de saúde que o melhor
era nem encontrar resposta para as minhas dúvidas.
Talvez
seja melhor recuar uns anos. Enquanto espero, faço pelo menos alguma
coisa de válido. Recordar é uma maneira de fugir, de me entreter.
Coloco
a mão sobre uma dobra do lençol, estico dois dedos e arranco a toda
a velocidade pelo tempo fora, sem querer saber de perigos nem de
imprevistos nas curvas que fazem da minha cama uma aventura sem
igual. Sou eu que vou no carro dos meus dedos, buzinando e roncando
até ao entardecer da minha infância.
Chego,
olho em volta, encontro tudo na mesma. Percebo as diferenças, mas
preciso que tudo esteja igual ao que era para me posicionar com
exactidão na lembrança do que pretendo contar.
Quando
eu era criança, o mundo resumia-se ao percurso entre a casa dos meus
pais e a escola que eu frequentava. Durante anos, fiz aquele caminho,
consciente de que não havia outros mundos, nem sequer outro destino
para além do que ligava a casa onde eu nascera ao estabelecimento de
ensino que era obrigado a frequentar.
Não
havia o risco de eu me perder. Deixavam-me, por isso, andar em
liberdade. O trajecto era constituído apenas por uma rua, uma praça
e uma outra rua, onde ficava a escola. Era esse o percurso que eu
fazia todos os dias. Os outros caminhos, que eu vislumbrava à
distância, os que ficavam ao lado, já pertenciam a outro universo,
já me eram estranhos, já me ignoravam. Limitava-me a olhá-los de
longe, temendo-os, evitando-os.
Quando
ia para a escola, eu caminhava por entre casas cinzentas tombadas sob
o nevoeiro, sob a neblina. Mesmo quando fazia sol, havia sempre no ar
uma espessa camada de ar branco, um chapéu de névoa, que me
atemorizava e me seduzia, e que, por isso, me fazia caminhar
indiferente ao que pudesse acontecer. A minha função era caminhar
apenas. Caminhar sempre, até ao fim dos tempos. Caminhar para a
escola como quem vai para sítio nenhum, como quem põe simplesmente
um pé fora de casa na esperança de percorrer todos os países.
Eu
tinha a certeza de que o que me podia acontecer de pior era apanhar
uma trovoada ou uma tempestade por entre enormes chuvadas que
encharcavam os dias de lama e isso era suficiente para me fazer
vibrar com tudo o que me rodeava.
O
mau tempo não me impedia de ir à escola, onde encontrava os colegas
que não se cansavam de invejar o urso, o rechonchudo urso, que os
meus pais me tinham dado de presente pelo meu oitavo aniversário.
Todos
os dias eu levava o urso para a escola. Havia quem dissesse que eu já
não tinha idade para brinquedos daqueles, o que me incomodava, mas
nem assim eu desistia da minha vocação. O urso era a vocação que
me preenchia. Não sabia o que fazer com ela – vocação – mas
nada mais podia explicar o meu profundo elo a um objecto tão
insignificante.
Certo
dia, quando fui buscar o urso que costumava ficar guardado no
bengaleiro da escola, verifiquei que lhe tinha acontecido qualquer
coisa, qualquer coisa de estranho. Metia-se pelos olhos dentro. Só
que eu não me atrevia a verificar. Temia que fosse superior às
minhas forças. Não consegui tocar no urso, antes de saber o que
realmente se passara. Dei um grito e vieram logo duas colegas até
junto de mim, perguntando se eu estava bem, se me ferira, se me
assustara.
Fui
incapaz de falar. Limitei-me a apontar na direcção do meu urso, que
estava caído no chão, de barriga para baixo. Foi uma colega que o
levantou e mo entregou. E só nessa altura tive consciência plena da
realidade: tinham-lhe arrancado os dois olhos! Os dois. Os olhos não
haviam caído por si. Haviam sido barbaramente arrancados. Tão
barbaramente como se o acto tivesse sido cometido sobre uma pessoa.
Foi o que senti. Era a única explicação plausível para um acto
tão vil. Quem arrancara os olhos ao meu urso quisera, sim, fazer de
mim a sua vítima. E só se atirara ao urso porque sabia que se se
atirasse a mim as consequências seriam bem mais graves. Não que eu
soubesse defender-me. Era apenas a lei que o ditava. Eu sentia um tal
atordoamento pelo que tinham feito ao meu urso que até achava
injusta a lei que cavava uma diferença tão funda entre um peluche e
um humano. Um peluche também tinha direitos, que deviam ser
reconhecidos, sobretudo quando eram estúpida e arbitrariamente
violados.
O
bengaleiro onde eu tinha por regra guardar o meu urso ficava no
corredor que dava acesso aos sanitários e o mais certo era alguém
ter aproveitado uma ida à casa de banho para lhe arrancar os olhos,
como se ele visse demais e a sua visão fosse um perigo para a
humanidade instalada.
Foi
um acto de vingança, de despeito. Eu tinha uma ideia vaga de alguém
me ter pedido o urso emprestado e de eu me ter negado a fazê-lo.
Lembrei-me logo que devia ter sido esse colega que resolvera retaliar
nos olhos do meu pobre peluche.
Recordava-me
de o ter visto levantar-se da carteira e pedir licença para se
ausentar, e creio que ainda apanhei o seu olhar de viés na minha
direcção. Mas nunca desconfiei de nada. Nunca percebi o alcance que
o ódio podia cavar na sua pequena alma.
No
dia em que o meu urso perdeu os olhos foi como se o futuro tivesse
desabado sobre a minha cabeça. Era como se eu já não pudesse ter
amanhã, como se já não tivesse hipóteses de fazer alguma coisa de
mim. Ter vocação era alimentar uma esperança e perder a esperança
era deixar ruir essa vocação.
Peguei
no urso, acarinhei-o, confortando-o na dor, que eu tinha a certeza de
ele sentir, e finalmente tive coragem para lhe mirar os buracos
fundos dos olhos. Não me apetecia chorar. Se o fizesse, pensava eu,
o drama seria bastante maior, seria como se o urso perdesse os olhos
pela segunda vez.
Mas
a minha aflição também era por causa dos meus pais. Eu receava que
eles achassem que eu não fora capaz de tomar conta do urso que eles
me tinham dado de oferta. Poderiam pensar que eu me descuidara, que
não apreciara suficientemente a sua prenda, que porventura até
colaborara no acto de vandalismo.
Como
lhes iria explicar o que acontecera? Com que cara? Se chorasse,
podiam achar que era fingimento. Se não chorasse, considerariam
certamente que eu não me importava com o que tinham feito ao urso.
Eu estava entre a espada e a parede. Tinha que encontrar uma saída.
Pensei
pedir à professora que fosse a minha casa explicar o sucedido, mas
depois fiz contas e concluí que por essa via a tragédia pareceria
muito maior. Nem que fosse apenas pela presença da professora. O
ideal seria não dramatizar.
Apressei-me
a guardar os olhos do urso no bolso da bata, a fim de mais tarde
tentar colá-los com os meus próprios meios. Colá-los como se se
tratasse dos meus próprios olhos. Guardei-os com um sentimento de
consolo que era estranho à noção de orfandade que se apoderara de
mim na ocasião em que me dei conta do que tinham feito ao meu urso.
O
autor do ataque nunca foi identificado. Penso que se o encontrasse
hoje continuaria a não encará-lo com bons olhos. E talvez lhe
pedisse contas. Pelo menos, pediria um esclarecimento, embora o mais
provável fosse ele já nem se lembrar do que fizera.
Não
sei a que propósito veio esta recordação do urso. Ah, foi a
propósito das tempestades e do mau tempo que muitas vezes me
acompanhavam a caminho da escola. Pois, as tempestades, as ventanias
e as chuvadas que enchiam as tardes de pedras no céu e de trovoadas
contra as chaminés das casas.
Nos
dias de chuva, a água castanha corria pelas valetas, onde eu
costumava mergulhar os pés, sem tirar meias nem sapatos, sentindo
que estava dentro do único rio do mundo, o maior rio do mundo.
Chegava a casa com os pés molhados, mas sabia que não me
repreenderiam por isso. Os meus pais sempre foram de uma grande
tolerância comigo. Eram o meu grande conforto, a grande segurança
de que eu necessitava. A água podia correr nas valetas as vezes que
quisesse que nada mais me interessava, desde que tudo estivesse bem
com os meus pais. Havia mais mundos, mas eu limitava-me ao mundo da
família e das tempestades na rua que tinha de percorrer para ir de
casa para a escola e da escola para casa.
Num
dia em que as valetas transbordavam de água barrenta de uma chuvada
enorme, a tragédia escolheu-me para motivo do seu escárnio. Depois
de terem tirado os olhos ao meu urso, faltava fazerem qualquer coisa
comigo. Não me arrancariam os olhos, de certeza, mas fariam qualquer
coisa que simbolizasse quanto me odiavam e desprezavam. Escolheram a
valeta para me atirar para dentro dela. Veio por trás de mim uma
colega, que me acompanhava com frequência a caminho de casa, e que
me empurrou, fazendo-me cair na água desamparadamente.
Aconteceu
de súbito. De súbito, vi tudo cinzento, tudo neblina em redor, tudo
casas desmoronando-se. Num rasgo de lucidez defensiva, procurei
verificar se conseguia tocar no chão com os pés, para não me
afundar, procurei manter a cabeça fora de água, enquanto um sem
número de raparigas e rapazes ria aos berros com a minha figura
encharcada dentro da valeta.
Os
seus risos e a sua chacota molharam-me mais do que a água.
Apeteceu-me desaparecer rio abaixo, apeteceu-me que as águas me
levassem como um urso de olhos arrancados. Apeteceu-me não
regressar.
A
partir daquele dia, deixei de sentir que era igual às crianças da
minha idade. Ter caído nas águas lamacentas de um esgoto passou a
ser o meu estigma, a minha dor funda, a minha diferença, que mais
tarde veio a pesar na minha identidade. Ou será que a minha dúbia
natureza sexual é que criou condições para que me empurrassem para
a valeta? Nunca o saberei. Pode parecer que a vida sexual de uma
pessoa nada tem a ver com as suas quedas em valetas a abarrotar de
lama, mas não tenho dúvidas do contrário.
Cheguei
a casa já noite escura, sem precisar de justificar o meu atraso. O
que me acontecera metia-se pelos olhos dentro. Ao verem a minha
figura encharcada, os meus pais quiseram saber o que se tinha
passado. Não encontrei palavras para lhes responder. Limitei-me a
uns gaguejos, de olhos no chão e cabelo sobre a fronte.
“Até
parece que acabaste de sair do duche”, disse a minha mãe, enquanto
o meu pai perguntou com um ar irónico se eu tivera aula de natação.
Em cada palavra que ele proferia eu vislumbrava a sua condenação
por eu ter deixado que arrancassem os olhos ao urso. Como se eu fosse
um urso, como se eu merecesse aquele castigo. Eu sabia que eles não
me condenavam, mas era incapaz de me libertar das palavras, mesmo de
consolo e apoio, que me dirigiam. Quanto mais compreensivos eram os
meus pais, mais eu achava que os não merecia. Em mim, havia alguma
coisa que provocava repulsa. Por isso, tinham tirado os olhos ao meu
urso, por isso me tinham atirado para a lama da valeta.
28
Quando
Raimundo regressou do estrangeiro, nem eu escapei à amargura do seu
juízo. Eu que nunca vivera fora do meu canto nem do meu país e que
não fazia ideia do que era adormecer numa casa sem pontos cardeais.
“Quando
te reencontrei, não consegui olhar-te da mesma forma”,
confessou-me, ele, um dia. “Parecia-me impossível que nunca
tivesses viajado. Por qualquer razão, pensei que também tinhas
acabado de chegar, que andavas por aí sem saber o que fazer.
Deixei-me iludir pelos anos que vivemos separados. Não sabia se te
tinha acontecido alguma coisa…”.
Em
relação a ele, eu sentia de forma idêntica. Desconhecia se
Raimundo era outro ou se era o mesmo. Havia essa dúvida para
esclarecer entre nós, o que me bastava para evitar que eu me
afastasse dele.
Durante
anos, não faltou quem insinuasse que eu tinha interesses na amizade
com Raimundo, apesar da nossa diferença de idades, mas não me
deixei influenciar por esses rumores, ainda que sempre me tivesse
parecido que ele mantinha comigo um relacionamento de ligeiro alerta,
o que só aumentava a minha curiosidade.
Via-se
que, mesmo quando falava pouco, procurava permanentemente afastar
qualquer dúvida que pudesse instalar-se entre nós, como quem sacode
uma mosca que não pára de esvoaçar à sua volta. Eu apreciava esse
esforço da parte dele, mas nem isso me impedia de tentar adivinhar o
que lhe ia na alma. Era natural que ele guardasse espaço para alguma
ambiguidade, uma postura que contribuía para justificar o nosso
relacionamento.
Depois
do seu regresso, quando eu o encarava, por vezes, parecia-me que ele
receava que eu lhe pedisse dinheiro. Não que eu fosse
particularmente materialista, e ele conhecia-me bem, mas como eu
vivia sempre a contar os tostões, era natural que mais dia menos dia
não resistisse ao gesto de lhe estender a mão. Como tal nunca
aconteceu, Raimundo não recuou perante mim. Tenho a certeza de que
foi só por isso que me continuou a abrir a porta de sua casa.
Na
terra onde Raimundo nascera não nevava como no Canadá, onde
estivera emigrado, mas havia dias em que ele saía de casa com o
rosto gelado como se tivesse toneladas de neve sobre a cabeça.
Ficava branco só de pensar nas pessoas que encontraria no trajecto
entre a garagem situada na cave da sede das suas empresas e o
escritório onde trabalhava. Sentia-se gelar só de imaginar que se
ririam dele, que o considerariam tolo por não se dar com ninguém,
que o teriam na conta de um caso atípico, com aquela sua forma de
arrastar os pés.
No
Canadá, se não falasse com as pessoas, se não convivesse, se não
sociabilizasse, ninguém lhe estranharia a postura. Mas no seu país
não havia justificação para um comportamento tão reservado. O que
transparecia era que nunca seria compreendido, mesmo que um dia
viesse a despejar a alma na praça pública.
Muitas
vezes, quando a sua terra parecia desdenhá-lo mais, pensava nos
tempos em que, alta madrugada, no Canadá, saía de casa para ir ver
passar o tempo nas ruas escuras e frias, como se estivesse à espera
de alguém. Consolava-o a ficção de esperar por alguém que não só
nunca viria, como nem sequer existia. A não existência tinha o seu
quê de misterioso e de atraente. Era a grande liberdade que lhe
permitiam viver.
Nesse
tempo e nesse país, ninguém o conhecia, ninguém o olhava, ninguém
lhe ligava, o que fazia que se sentisse livre. Só, mas livre. Agora,
que voltara ao berço, sentia-se vigiado. E sem ninguém.
Nem
sequer no escritório da sua empresa, onde teimava em aparecer todos
os dias, Raimundo se sentia bem consigo e com os outros. Os erros
enervavam-no, as inconveniências perturbavam-no, os atrasos
irritavam-no. Havia alturas em que não queria ver nem ouvir vivalma.
Afligia-o
que os seus funcionários não se dedicassem ao trabalho durante
doze, dezasseis, vinte horas por dia. Quando os via deixar o emprego,
ao fim de oito horas de serviço, quando os via abandonar as tarefas
profissionais para irem à sua vida, Raimundo sentia que estavam a
ser injustos com ele. Podiam sacrificar-se mais porque ele também se
sacrificava para lhes pagar o salário no fim do mês. Por isso, não
seria favor se permanecessem mais uns minutos, mais umas horas no
local de trabalho. Se as pessoas queriam ser bem remuneradas, deviam
perceber que era com base no seu volume de produção que se tornava
possível, ou não, aumentar-lhes o salário. Quanto mais rendessem,
mais lucro ele teria e quanto mais lucro tivesse, melhor lhes poderia
pagar.
Raimundo
não compreendia como as pessoas em geral não assimilavam um
raciocínio tão elementar. Provavelmente, não acreditavam no
patronato. Para Raimundo, porém, pagar bem aos trabalhadores, não
era uma questão de generosidade, mas uma questão de lógica. Na sua
opinião, só quem era bem pago podia produzir bem. E só com base
numa produção eficaz seria possível continuar a criar riqueza. Um
funcionário que saísse do emprego pontualmente era um funcionário
incompetente e medíocre. E a incompetência, afligia-o, torturava-o,
desassossegava-o.
Costumava
reunir os funcionários, incentivando-os a produzir mais,
estimulando-os com prémios, mas tinha a certeza de que logo que
virasse costas tudo continuaria na mesma.
A
falta de iniciativa aterrorizava-o, a falta de ideias, a falta de
empenho. Para ele, não bastava ser sério. Era necessário ser
dedicado a uma tarefa, a uma causa.
Muitas
vezes, apetecia-lhe berrar, por não poder aguentar tanta irritação
dentro de si, mas limitava-se a ciciar uma reprimenda ou a murmurar
uma ordem.
“Despache-me
isto, quanto antes”, dizia ele, encolerizado, com a voz rente ao
chão.
Para
Raimundo, só havia uma filosofia: as pessoas deviam trabalhar o
máximo que pudessem, independentemente de regras e horários, a fim
de acumularem conhecimento e riqueza. Só assim o trabalho fazia
sentido. Era inadmissível que alguém pudesse ocupar um terço da
sua vida numa determinada actividade apenas para receber um mísero
salário ao fim do mês. Quem dava um terço da vida a troco de uma
ninharia bem podia dar a vida toda a troco de mais dinheiro.
Trabalhar muito era uma forma de não só convencer o patrão a pagar
melhor, mas também de acumular saber e dominar uma quantidade de
conhecimentos. Saber era poder e quem tinha poder só precisava de o
utilizar em proveito próprio. Depois de terem trabalhado para
outrem, as pessoas deviam trabalhar para si mesmas, considerava
Raimundo. Não lhe custava aceitar que os seus funcionários, um dia,
deixassem de estar sob as suas ordens, a fim de se dedicarem aos seus
próprios projectos. As leis do mercado assim o ditavam. Era o que
ele queria e defendia. Só não percebia como era possível as
pessoas acomodarem-se ao pouco ou nada que conseguiam.
“É
por isto que não evoluímos!”, dizia, por vezes, contrariado. “A
maior parte das pessoas quer é descanso. E ainda exigem salário e
subsídio de desemprego!”
Num
dia em que Raimundo estava mais enfurecido, embora não se lhe
ouvisse a voz, quando a mulher de limpeza entrou no seu gabinete e o
ouviu falar sozinho, pôs-se a responder-lhe como se o assunto a
envolvesse, levando Raimundo a retorquir-lhe, directamente, embora
ela não tivesse a certeza se ele falava sozinho ou se falava com
ela.
“Como
pode uma pessoa fazer a mesma coisa toda a vida?”, perguntava ele,
de olhar perdido na direcção da janela.
“Não
sei fazer mais nada…”, respondeu ela, enquanto limpava o pó dos
móveis.
“Toda
a gente que trabalhe a sério tem de mudar e evoluir. O trabalho
ensina tudo. Só é preciso produzir bem e depressa, para haver tempo
de a pessoa se organizar de outra maneira e ter oportunidade de
ganhar mais dinheiro!”
Ela
respondeu que o dinheiro não queria nada com ela, ao que ele
argumentou que o poder estava em cada um, não no dinheiro.
“Fazemos
dele o que queremos”, sublinhava Raimundo. “Não devemos ser
escravos de nada. O dinheiro é que deve ser nosso escravo. A partir
de certa altura, o que se deve fazer é contratar gente que faça o
trabalho por nós e incentivar a autonomia depois da experiência
acumulada”, acentuava ele, com as veias salientes no pescoço.
“Fala
dessa maneira porque não sabe o que é limpar chão”, resmungou a
mulher, como quem falava para os seus botões, obrigando Raimundo a
voltar às tarefas do costume sobre a secretária, na tentativa de
esquecer o que acabara de ouvir.
“As
pessoas não se esforçam o suficiente”, dizia ele entre dentes.
“Por isso a sociedade é a pasmaceira que todos sabemos”.
Nessas
alturas, zangava-se, dava dois ligeiros socos na secretária e
calava-se, como se o silêncio fosse uma maneira de poupar dinheiro.
E, para Raimundo, era-o, realmente, porque cada palavra demorava um
determinado tempo a pronunciar e durante esse tempo ele tinha a
certeza de que perdia alguma coisa. Por isso, falar pouco era uma das
suas regras de vida.
Assustada
com o breve ruído dos socos na mesa, a mulher de limpeza, pôs-se a
rezar baixinho, arrependida de ter dito o que dissera. Receava que
ele tivesse levado a mal alguma coisa. Podia mesmo ter interpretado
como uma incorrecção o simples facto de ela lhe ter dirigido a
palavra. Via tudo negro à sua frente e pensava que o seu emprego
podia estar em risco. Apanhou-me um dia no corredor e contou-me tudo
isto como se me conhecesse desde os bancos de escola, pedindo-me que
intercedesse por ela junto de Raimundo. Alegava que se o patrão se
calara e dera dois socos na mesa fora porque alguma coisa acontecera
de errado. Não fazia sentido que ele se tivesse exaltado consigo
mesmo. A irritação só podia ter sido com ela. Na altura, não
estava mais ninguém no gabinete. O mais certo era Raimundo achar que
em vez de lhe ter respondido ela devia esfregar o chão com mais
empenho e limpar o pó dos móveis com atenção redobrada. Queria a
minha opinião sobre o que acontecera e suplicava os meus préstimos,
certa de que a minha velha amizade com Raimundo seria suficiente para
resolver aquela falsa contenda.
Alguns
momentos mais tarde, ela ouviu de novo a voz de Raimundo. Desta vez,
porém, não respondeu, com medo de o irritar mais uma vez. Até fez
esforço para não entender o significado das suas palavras, para
escapar à tentação de dizer alguma coisa.
Mas
ele levantou-se da secretária e veio até junto dela, dizendo-lhe ao
ouvido, com aspereza:
“Estou
a falar consigo…”, o que a fez estremecer dos pés à cabeça e
por pouco não a levou ao soalho. “Está surda?”, ao que ela
abanou a cabeça negativamente. “Por hoje, está dispensada. Amanhã
falaremos”.
A
mulher fora para casa com a cabeça desfeita. Não sabia se tinha
sido despedida, ou não. Ele dissera-lhe “amanhã falaremos”, mas
a sua intenção podia muito bem ser a de fazer contas definitivas e
despedi-la.
À
noite, pensou em telefonar-lhe. Fez várias tentativas, mas acabou
por desistir poucos segundos antes de marcar os números. Seria um
desrespeito uma mulher-a-dias telefonar para casa do patrão. O seu
dever era esperar pelo dia seguinte, para saber o que Raimundo
pretendia. Se dormisse mal, a culpa seria dela e só dela. Ninguém a
obrigara a estar de conversa com quem não devia. A sua função
consistia em limpar a empresa e mais nada. Exorbitara claramente as
suas obrigações.
Na
manhã seguinte, quando entrou no escritório de Raimundo, estava
pálida que nem cal e tremia como um pudim na taça. Mas ele não lhe
deu atenção. Ignorou-a como a um trapo. Só meses depois lhe expôs
a sua ideia:
“Quero
propor-lhe que passe a trabalhar no secretariado do escritório.
Dobro-lhe o salário. Contudo, terá de trabalhar mais horas, pelo
menos no início, até aprender de forma segura as tarefas que lhe
serão confiadas”.
Depois
de um compasso de espera para tentar perceber o que lhe estava a
acontecer, ela respondeu quase num murmúrio que tinha fracas
habilitações académicas e que não sabia muito mais do que assinar
o seu nome.
Raimundo
sugeriu que ela voltasse a frequentar a escola durante o período de
adaptação às novas funções:
“Esta
é uma oportunidade única na sua vida. Se não a agarrar agora,
viverá sempre com um salário de miséria”.
Ela
respondeu que o dinheiro não era tudo e que não tinha coragem de
aceitar um lugar para o qual não estava preparada. De resto, se era
para trabalhar mais horas, ela não o podia fazer porque tinha de se
ocupar da filha.
“Se
não está preparada, passa a estar. Quanto à sua filha, pode
trazê-la para o escritório, desde que não incomode…”, replicou
ele.
A
mulher respondeu que preferia continuar na limpeza. Não se sentia
capaz de voltar à escola e a filha não se sentiria bem na empresa.
Raimundo
perguntou-lhe se ela não queria uns dias para pensar no assunto, se
não queria aconselhar-se com o marido, mas a mulher respondeu-lhe
que se falasse ao marido na proposta que acabara de receber ele
quereria logo saber que favores tinha ela prestado ao chefe para
merecer tamanha promoção! Acentuou que era melhor deixar tudo como
estava, que até gostava de esfregar chão e de aspirar alcatifas.
“Não se incomodem comigo”, foram as suas palavras.
Raimundo
ficou desiludido com a reacção da mulher. Sobretudo pela forma como
ela disse para não se incomodarem com ela. “Incomodem” era
plural e fora ele, pessoa singular, que lhe fizera a proposta. Vira
naquela expressão uma enorme desconsideração pelo interesse que
por ela demonstrara. Apeteceu-lhe destruir o que tinha em cima da
secretária, mas conteve-se. Muitos pobres só o eram, na sua
opinião, porque incapacidade de se sacrificarem por uma vida melhor.
Estavam no direito de o fazer, só que não estava certo andarem
pelas ruas a queixar-se e a mendigar. Cada um tinha a vida que
merecia.
No
fim do dia de trabalho, Raimundo saía muitas vezes antes da hora de
encerramento do escritório, saía mais cedo, só para não ver os
seus funcionários abandonarem o serviço pontualmente às dezoito
horas, por entre atropelos de casacos, arrastamento de cadeiras,
quedas de dossiês. Era um barulho que o perturbava.
Quando,
por algum motivo, não conseguia deixar o escritório mais cedo, era
capaz de não dormir naquela noite, só por causa do ruído das
cadeiras a arrastar. Nunca mais sossegava.
Raimundo
compreendia o argumento segundo o qual os funcionários de uma
empresa tinham a sua vida pessoal, tinham família, tinham os seus
próprios afazeres. Era verdade. Mas, por outro lado, havia um outro
aspecto que não costumava ser tida em conta: se as pessoas
trabalhassem mais horas, acabariam por beneficiar as suas famílias.
Durante um certo tempo, poderiam prejudicá-las, mas depois
beneficiá-las-iam.
Raimundo
recorria à calculadora e somava números, tomava notas em pequenos
papéis que depois perdia ou fazia desaparecer por baixo de outros
papéis maiores, mais importantes, mais urgentes.
“Cá
está!”, dizia ele de si para si. “O problema é trabalharem
pouco”.
A
redução do horário de trabalho era o pior erro que se podia
cometer. Erro para os trabalhadores, erro para os patrões, erro para
o mercado. Porque quanto menos se trabalhasse, menos se saberia,
menos se produziria, e, como tal, menores seriam as hipóteses de as
pessoas se libertarem. Se pensavam que melhoravam a vida trabalhando
menos, estavam enganadas.
Era
verdade que, por causa de tanto trabalhar e por causa da sua forma de
pensar, ele acabara por se tornar um solitário, acabara por quase
não conviver com ninguém, mas também não era menos certo que era
um indivíduo independente e que tinha dinheiro de sobra. Quem
passava a vida a sociabilizar perdia a oportunidade de enriquecer.
29
Após
a morte do meu pai, passei a visitar a minha mãe com maior
assiduidade. Fi-lo tantas vezes que acabei por estar presente no dia
em que ela faleceu.
A
certa altura, percebi que algo se passava, corri e fui dar com ela
estendida na cama, muito pálida, de olhos esbugalhados, dizendo:
“Estou a morrer… estou a morrer”.
Não
me recordo porquê, mas respondi-lhe de mau humor. Acontecia-me, por
vezes, reagir de forma agressiva às situações, como se
pressentisse que por detrás delas havia outras coisas. Reagi como se
a minha mãe estivesse a exagerar. Disse que ela não estava nada a
morrer, que deixasse de se lamentar, que não fosse piegas. E como
ela continuou a insistir e a contrariar-me, levantei a voz, dando-lhe
ordens definitivas para se calar!
“Nem
mais uma palavra!”, disse-lhe de forma autoritária, com um tom que
até me surpreendeu.
Foi
a única vez que mandei calar a minha mãe. Depois da ordem que lhe
dei (mais um berro do que uma ordem), fiquei com a sensação de ter
disparado uma arma. O silêncio que se seguiu parecia o silêncio de
alguém que tombara sob o meu disparo.
Minha
mãe obedeceu-me. Não voltou a falar. Estava eu ainda longe de
perceber as razões. Ficou branca, cada vez mais pálida, sem
energia, desfalecida. Pareceu de repente esvaziada de ar.
Mesmo
assim, não desanimei e continuei a discutir. Agora que ela perdera a
voz, eu encontrava uma oportunidade soberana de lhe dizer o que
pensava, dela, do meu pai, da família, dos amigos, da vida, do que
esperavam que eu fosse…
Nem
me calei quando fui à cozinha encher um copo de água para lhe dar
de beber. Por qualquer razão, eu sentia que tinha de deitar cá para
fora o que acumulara ao longo dos anos e que nunca tivera coragem de
desabafar. O meu estado de nervos era tal que não sabia exactamente
por onde começar a discussão. Eu queria uma discussão, só uma
discussão, queria esclarecer uma série de assuntos.
Acabei
por pegar numa ponta e não deixei nada para trás. Confrontei minha
mãe com os factos: ela nunca concordara em separar-se do meu pai,
não por me amar, como sempre dissera, mas por não ter coragem de
enfrentar a família e a sociedade. E, sobretudo, por não ter
coragem de enfrentar o homem com quem casara.
“Sempre
te preocupaste mais com os outros e com o que eles pensam do que
contigo própria e comigo”, dizia eu, enquanto ela continuava a
empalidecer, empalidecer.
Nem
sei porque dizia aquilo, já que nunca me apercebera de que os meus
pais se tivessem dado mal um com o outro. Uma vez abordáramos o
assunto e ela confessara-me que mesmo que tivesse motivos para se
separar nunca o faria por causa de mim. Achava que eu merecia uma mãe
e um pai como as outras crianças. Não punha a hipótese de eu
crescer só com um ou só com o outro. Por qualquer motivo, todavia,
eu crescera com a ideia de que algo mais se passava entre eles. Ou de
que nada se passava entre eles, o que era bastante pior. Apesar de
toda a aparência de tranquilidade com que me haviam educado, eu
desconfiava de que nem tudo se resumia ao que os meus olhos viam. E
havia a velha questão de eu considerar que ela pretendia influenciar
o meu futuro. Ela dizia que não, que só queria o meu bem, mas eu
teimava que havia de ser eu a decidir a minha vida.
“Nós
não decidimos coisa nenhuma”, costumava argumentar ela nos tempos
em que tinha forças para isso. “Quando achamos que decidimos é
quando estamos a ser mais influenciados por factores que nos são
alheios. Não te deixes levar pelo engano. Segue o meu conselho…”.
Eu
era implacável na resposta:
“O
que tu queres bem sei. Nem me fales em casar! Deseja-me tudo menos
que eu me encerre na mesma casa com uma pessoa! Não me queiras numa
gaiola, por favor!”
Vivi
anos com este argumento atravessado na garganta. Por isso, não
poderia deixar de aproveitar a ocasião em que ela dizia estar
prestes a morrer para vazar o que me atormentava, sem noção de que
cada argumento que eu brandia lhe tirava um minuto de vida. Nunca me
veio à ideia abraçá-la e manifestar-lhe os meus verdadeiros
sentimentos. Nunca tive à-vontade para isso. O amor que sentia pelos
meus pais foi sempre um amor racional, distante, frio.
Quando
lhe dei a beber o copo de água, a minha mãe praticamente já não
reagia. Tive de ser eu a erguê-la e encostar-lhe o copo aos lábios.
Fi-lo com irritação e apeteceu-me voltar a discutir, apesar de ser
cada vez mais evidente que ela não estava em condições de
ripostar.
Pouco
depois, ela deixou-se cair pesadamente sobre o colchão e virou a
cabeça para o lado, inanimada. Ainda antes de eu ter tempo de
perceber o que se passava, alguém tocou na campainha da porta
exterior. Decidi que aquele não era o momento apropriado para
atender gente de fora.
A
partir dessa altura, é-me difícil relatar com exactidão como as
coisas aconteceram: a minha mãe estava desmaiada, mas, a dado
momento, pareceu-me vê-la despertar, revirar os olhos e desfalecer
de novo. Pouco depois, vi-a estremecer, o que me levou à conclusão
de que se encontrava viva (ainda que eu não colocasse a hipótese de
que pudesse morrer). Toquei-lhe na mão, num braço, no pescoço.
Receei que o calor se lhe estivesse a escoar por todos os poros. Mas
eu achava que isso nada tinha a ver com a morte. Morte era outra
coisa e não aquilo que eu presenciava naquele momento.
Não
me atrevia a pensar. Não queria imaginar o que poderia vir a
acontecer. Só alimentava a esperança de que um milagre – que
milagre? – ocorresse. O milagre de a minha mãe estar apenas
doente, o que significava que melhoraria, ao fim de uns minutos ou
horas.
Sem
perder tempo com muitas cogitações, fui a correr chamar o vizinho
do lado. Não se encontrava em casa. Veio a esposa. Após tomar o
pulso a minha mãe, enfrentou-me com um rosto lívido e disse-me, em
surdina:
“Está
morta”.
Não
tive a certeza de entender o que ela dizia. Pareceu-me vaga a sua
frase, como se proferida numa outra língua. No fundo, recusei-me a
acreditar no significado das suas palavras. “Morta?” Não podia
ser. Ainda há pouco a agarrara e a sentira quente.
“Não
há nada a fazer…”, acrescentou a vizinha, perguntando-me a
seguir se eu precisava de alguma coisa. Supliquei-lhe que não
chamasse a polícia. Eu disse mesmo “polícia”. Apesar de a minha
mãe ter morrido como acabo de descrever aqui.
Pela
expressão de rosto da vizinha, adivinhei que ela não me faria a
vontade e que tinha mesmo intenção de chamar a polícia. A minha
precipitação tê-la-á levado a concluir que era seu dever informar
as autoridades de que qualquer coisa se passara.
Logo
que me vi só, deixei de pensar na polícia, não me contive, não
resisti e envolvi-me em discussão com o cadáver de minha mãe sobre
a velha questão do casamento. Apesar de eu já não poder corrigir
nada do que lhe dissera antes, nem do que lhe dizia naquele instante,
só me apetecia continuar a discutir, barafustar, argumentar, como se
a sua morte fosse um estratagema que ela tivesse engendrado para se
esquivar ao diálogo comigo ou fosse apenas a forma que eu encontrara
para a confrontar com o que eu já não suportava dentro de mim. O
que eu queria era que ela me ouvisse, mais nada. Que me ouvisse,
apenas.
Desatei
a falar pelos cotovelos. Falei como nunca me recordo de ter falado.
Falei, falei, falei, levantei a voz, critiquei-a, repreendi-a,
corrigi-a. Ironizei com a sua vida. E ridicularizei-a. Chorei, mas
limpei as lágrimas logo a seguir, para melhor poder falar e despejar
o que sentia. Quanto maior era o silêncio das respostas de minha
mãe, maior era a veemência das minhas palavras. Agora que ela tinha
partido, eu sentia que tinha todo o direito de não a deixar em paz,
enquanto a minha situação não fosse esclarecida. Se ela quisesse
sossegar, tinha primeiro de acertar contas comigo.
“Estás
a ouvir-me?!”, dizia eu, enfrentando-a, como se precisasse de
verificar com os meus próprios olhos se estava viva ou morta. “Sei
muito bem que estás a ouvir-me!”, insistia, recordando-me de um
médico certa vez me ter dito que os cadáveres mantêm a capacidade
auditiva durante um período aproximado de dez minutos após o último
suspiro, o que me fez dar um tom mais aguerrido à discussão.
Aprofundei
argumentos, rebusquei motivos, protestei por me terem concebido,
zaragateei de todas as formas, ao ponto de nem ter dado pela chegada
da polícia, que a vizinha se apressara em chamar.
Um
dos guardas (eram dois) tentou convencer-me a sair dali, mas vendo
que não conseguia afastar-me do cadáver, pediu auxílio ao outro,
que tentou agarrar-me, sem sucesso. Ameacei ambos e disse que tinha
todo o direito de dizer a minha mãe o que muito bem me apetecesse.
Pediram-me
contenção, ordenaram que falasse mais baixo e concederam-me uns
minutos, antes de poderem tomar conta da ocorrência, saindo
respeitosamente do quarto.
Concordei
em moderar a voz, mas nem por isso deixei de dizer o que tinha a
dizer, sem me importar com o que pudessem pensar:
“Não
está certo teres-me feito desta maneira! Se me querias pôr no
mundo, ao menos tivesses criado alguma coisa de jeito! Não te
ofendas, por favor, só que não posso estar contente com o resultado
da tua obra. Que fazias se estivesses no meu lugar? Foi por eu ser
como sou que te comportaste de forma exemplar pela vida fora? Foi por
isso que nunca me ralhaste, nunca me bateste? Foi por teres pena de
mim?”
Se
não eram estas as minhas palavras eram parecidas. Depois dos anos
que passaram, não consigo reproduzir com exactidão o que disse, até
porque o meu estado de alma não era propriamente o mais equilibrado.
O que sei é que nunca me calei: “Se te digo isto, é porque te
amo. Se te odiasse, virava-te as costas, esquecia-te, ia à minha
vida. Mas o amor não permite que eu te abandone. Sei que agora
queres ficar em paz, mas repara na minha aflição. Faz alguma coisa
por mim. Amaste-me de uma forma que não compreendi. Pensei que os
teus sentimentos não me eram dirigidos, mas a outra pessoa, não
interessa quem. Sei que não te queixas, porque não podes. E mesmo
que pudesses, não o farias. Porque nunca o fizeste mesmo quando
podias. Nunca foste de te queixar. Passou tanto tempo desde que
partiste. Passaram minutos como se fossem anos. Custa-me tanto ver-te
morrer sem teres oportunidade de me contar o que aconteceu para que
eu nascesse assim. Alguma coisa deve ter sucedido. E se alguém o
pode saber és tu. O pai nunca deu grande importância a pormenores.
Para ele, bastava que eu estivesse de saúde. Mas tu, não. Tu sabes
quanto sofri e sabes que nunca me conformei com o que sou. Sabes que
não hei-de morrer sem descobrir o que sucedeu. Nem que dê a volta
ao mundo e nem que te faça dar piruetas no túmulo. Durante os
primeiros anos, foi fácil fingires que não percebias. Mas depois
era impossível não veres. Metia-se pelos olhos dentro. Se os outros
não reparavam, tu tinhas o dever de compreender, de ver, de aceitar.
Tinhas o dever de me explicar, de falar comigo, de me contar tudo.
Mas não o fizeste. Esperaste sempre que fosse eu a resolver o caso.
Por que não me ajudaste? Por que não te abriste comigo? Quando fiz
dezoito anos, deste a entender que eu me devia casar. Sei que nunca o
disseste claramente, mas eu percebia muito bem onde querias chegar.
Casamento!, casamento!, não conseguiste fugir à norma das
instituições. Não achas que mais importante do que casar era eu
estar bem comigo?”
Ajoelhei-me
junto da cama, agarrei a mão gelada da minha mãe e pus-me a rezar,
já sem me recordar das preces, nem do pai-nosso nem da ave-maria.
Balbuciei partes do acto de contrição e em seguida pus-me a falar
directamente com Deus, de forma espontânea, pedindo-lhe que me desse
luz, que me desse coragem para encarar a realidade, que me desse
força para resistir ao dia de amanhã.
“Não
sei o que fazer…, não sei que caminho seguir…”, desabafei, num
murmúrio, enquanto senti um ligeiro afrouxamento da mão de minha
mãe, como se ela tivesse estado a ouvir-me até àquele momento,
levada pelo sopro ardente das minhas palavras.
30
Não
sei se Rute pressentiu que eu necessitava da sua presença, mas foi
ela quem me entrou em casa, quando eu já esperava pela ambulância
há cerca de três horas.
Vinha
calma e sorridente, luminosa, superiormente bela, como se o tempo em
que esteve afastada de mim tivesse aperfeiçoado a matéria
espiritual de que era composta.
Ela
não fazia a mínima ideia do meu estado de saúde. Nem me apressei a
informá-la. Apeteceu-me recriminá-la por tantos dias de ausência,
mas ao vê-la mais atraente do que nunca, perdi a coragem, embora eu
não duvidasse de que ela devia ter tido alguma razão para andar
sumida. Mas era essa “alguma razão” que me inquietava, me
afligia, me perturbava mais do que todos os motivos que me pudessem
ocorrer. Era uma espécie de ciúme que me devorava, embora eu
soubesse que não tinha o direito de o sentir. Não tinha o direito,
mas sentia-o como uma escavadora implacável abrindo-me cavernas na
alma.
Não
lhe pedi contas, como é óbvio, embora dificilmente conseguisse
controlar a vontade de o fazer. Mas eu tinha a convicção de que ela
acabaria por me revelar o motivo do seu afastamento.
–
Teve saudades
minhas? – perguntou, com malícia, puxando-me pela língua.
Sem
ânimo para lhe responder à letra, virei-lhe a cara e fiquei à
espera da sua reacção.
Após
um breve compasso de espera, Rute deu uns passos na direcção do
lado da cama para onde eu me voltara, debruçou-se sobre o colchão e
afagou-me a roupa sobre um dos pés. Por instantes, permanecemos em
silêncio, remoendo sentimentos desencontrados.
–
Está doente? –
insistiu ela, na tentativa de me levar a reagir.
Ante
a continuação da minha mudez, fez uma breve pausa e, depois,
conforme eu previra, contou-me que tivera de ir a um congresso médico
em França, explicando que nada me dissera porque decidira a viagem
em cima da hora.
As
suas palavras tiveram o condão de me serenar. Por maior que fosse o
meu ressentimento, eu não tinha outro remédio senão aceitar os
seus esclarecimentos, embora me esforçasse em não lhes dar réplica
imediata. Era um princípio que eu seguia com escrúpulo. Primeiro,
deixava que os argumentos de Rute me penetrassem nas veias, na
sensibilidade, na razão, e só depois manifestava alguma abertura ao
diálogo. Ela já me conhecia suficientemente para saber esperar pela
ocasião em que eu poria o amuo para trás das costas. Rute não
precisava de ser paciente para conseguir o que queria. A segurança
que denotava em todos os momentos era a trave mestra dos objectivos
que alcançava.
Estava
na minha vez de demonstrar algum espírito de cooperação:
–
Se aparecer por aí
alguma ambulância, diga-lhes que já não preciso – pedi, ao mesmo
tempo que aproveitava para a pôr ao corrente do que se passava
comigo.
Ao
ouvir as minhas palavras, Rute fez estremecer a cama sob um repentino
nervosismo, levantando-se prontamente e debruçando-se na minha
direcção, ansiosa por saber o que acontecera, se já estava mesmo
bem, o que sentira eu, como fora e não fora, porque não pedira
auxílio a alguém…
Respondi-lhe
que estivera sempre à espera de que a ambulância chegasse a todo o
instante e que acabara por me ir sentindo melhor.
–
Se foi alguma coisa,
já passou… – expliquei.
–
…De qualquer
maneira, a ambulância não pode ter uma demora destas! – comentou
ela. – É uma irresponsabilidade. Podia ter-lhe dado alguma coisa.
Na sua idade, todos os cuidados são poucos.
Quis
saber de novo se eu me sentia bem, indiscutivelmente bem, se desejava
um copo de água ou de leite, se estava em condições de ir ao
hospital, tudo isto enquanto me auscultava, media a tensão arterial,
observava a língua, a garganta, os olhos. Depois de concluir a
inspecção, pareceu ficar mais tranquila.
–
Acho que é melhor
irmos ao hospital – disse. – Por uma questão de segurança. Vai
só fazer alguns exames. Podemos ir no meu carro. Deve ter havido um
equívoco qualquer com a ambulância. Isto não passará em claro.
Informarei a direcção sobre o sucedido. Uma situação destas não
se pode repetir.
Rute
estava pronta para sair. Pediu que eu me vestisse para ir com ela.
Apesar de não me apetecer sair da cama, eu achava que um passeio,
mesmo ao hospital, serviria para me descontrair. Pela primeira vez
desde que nos conhecíamos, pedi a Rute que depois dos exames
clínicos fôssemos dar uma volta a qualquer sítio. Ela aceitou a
minha proposta com um sorriso de satisfação, deixando no ar a ideia
de que a minha sugestão só pecava por vir atrasada...
Cerca
de quinze minutos depois, dávamos entrada nos serviços de urgência.
Atenderam-me com relativa celeridade, como se sentissem na obrigação
de me compensar pela demora da ambulância.
Tive
sempre a companhia de Rute, que não se eximiu de dar informações
aos colegas sobre o meu historial clínico. Dispensaram-me das
observações básicas na convicção de que Rute já as havia
efectuado, mas submeteram-me a electrocardiogramas,
electroencefalogramas e outras banalidades do género.
Após
quase uma hora de atendimento, entre perguntas e testes, acharam que
eu podia regressar a casa em tranquilidade.
Quando
não teve dúvidas de que eu me encontrava fora de perigo, Rute foi a
primeira a lembrar o passeio que eu lhe pedira. Só não corremos
para o carro, porque eu tinha manifestas dificuldades de locomoção.
Com
o amparo do braço dela, senti-me às portas do paraíso. E, no
carro, senti-me nas mãos de Deus. Deve ter sido um dos dias mais
felizes da minha vida. Se não o era, parecia sê-lo e a ilusão de o
ser já me bastava. A ilusão de o ser não passava da liberdade que
sentia ao lado de Rute, por entre o dia claro e aberto, depois de me
ter sentido às portas da morte, sem vivalma que me socorresse. Rute
voltara a salvar-me, até parecendo que a ambulância se negara a vir
em meu auxílio só para que eu tivesse o privilégio de receber a
especial ajuda dela, a especial atenção dela, o especial carinho
dela.
Um
dos motivos por que eu apreciava a presença de Rute tinha a ver com
a flexibilidade do nosso relacionamento. Em poucos minutos, podíamos
ser tudo, representar tudo, experimentar tudo, discutir tudo,
saltando de um tema para outro, sem receio de cair no ridículo, na
falta de nexo ou de oportunidade.
Nunca
fazíamos ideia em que assuntos nos embrenharíamos, mas tínhamos a
certeza de que manteríamos sempre uma conversa empolgante e
inesquecível. Era a nossa história… o nosso código genético a
funcionar.
O
dia estava transparente, magnífico, como a face de Rute.
–
Não tem nenhum
doente para visitar? – perguntei, como se não pudesse acreditar
que ela estivesse completamente disponível para mim.
Rute
fez um “não” subtil com a cabeça, mas eu realcei que podia
muito bem ficar no carro à espera de que ela desse uma saltada a
casa de alguém. Não me importava de a perder por uns minutos, desde
que tivesse a certeza de que ela voltaria para a minha beira. Até
achava que a privação dela por um curto espaço de tempo era uma
forma de a ter mais perto. Durante os breves instantes que tivesse de
ficar a sós, eu viajaria mentalmente por todos os cantos e becos que
preenchiam os anos do nosso conhecimento, não me restando dúvidas
de que a recordação do percurso que fizéramos reforçaria os
sentimentos que eu nutria por ela. Eu só queria pensar nela porque
esta era a forma que eu tinha de a possuir. Tanto me fazia que Rute
estivesse, ou não, ao meu lado. Não me custava suportar a sua
ausência. Apenas me afligia não saber se ela voltava, não saber do
seu paradeiro, não saber se me seria possível voltar a estar com
ela. Desde que eu não duvidasse do seu regresso, era-me indiferente
não vê-la por uma semana, um mês, ou um ano. Eu era capaz de
esperar por Rute dentro do carro por quantas horas ou décadas fossem
necessárias. Bastava sentir que estava no carro dela, no assento ao
lado do qual ela me conduziria por ruas e estradas que realizariam os
meus sonhos.
–
Hoje, sou toda sua –
afirmou, fixando-me nos olhos, enquanto esperava pelo verde de um
semáforo, não restando dúvidas de que aquela era uma forma de me
compensar pelo tempo em que eu não tivera oportunidade de a ver.
Não
lhe agradeci, mas senti-me bem interiormente, por ser alvo de todas
as suas graças.
Rute
conduziu o carro para fora da cidade, calmamente, sem ânsias, sem
pressas, enquanto íamos debicando conversa aqui, conversa acolá.
Faltava-nos o hábito de dialogar no meio de tanto movimento e
azáfama. Fazia-me alguma impressão estar num carro que deslizava
por entre tantos outros carros.
–
Quando estamos
parados num sítio – disse eu. – É como se o diálogo fosse o
único acontecimento possível. Em andamento, nunca sabemos o que
está a acontecer à nossa volta, ou o que pode vir a acontecer, o
que nos obriga a dispersar a atenção.
–
Eu sinto o mesmo –
replicou Rute. – Andar na rua dá-me a sensação de estar a falar
com várias pessoas ao mesmo tempo. Mas não creio que isso aconteça
por causa do movimento. Se estou numa esplanada a conversar, sinto o
mesmo. Ou se estou em casa de alguém com miúdos a correr de um lado
para o outro.
Rute
tinha plena razão no que dizia. Mas eu considerava que em andamento
as condições para o diálogo eram ainda mais precárias. E tentei
explicar o meu ponto de vista com base no pressuposto de que o
movimento nos proporcionava o contacto com um número bastante maior
de situações. Numa esplanada, por exemplo, passavam por nós,
cinquenta ou sem pessoas num determinado período de tempo, ao passo
que num automóvel podiam passar centenas ou milhares, o que
dificultava bastante mais a concentração, uma vez que não se pode
ser indiferente ao que nos rodeia. Cada carro que passava por nós,
numa ou noutra direcção, obrigava-me a pensar no que pensaria quem
ia nele.
–
É uma questão de
concentração – disse Rute.
–
Poderemos aproveitar
este passeio para uma conversa mais ligeira, ou então, se não
quisermos perder o fio às palavras, havemos de parar aí num canto
qualquer. É estranho não poder encontrar os seus olhos enquanto
conversamos… – um comentário que a levou a sorrir, como se
tivesse acabado de ouvir um formidável galanteio.
Eu
não fazia ideia por onde andávamos naquele momento. Não me
interessava. O importante era andar pelo mundo com Rute a meu lado.
Há bastante tempo que eu não andava na rua, o que me deixava com
uma impressão nova dos lugares por onde passava e das coisas com que
me deparava. Eu nem parecia fazer parte daquele tempo e daquele
lugar.
Como
já praticamente não tinha amigos (Raimundo e Rute eram a excepção),
eu podia mesmo sentir que Rute me estava a levar para um mundo novo.
O mundo dela, das suas esquinas, sombras de edifícios, cafés, mesas
sob guarda-sóis ao ar livre, monumentos, rostos vagos, museus,
cinemas, tudo o que fazia da sua sensibilidade um cálice erguido
acima dos olhos.
–
Quer jantar hoje
comigo? – perguntou ela, deixando-me sem resposta imediata. E para
me fazer voltar à realidade: – Conheço um restaurante agradável,
fora da cidade…
Foi
tal a emoção que aquele convite despertou em mim que não tive
alento nem voz para agradecer. Limitei-me a fazer um gesto de mãos,
aceitando a proposta.
Mas
antes parámos num sítio à beira-mar. Estacionámos o carro numa
berma elevada e pusemo-nos a admirar as ondas. Ao lado de Rute, as
coisas faziam mais sentido e tinham um alcance mais vasto.
–
Melhor do que isto,
só um bom momento de intimidade… – disse eu, convidando-a a
aprofundar um diálogo que naquele dia ainda não tivera grandes
oportunidades de se manifestar. Mas Rute nem me deu ouvidos. Estava
completamente absorta pelo mar, como se enfeitiçada.
Deixei-a
ao sabor das suas reflexões e embrenhei-me nas minhas, recordando os
tempos de infância.
Havia
um homem que tinha o hábito de me esperar na praia, como se
adivinhasse os meus passos, e que se disponibilizava para me ensinar
a nadar. Eu teria uns nove ou dez anos e já dava umas braçadas. Mas
ele insistia em ensinar-me esta e aquela técnica. Sugeria que me
estendesse na água e punha a sua mão por baixo da minha barriga,
para me ajudar a flutuar. Eu fazia-lhe a vontade, mas ansiava por me
ver livre dele. Havia qualquer coisa no seu aspecto que não me
transmitia segurança. Talvez as mãos grossas, que em nada pareciam
adequadas ao ensino da natação.
A
certa altura, aquela lembrança antiga envolveu-me de tal modo que me
virei para Rute e lhe perguntei se em criança tivera algum professor
de natação.
A
resposta foi a que eu esperava:
–
Não. Aprendi
sozinha.
Foi
como se, de repente, eu tivesse regressado de um planeta distante.
Afinal, Rute estava a meu lado e não tivera professor de natação.
Senti a descompressão agitar-me as células e disse a Rute que
talvez pudéssemos ir andando para o restaurante.
Ela
pareceu surpreendida com a minha sugestão, mas não fez perguntas.
Limitou-se a dar a volta à chave na ignição e prosseguir viagem.
Uns metros adiante já tinha desaparecido a recordação do homem que
me ensinara a nadar na infância. Nem parecia que tínhamos parado a
contemplar as ondas durante mais de um quarto de hora.
Logo
que entrámos no restaurante, senti que Rute acertara em cheio na
escolha. O ambiente era calmo, pouco iluminado, fresco, só deixando
os ruídos mínimos pairando no ar.
Depois
de nos sentarmos, confirmei que, para além de nós, não havia
praticamente outras pessoas na sala. Escusado será dizer que, agora
que estava de frente para Rute, me dispus a passar o máximo de tempo
de olhos fixos nela. Era uma das poucas ocasiões que tinha para o
fazer. Em casa, quando ela me visitava, só lhe apanhava os olhos
pontualmente, porque ela ou ia à cozinha, ou à janela, ou se
sentava de lado para mim, ou se ocupava com qualquer outra coisa.
Quando ria, olhava para as paredes, para um quadro, para o tecto da
casa e, se me fixava nos olhos, era de relance, por um tão breve
período de tempo que eu quase preferia que ela desse atenção a
outra coisa.
O
riso tornava Rute excepcionalmente bonita, mas isso não queria dizer
que eu apreciasse sobremaneira os momentos em que ela manifestava a
sua alegria. O riso de Rute aumentava a minha solidão porque,
geralmente, eu não ria da mesma forma nem encontrava motivos para
isso. A sua alegria não me contagiava. Só fazia dela o ser mais
apetecível à face da Terra. Eu murchava, ao deparar-me com um tal
fulgor, um tal poder, uma tal liberdade.
O
que me fazia sentir bem era olhá-la nos olhos, como tinha
oportunidade de fazer agora no restaurante, e conversar com ela de
forma séria e profunda.
Não
me parecia que o prazer íntimo viesse a ser um dos nossos temas de
conversa naquele dia de descontracção, mas nada nos impedia de
abordar o assunto de forma criativa, camuflada, encoberta. As
metáforas existiam com algum fim. Todavia, Rute não estava virada
para aí. Era óbvio que não tínhamos o hábito de conviver e
dialogar fora de casa. Faltava-nos à vontade, traquejo, rotina.
Íamos
já a meio da refeição quando dei pela presença de Raimundo, por
entre pouco mais de meia dúzia de pessoas que haviam entrado no
restaurante depois de nós. Raimundo estava só, sentado a algumas
mesas de distância, e tinha o rosto enfiado no prato, como se por
todos os meios procurasse não ser visto.
Acenei-lhe,
cumprimentei-o de longe, fiz-lhe sinal para que me permitisse
apresentar-lhe Rute, mas ele fingiu não me ver, voltando-se
ostensivamente para o lado oposto.
Não
me restaram dúvidas de que Raimundo tinha entrado e ocupado um lugar
à mesa sem se dar conta de que eu ali estava na companhia de Rute,
caso contrário teria abandonado imediatamente o restaurante. Terá
dado por nós já depois de se ter sentado e trocado algumas palavras
com o empregado, o que terá sido suficiente para o inibir de se
levantar e se ir embora.
Raimundo
ingeriu a refeição a toda a pressa, como se tivesse alguém por
trás dele apontando-lhe uma faca às costas. Via-se que comia
nervosamente, quase prescindindo de mastigar os alimentos. A posição
das suas pernas fazia lembrar as de um atleta nos segundos antes do
disparo que marcava o início de uma corrida de cem metros.
A
fim de queimar os últimos instantes sem que eu tivesse oportunidade
de me dirigir à sua mesa, Raimundo afastou a cadeira, levantou-se e
dirigiu-se aos lavabos. No regresso, para não dar de caras comigo,
voltou a meter conversa com o empregado e veio recuando de costas até
à sua mesa, de onde se encaminhou para a porta de saída,
cumprimentando-me de longe com um dos braços erguidos, para que eu
não pudesse mais tarde acusá-lo de me ter ignorado.
Rute
notou que algo se passava. Era impossível não ver a minha cara de
atrapalhação, olhando em volta, sem perceber o comportamento de
Raimundo e sem conseguir captar-lhe a atenção. Nunca mais me
concentrei na conversa com ela. Desde há muito que tinha intenção
de lhe apresentar Raimundo e nunca pensei que alguma vez se me
deparasse um momento tão propício como aquele. Raimundo, porém,
esquivara-se habilidosamente, como se tivesse adivinhado a minha
intenção.
Tenho
a certeza de que ele só se escapulira porque notara que havia alguém
a fazer-me companhia. Aposto que nem teve tempo para reparar se Rute
era bonita ou feia. Calculo que teria reagido sempre daquela forma
independentemente do aspecto ou da condição da pessoa com quem eu
me encontrasse. Raimundo ter-me-á evitado porque não se sentia
à-vontade comigo na presença de terceiros. Não saberia o que
dizer-me ou como tratar-me. Ficava visivelmente nervoso, deixando no
ar a ideia de que eu era o seu pior inimigo ou de que a nossa amizade
era exclusiva, fechada, autista.
Contei
a Rute o procedimento de Raimundo, mas não me pareceu que ela
tivesse dado importância ao ocorrido. Nunca pensei que o ritmo
exterior do dia a dia influenciasse de tal forma o meu relacionamento
com ela. Fora de casa, parecíamos dois peixes tirados do aquário. O
passeio à beira-mar resultara num silêncio inexplicavelmente
incómodo e a ida ao restaurante fora dominada pelo absurdo
comportamento de Raimundo.
Rute
deixou-me em casa por volta das dez da noite. Disse que voltaria no
dia seguinte e despediu-se com um beijo no canto da minha boca, o que
me alimentou a desconfiança de que ela continuava a querer
compensar-me de alguma coisa. Eu não tinha razões para desconfiar
de Rute, nem o que nos unia justificava uma tal postura, mas não
conseguia viver de outra maneira ao lado de uma mulher com o seu
poder de sedução. Quanto menos razões tinha para desconfiar, maior
era a minha inquietação.
Entrei
em casa, sabendo que me restava pouco tempo. Havia coisas que eu
ainda queria escrever. O melhor era não dormir e despachar tudo.
31
Estou
a ver Rita, em criança, quando saíamos a passear. Mal chegávamos à
rua, punha-se a procurar cães vadios com os olhos a saltitar em
todas as direcções. Eu dava-lhe beijos atrás de beijos porque
gostava de a ver livre, porque a entendia e a amava. Sempre foi
assim. E sempre há-de ser. Hei-de sempre encher Rita de beijos,
mesmo que a não volte a ver.
Aos
cinco, seis, doze anos de idade, Rita só pensava em cães vadios,
sobretudo quando andávamos fora de casa. Nunca a conheci diferente.
Não se interessava especialmente por animais bem cuidados, ordeiros,
cães que tivessem dono. Era como se percebesse que estes já tinham
tudo e que os outros, os vadios, é que careciam de mimos e atenção.
Para ela, os vadios eram donos do mundo porque nada tinham. Eram tão
livres que só podiam mandar nas ruas. E, na verdade, assim era. Nas
ruas, mandavam os vadios. Os outros limitavam-se a seguir os passos
dos proprietários que os conduziam pela trela. Sentiam-se obrigados
a obedecer.
Rita
dizia-me que não gostava de cães atrelados. Gostava, sim, dos
livres, dos rebeldes, dos famintos. Ela percebia que a fome os levava
a liderar, a combater, a trabalhar pelo seu próprio sustento. Rita
tinha os genes da aventura a empurrá-la desde criança. Entendia a
solidão de uma forma especial. Entendia-a porque era ela mesma uma
solitária. Solitária, ao que sei, desde o momento em que surgira à
minha porta. E o facto de eu a ter recebido em casa não significava
que a sua solidão tivesse terminado. Como não significa que tivesse
começado quando a conheci. Os maiores solitários são os que, não
tendo ninguém, recebem apoio e acolhimento. Porque sentem mais a
dor, sentem mais a condição em que caíram. O acolhimento fá-los
perceber, a cada instante, a situação desprezível a que se
encontram votados. Por isso, muitos sem abrigo preferem viver
sozinhos na rua a serem recolhidos por alguma instituição. Vivendo
sozinhos, têm o mundo como ponto de referência. Esquecem. O
esquecimento é uma das funções vitais da liberdade. E a liberdade
é o poder maior que se pode alcançar. É todo o poder. O poder do
cão vadio.
Rita
parecia entender a solidão dos animais urbanos. O que a atraía era,
sem dúvida, a sua liberdade, o seu abandono, o seu desinteresse pela
posse de qualquer bem que não estivesse relacionado com a
necessidade de sobrevivência imediata.
A
saúde dela preocupava-me pela forma como lidava com os cães que
encontrava ao deus dará. Eu avisava-a dos perigos, mas ela não
ligava.
“Posso
mexer só com um dedinho?...”, perguntava, hesitante. “Está bem,
mas a seguir vais lavar as mãos”, respondia-lhe eu. “Prometo
lavar as mãos depois…”.
E
lá se acocorava ela, junto ao bicho, lá se aproximava de mansinho,
olhando-me, com necessidade de confirmar a autorização para o seu
gesto. Estendia a mãozita e tocava-lhe no focinho.
“Posso
levá-lo para casa?”, insistia. Eu já estava à espera da pergunta
e respondia de forma peremptória, embora com um enorme peso na
consciência:
“Não,
Rita, nós já temos o Emanuel. Achas que ele ia gostar de ver o seu
espaço invadido por um estranho? Havia de ficar com ciúmes e
zangar-se. Tenho a certeza de que não gostarias de os ver brigar”.
Ela
ouvia falar em brigas e cedia aos meus argumentos. Para Rita, era
essencial não haver discussões, guerras, desentendimentos.
Não
sei o que lhe terá acontecido para justificar a sua grande aversão
à discórdia. Mas imagino que a família com que passou os primeiros
tempos de vida a marcou decisivamente. Muitas vezes pensei se ela não
terá fugido de qualquer situação macabra, qualquer ódio insano e
descontrolado, qualquer violência, qualquer ameaça indomável e
permanente.
Há
bastantes anos, ouvi falar num homem que disparou sobre a mulher e
logo a seguir sobre si mesmo. Ao encontrá-los mortos na cama, no
meio de uma enorme poça de sangue, a filha desatou a correr aos
gritos pela rua, em busca de auxílio para a sua dor.
Quando
Rita me apareceu à porta, já haviam passado meses sobre esta
tragédia, o que fez que eu não relacionasse uma coisa e outra. E,
se calhar, não existe qualquer relação entre o crime e o
aparecimento de Rita. Eu é que sempre tive um pressentimento, uma
desconfiança.
Podia
ter perguntado, ter tentado apurar a verdade, nem que fosse junto da
vizinhança, mas não tive coragem. Receava que fosse um simples
equívoco da minha parte e não quis correr o risco de a perder. E
também receava vir a descobrir que Rita fora exposta a tamanho
choque. Não sei como teria procedido se ela fosse a criança que
descobriu os pais baleados sobre os lençóis onde fora concebida.
Talvez me fosse demasiado difícil lidar com a situação, com o
perfil psicológico de Rita. Talvez o terror de não ser capaz de a
compreender me reduzisse a um estado vegetal. Para fugir a este medo,
preferi não saber a verdade, preferi a escuridão do passado, apesar
da consciência de que isso poderia significar a impossibilidade de
eu vir a legalizar a sua adopção.
Coloquei
a hipótese de, um dia, ela me contar o que lhe acontecera. Se é que
lhe acontecera alguma coisa. O que me parecia é que uma criança não
se senta à porta de um prédio qualquer e se deixa recolher sem
motivo, sem trauma, sem morte. Rita nunca me contou o que lhe
sucedera e eu limitei-me a ver passar os anos sobre a memória do seu
crescimento.
Sempre
me arrepiou a sua atitude de contenção e obediência quando eu
falava na eventualidade de brigas e discussões entre pessoas ou
animais, ao ponto de a partir de certa altura eu ter deixado de usar
esse argumento, só para não correr o risco de lhe reavivar alguma
dor antiga.
Rita
era o meu segredo. Um segredo tão grande e avassalador que acabei
por nunca encontrar paz dentro de mim. O passado de Rita, que nunca
fiz por desvendar, pode esconder os motivos pelos quais ela me
abandonou.
Não
me admiraria que ela própria tenha estranhado o meu aparente
desinteresse pela sua história, o que lhe poderá ter alimentado a
ideia de que eu não a amava suficientemente. Se assim foi, ficam
esclarecidos os motivos por que me deixou.
Para
Rita, posso não ter passado de alguém que, por caridade, lhe deu
alojamento durante uns anos. E quando chegou a hora de partir, ela
terá achado que eu não me importaria se ela deixasse alguma coisa
por justificar ou por agradecer.
Desapareceu
sem avisar, tal como doze anos antes tinha aparecido sem se fazer
anunciar. Foi uma maneira de evitar embaraços, lágrimas. Terá
suspeitado de que eu poria entraves à sua decisão e receou que nos
desentendêssemos.
Rita
fazia tudo por um relacionamento harmónico com as pessoas e os
animais. Quando eu lhe acenava com a hipótese de Emanuel não
aceitar o cão vadio que ela pretendia levar para casa, ela cedia,
obedecia, sentava-se no chão, deixando-se ficar por ali, quase
hipnotizada, ao lado do bicho. Falava com ele, mirava-o, reflectia,
compreendendo-o através do brilho dos olhos baços.
Mesmo
que estivesse num parque infantil com cinquenta baloiços e duzentos
escorregadouros, Rita só dava atenção aos cães. E se estivesse
acompanhada por amigos e colegas de escola não descansaria enquanto
não os conduzisse para junto dos cães vadios, insistindo para que
convencessem os pais a levarem-nos para casa.
“Eles
não têm dono!”, dizia ela aos colegas, aos gritos e pulos.
“Passam fome e não sabem onde dormir à noite. Peçam autorização
para ficarem com eles. Mas não os prendam, deixem-nos andar por onde
quiserem. Dêem-lhes só abrigo quando chover e comida quando
estiverem com fome”. Era a maneira que ela encontrava de conciliar
as perspectivas da liberdade e do conforto. Rita corava de excitação
enquanto incitava os colegas, exprimindo-se com uma convicção e
tenacidade fora do comum.
Sentava-se
ao lado dos cães e dali não saía. Punha as mãozitas cruzadas
sobre o regaço e deixava-se ficar em silêncio, durante horas, se eu
o permitisse. Era como se pertencessem ao mesmo mundo, era como se
ela já tivesse passado pela experiência de vida dos cães vadios e
desse o real valor ao que sofriam para comer, para se abrigar do
frio, sem uma mão amiga que os acarinhasse, embora ela não
duvidasse de que essa falta de uma mão amiga era a fonte de todo o
seu poder. Ela percebia que os animais só tinham a ganhar com a
liberdade, mas o seu instinto protector não deixava de a comover com
a situação de penúria e miséria em que a maioria sobrevivia.
Rita
sabia que a maior fome dos cães vadios era fome de carinho. Por
isso, não se cansava de os acariciar no focinho, na cabeça, nas
pálpebras, levando-os a fechar os olhos de prazer, como se há anos
ninguém lhes fizesse uma festa, como se há anos ninguém se
detivesse na rua – por um instante que fosse – para os olhar, ao
menos, para lhes passar a mão sobre o pêlo áspero e sujo.
“Cuidado!,
não metas as mãos na boca depois de tocares no cão”, dizia-lhe
eu, quando me parecia que ela estava a ir longe demais, explicando
que ele estava sujo, que podia estar doente.
“Não
está doente nada!”, replicava ela com veemência. E logo a seguir,
inquiria: “Achas que vai morrer?”
Eu
respondia que não, assegurava-lhe que o cão não morreria,
realçando que até tinha mais hipóteses de sobreviver do que os
outros, os domésticos, porque era mais forte, estava habituado a
enfrentar contrariedades e situações perigosas.
“Porque
não posso levá-lo para casa?”, perguntava ela, de novo, na
esperança de que eu já me tivesse esquecido do argumento com que
anteriormente a demovera. E sem dar tempo que eu me repetisse nas
justificações, ela contra atacava: “Se é mais forte do que os
outros, por que não podemos levá-lo para casa? Depois de lavado,
ficaria limpo e cheiroso…”.
Eu
esclarecia que ele só era forte porque vivia na rua, se fosse levado
para casa, tornar-se-ia fraco e dependente. Olhava para ela e tentava
abstrair-me da sua insistência, tentava imaginá-la adolescente,
jovem, adulta. Por mais que recorresse à imaginação, tinha
dificuldade em vê-la crescida, autónoma, madura. Não conseguia
imaginar o seu futuro porque não tinha luzes do seu passado.
A
prova de que nunca fui capaz de adivinhar o futuro (nem o passado) de
Rita foi a sua fuga, o seu desaparecimento. Nunca pensei que ela o
fizesse. Às vezes, chego a especular que ela não me terá deixado,
apenas se terá limitado a seguir os passos de algum cão vadio.
Nunca
a pressionei, nunca a condicionei, nunca a obriguei a nada, sempre
lhe expliquei os motivos por que às vezes não lhe fazia as
vontades. E ela aceitava o que eu lhe dizia. Mesmo quando queria
levar para casa dois, três ou quatro cães vadios e eu a
contrariava, ela acabava por entender as minhas razões.
“Podes
contar uma história ao cãozinho?”, pedia-me ela.
“Oh
Rita, não gosto de fazer figuras parvas no meio da rua”, dizia eu.
“Baixinho…,
só uma história”, intercedia ela, como se não quisesse ir-se
embora sem deixar algum conforto ao animal, nem que fosse uma simples
história de embalar para quando a noite chegasse e não tivesse onde
reclinar a cabeça.
Rita
sabia que o cão vadio se havia de lembrar dela na escuridão das
estrelas e lá por dentro lhe havia de sorrir com o seu focinho
nojento e boca desdentada, prometendo-lhe sonhos e alegrias para
aquela noite.
Eu
lá cedia e contava uma história ao bicho, que parecia acompanhar as
minhas palavras com uma atenção maior do que a dos humanos,
incluindo a da própria Rita, que mal eu me punha a dar asas à
imaginação se evadia dali e não ouvia nada, nem que fosse para que
o prazer da história recaísse inteiro sobre o cão.
À
medida que eu me aproximava do fim da narrativa, o bicho parecia
adivinhar a minha intenção de não a prolongar por muito mais tempo
e deixava-se cair para o lado, recostava-se no chão, semicerrava os
olhos sonolentos, confortado interiormente pelo eco das palavras que
eu proferia.
“Está
a dormir, vês?”, dizia Rita, mirando-me com olhos espantados. E
não muito tempo depois, notando um aligeiramento da minha atenção
sobre os seus movimentos (era a minha vez de me evadir…) Rita não
hesitava em deitar-se ao lado do cão, enrolando-se sobre a poeira,
pedaços de plástico e beatas, aninhando-se, sujando a roupa, com a
cabecita deitada sobre um dos braços.
Nessas
alturas, eu exaltava-me, ralhava-lhe, dizia-lhe que corria o risco de
adoecer, ordenava-lhe que se levantasse imediatamente.
“Isto
não se faz!”, vincava eu.
“Mas
tu disseste que o cãozinho não fica doente. Não sejas ‘ingoísta’!”
“Ingoísta”
era uma palavra que, por volta dos cinco ou seis anos de idade, ela
usava arbitrariamente sempre que eu não lhe fazia a vontade. Sabia
que eu não gostava do termo, não estava convencida de o saber usar
correctamente, mas não tinha dúvidas de que era uma das suas armas
mais fortes no confronto comigo. Porque eu nunca me cansava de lhe
dizer que não quisesse tudo só para ela e partilhasse as suas
coisas com os outros. Quando ela me chamava “ingoísta” eu não
conseguia evitar uma expressão de repentino e profundo incómodo,
que se misturava com uma brusca e disparatada vontade de rir. As duas
forças deviam deixar-me com um ar desastrado e confuso.
“Vamos
já embora!”, dizia eu, com autoridade fingidamente convicta, única
postura que me permitia ultrapassar com sucesso o efeito perverso do
termo “ingoísta”.
Um
dia, vínhamos para casa de carro, ainda sob o efeito de um amuo por
causa de um episódio de cães vadios, quando ela me disparou do
assento traseiro:
“Por
que é que os passarinhos não têm casa de banho?”
Por
momentos, pensei que ela estivesse a pensar em alguma história que
lhe tivessem contado na escola ou que estivesse apenas a provocar-me.
Não percebi a rápida mudança dos cães vadios para os pássaros.
Mas durante os poucos segundos de dúvida que a sua pergunta me
provocou, dei-me conta de que um excremento de pássaro acabara de
bater contra o vidro da frente do automóvel.
O
seguimento da conversa foi sobre a falta de equipamentos sanitários
nas florestas. Eu explicava-lhe como era e como não era e ela só
dizia:
“Oh…
oh… coitadinhos, fazem cocó ao frio na floresta! E quem lhes limpa
o rabinho?”
A
conversa não parava. Logo que chegava a casa, eu procurava
descansar, refugiando-me no lavatório, o lugar mais propício à
evasão, apesar de Rita sempre se ter habituado a entrar e sair,
brincar e fazer incessantes perguntas quando eu precisava de
privacidade. Pedia-lhe que me deixasse só, mas ela argumentava com o
medo, dizia que tinha visto uma aranha não sei quê, uma centopeia
na parede.
Eu
detectava nos seus olhos que ela compreendia a minha necessidade de
reclusão, mas também notava que o seu impulso para estar comigo era
superior a todas as necessidades. Trazia os brinquedos para a casa de
banho e entretinha-se, espalhando bonecos pelo chão, simulando ser a
mãe de um coelho de peluche, falando sozinha, representando,
ordenando, repreendendo.
Se
eu demorava muito tempo a defecar, ou se não dava importância aos
seus inventos e traquinices, ela aborrecia-se e pedia que eu me
despachasse: “Nunca mais sais daí? Vem brincar comigo! Estou farta
de esperar por ti. Vai lá…, deixa o resto para amanhã”.
32
Rute
entrou-me em casa logo pela manhã. Entrou, olhou-me e disse que
voltaria em menos de uma hora. Apesar de as forças me começarem a
faltar, depois de uma noite em que praticamente não parara de tomar
notas, escrever, corrigir e acertar pormenores, apressei-me a
concluir o último capítulo sobre Raimundo. O meu tempo era cada vez
mais escasso. Rute poderia não estar a ser inocente quando afirmara
que regressaria dali a menos de uma hora. O último capítulo sobre
Raimundo tinha a ver com o Natal, que era a época do ano em que ele
mais se isolava.
Mal
se entrava em Dezembro, tornava-se outro homem. Começava logo a
pensar no que estava para trás, no que lhe havia acontecido em vida.
Quanto maior esforço fizesse para não recordar, mais recordava. As
lembranças no mês de Natal eram o seu inferno. Durante o resto do
ano, com a dedicação ao trabalho, conseguia iludi-las, esquecê-las,
amenizá-las. Em Dezembro, não. Em Dezembro, Raimundo mal conseguia
encarar as pessoas na rua. Olhava-as e ficava com a impressão de que
lhes tinha acontecido alguma tragédia. E tinha. Raimundo não
duvidava do que via. Cada um passeava os seus dramas nos centros
comerciais, nas praças, nas lojas, nas igrejas, nos cafés. No mês
de Dezembro, os pesos eram maiores, mais vincados, mais visíveis.
Cada passo, cada gesto, era uma dor que crescia, uma aflição que se
manifestava, um sonho que desabava. Dezembro era o mês de todas as
desilusões. Com o Natal, morriam todos os anos as últimas
esperanças de muita gente, as esperanças dos que acreditavam (as
esperanças dos outros tinham morrido há muito).
Em
Dezembro, quando ia na rua e ouvia as melodias de Natal nas esquinas
e portas das lojas, Raimundo sentia-se gelar. Se já era um solitário
durante o resto do ano, em Dezembro esse sentimento era bastante mais
acentuado. Procurava alhear-se das vidas alheias, mas não era capaz.
Tudo se metia pelos olhos dentro, tudo incomodava mais do que era
humanamente possível suportar. Raimundo daria tudo para que o mês
de Dezembro fosse erradicado do calendário. Era como se a mãe
tivesse sido mortalmente atropelada em Dezembro, como se ele,
Raimundo, tivesse emigrado em Dezembro.
O
problema de Raimundo, o único que não conseguira resolver, após
mais de seis décadas de vida, era o Natal. Só o Natal. Era um
problema de frio e de distância, um problema que lhe vinha dos
ossos. O Natal parecia uma vertigem em que Raimundo perdia a noção
do espaço, como se tivesse deixado de pertencer ao lugar em que
nascera e do qual fazia parte. O Natal, por ser o que era, por
representar o que representava, era uma dilaceração.
Na
noite de 24 de Dezembro, Raimundo telefonava a Estela, que tinha por
hábito passar a consoada com uma sobrinha em Londres. O telefone
(através do qual falava uns minutos com a namorada) era a única
companhia que Raimundo tinha naquela época do ano.
“Que
vais fazer ao serão?”, perguntava-lhe Estela, procurando um tema
de conversa, para não ficar calada.
“O
costume”, respondia Raimundo, como se aquela fosse a frase mais
longa que alguma vez tivesse pronunciado.
Depois,
permaneciam ambos em silêncio por uns segundos, até que ele dizia:
“Vou
para a cama”.
Estela
não tentava contrariá-lo porque sabia que não valia a pena.
Raimundo tinha o hábito de lhe telefonar na noite de consoada porque
era um homem de hábitos. Acostumara-se à solidão do Natal desde os
tempos em que fora emigrante. No estrangeiro, nunca tivera alguém
com quem partilhar o que quer que fosse, muito menos o Natal.
Fechava-se em casa, sozinho, à espera de que o tempo passasse. Não
ligava a televisão, para não se deixar ir abaixo, para não ver o
que ia pelo mundo, para não ouvir músicas alusivas à época, para
não soçobrar. Tentava dormir, esquecer, abstrair-se. Geralmente,
procurava distrair-se com alguma leitura, embora nem sempre
conseguisse a concentração necessária.
Ao
fim de uns anos, o Natal começou a meter-lhe medo. Medo não sabia
de quê, mas medo. Um medo difuso, pouco nítido, próximo,
envolvente. Talvez o medo de que as tragédias que via no rosto dos
outros um dia lhe batessem à porta.
Raimundo
não era de medos. Por isso, estranhou quando começou a sentir medo
da noite de 24 de Dezembro. Era como se o pai Natal fosse um fantasma
que o perseguia e as campainhas do trenó um sinal de ameaça.
Raimundo
suspeitava de que o medo que sentia do Natal fora adquirido no
estrangeiro, mas desconhecia as suas causas directas. Como não
compreendia muito do que ouvira enquanto emigrante, habituara-se a
interpretar expressões faciais, pensamentos reflectidos nos olhos,
angústias mal escondidas nas mãos nervosas. Daí o receio sem
explicação, o terror de qualquer coisa que o cercava. Mas aquele
também podia ser o medo que sobrevinha depois de ele fechar as
janelas e desligar as luzes, para não ver nada além da casa onde se
abrigava, o medo que lhe entrava pelas frinchas das janelas e sombras
que vagueavam na escuridão (o terror que sobrevinha depois de ele já
não se lembrar por que motivo fechara as janelas e apagara as
luzes).
Durante
os primeiros tempos, Estela ainda perguntara a Raimundo se queria
passar o Natal em Inglaterra com ela, mas ante as suas recusas
sistemáticas, acabou por desistir. Raimundo estava farto de
estrangeiros. Do estrangeiro onde fora emigrante e do estrangeiro
onde nascera e agora vivia.
“Londres?
Onde fica Londres?”, perguntava ele como se o mapa do mundo se lhe
tivesse varrido da cabeça.
“Se
não queres ir, diz…”, replicava Estela, desgostosa, ao perceber
que Raimundo não abdicava dos seus princípios.
Tinha
mais que fazer, dizia ele, não lhe dava jeito, não lhe apetecia,
havia muita coisa para resolver nas empresas. E assim se foi
acomodando a passar o Natal sem Estela. E, para Raimundo, estar sem
Estela era estar sem ninguém.
No
dia 25 de Dezembro, a manhã chegava com as ruas vazias e tristes.
Toda a gente dormia mais do que o habitual, com o objectivo de
esquecer a noite anterior. Raimundo saía cedo de casa para não
fazer contas aos anos que haviam passado desde que recebera a sua
última prenda de Natal. Na empresa, ninguém se lembrava de o
presentear com um mimo, por simbólico que fosse. Todos o julgavam
indiferente a qualquer gesto de aproximação, amizade ou
reconhecimento. Raimundo não tinha amigos. E era no Natal que isso
mais se sentia. Contudo, se voltasse atrás, faria tudo da mesma
maneira. Os amigos, quase sempre, tinham outros interesses, andavam
por caminhos com os quais ele não se identificava. Por isso, com
amigos, ou não, o seu Natal estaria sempre condenado.
Raimundo
saía de manhã, no dia 25 de Dezembro e só regressava à noite,
aliviado por ter superado aquela data difícil. Andava pelas ruas,
perdia-se (era a única época do ano em que se perdia), esquecia-se
dos sítios, caminhava durante horas sem fim até ao anoitecer.
A
26 de Dezembro, não se lembrava de nada, tudo era mais disfarçável.
Na sua agenda, o calendário saltava de 24 para 26 de Dezembro (a
página do dia 25 tinha sido há muito arrancada).
A
partir de 27, as pessoas só se preocupavam com a passagem de ano e
então Raimundo respirava. O Natal ficava para trás, como um fóssil
soterrado nas horas.
Houve
um ano, porém, em que Raimundo decidiu enfrentar a noite de Natal e
vivê-la como toda a gente, com vista a vencer o medo que tanto o
afectava. Nesse ano, mentiu a Estela, dizendo que estava com sono e
que em breve iria para a cama, mas não o fez. A sua ideia era
banquetear-se, desse no que desse, e, por fim, assistir à missa do
galo.
Depois
de muitos anos a fechar janelas e apagar luzes para não ter o Natal
dentro de casa, Raimundo achou, enfim, que já era tempo de superar a
nostalgia, o medo, a tristeza que o Natal lhe trazia.
Na
tarde de 24 de Dezembro, telefonou para vários hotéis de que era
proprietário e reservou mesa para jantar. A sua intenção era
escolher em cima da hora o hotel que mais lhe convinha e, depois,
cancelar as outras reservas. Se tanto trabalhara na vida para
enriquecer, havia de gozar naquela noite os seus hotéis, havia de
sentir-se rei, por contraste com o menino pobre que nascera na
manjedoura. Naquela noite, Raimundo havia de jantar por todos os
Natais passados em que se fechara em casa esquecido de si mesmo.
Eram
sete horas da noite quando se dirigiu para o hotel que distava apenas
dois quarteirões da sua casa. Fez o percurso a pé, sem se deixar
incomodar pela chuva miudinha que caía. No átrio de entrada, despiu
o casaco, sacudiu-o e entregou-o ao empregado hirto de olhar fixo, a
quem pensou pedir o favor de lhe cancelar as reservas que fizera nos
outros hotéis, embora tivesse acabado por se inibir e nada dizer.
Procurou recordar-se do valor que investira naquela unidade
hoteleira, mas não foi capaz. Nem sabia quantas pessoas garantiam o
funcionamento da estrutura. Depois de várias voltas aos ficheiros
mentais, decidiu para si mesmo encerrar o seu departamento de contas
pessoal pelo prazo de umas horas.
Foi
conduzido ao restaurante, à mesa que ficava no canto mais
resguardado da sala. Para além da mesa dele, havia mais duas
ocupadas: numa, estava um casal estrangeiro; noutra, dois homens com
ar de quarentões, falando de negócios.
Raimundo
sentou-se e pensou mais uma vez se não seria melhor cancelar as
reservas, não fosse dar-se o caso de os empregados ficarem
eternamente à sua espera, vendo-se privados da consoada junto das
famílias. Mas voltou a adiar a decisão.
Ao
fim de cerca de uma hora, depois de ter bebido duas garrafas de vinho
e devorado um bacalhau de primeira qualidade, levantou-se e voltou
para casa, onde tinha deixado o carro.
Sentou-se
ao volante, consciente de que tinha a visão toldada, mas não
recuou, nem mudou de planos. Em vez de telefonar a cancelar as
reservas, decidiu dirigir-se pessoalmente aos hotéis, dar as boas
festas aos funcionários e então anular as marcações.
Todavia,
quando chegou ao segundo hotel, em vez de anular a reserva, preferiu
jantar novamente. Ainda sentia alguma fome e, desse modo, não teria
necessidade de fazer aquela desmarcação. Depois de anos e anos a
comer pouco, Raimundo achava que tinha chegado a noite de todas as
suas desforras. Naquele Natal, não faria contas a nada, nem a
despesas, nem ao número de garrafas de vinho que havia de consumir,
nem aos doces que emborcaria.
No
fim do segundo jantar, ao levantar-se da mesa, cambaleou e pensou que
talvez já não estivesse em condições de ir muito longe. Já não
se lembrava dos telefones dos hotéis (apalpou nos bolsos, mas não
encontrou a agenda), nem se considerava capaz de pedir ao empregado
que lhe cancelasse as reservas. Por qualquer motivo, começou a achar
que seria uma indelicadeza desmarcar o que havia marcado, muito mais
na noite de Natal. Percebeu que a ideia contradizia uma outra que
tivera antes, mas não foi capaz de entender porquê.
Enquanto
pensava isto, arrotou e preocupou-se em levar o guardanapo à boca,
embora lhe tivesse parecido haver um desajuste entre o tempo do
arroto e o movimento da mão que segurava o guardanapo. Continuou a
arrotar e procurou corrigir o desencontro entre a expulsão dos gases
e o movimento da mão, mas quanto mais se esforçava, menor era a
articulação. Ainda teve o cuidado de olhar em volta a ver se alguém
o observava, só que não foi capaz de contar quantas pessoas havia
na sala de jantar. Sentia um calor de lareira atrás das costas e
custava-lhe aceitar que não conseguisse somar os clientes que haviam
de contribuir para aumentar a facturação das suas empresas.
Antes
que alguém lhe chamasse a atenção para o estado em que se
encontrava, Raimundo abandonou o hotel e meteu-se no carro. Deixou-se
estar por uns momentos agarrado ao volante, de olhos fixos no vidro
embaciado, e deu a volta à chave na ignição. A visibilidade era
praticamente nula, mas nem assim deixou de avançar. Recordava-se
vagamente do sentido da estrada e foi seguindo a direcção das
luzes, dos semáforos e das decorações natalícias. Ao fim de uns
minutos, o vidro desembaciou e Raimundo sentiu-se mais seguro, quase
tão confiante como os pastores que tinham chegado a Belém com a
ajuda da estrela.
Cerca
de um quilómetro adiante, parou num posto de polícia para tirar uma
dúvida sobre o caminho que o conduziria ao hotel, mas quando
enfrentou os olhos do guarda lembrou-se de que bebera demais e recuou
antes que o guarda se apercebesse do seu estado.
Sem
saber como, chegou ao terceiro hotel, com a sensação de que lhe
estava a acontecer qualquer coisa. Abriu a porta de entrada, olhou
para as calças, cruzou os olhos na direcção da gravata, despiu o
casaco e sacudiu-o, não tendo notado nada que o pudesse embaraçar.
Encostou-se
à parede para não cair e respirou por uns momentos. Pensou voltar
para casa, só que tinha à sua frente uma noite de Natal para
atravessar. Raimundo já decidira não cancelar nenhuma das reservas.
Preferia isso do que passar pela vergonha de voltar atrás com a sua
palavra.
Um
dos empregados veio até junto dele perguntar-lhe se precisava de
alguma coisa. Raimundo pediu uma cadeira. Trouxeram-na e ele
sentou-se ali mesmo no átrio do hotel, parecendo que a mais ligeira
corrente de ar o levaria ao chão.
“Quer
que chame um médico?”, perguntou-lhe o empregado.
Raimundo
não respondeu. Passados uns minutos, sem descolar as nádegas do
assento, foi andando para uma das mesas, arrastando os pés e a
cadeira, lentamente, esforçadamente. Enquanto esperava que o
servissem, embora não se lembrasse de ter feito qualquer pedido,
deixou cair a cabeça sobre a mesa e passou pelo sono.
Quando
lhe puseram a refeição à frente, levantou os olhos, observou os
talheres e receou que estivessem mal lavados. Por isso, preferiu
comer com as mãos. À medida que as usava, limpava-as no guardanapo
e depois voltava a sujá-las na comida.
Ao
notar que deviam estar a olhá-lo e ridicularizá-lo pela forma como
se comportava à mesa, pensou usar os talheres, mas depois de
avaliada a situação, continuou a comer com as mãos. Cortava com a
mão direita em forma de faca e espetava os dedos com a esquerda em
forma de garfo, levando tudo à boca entre roncos, suspiros, arrotos.
Esvaziada
a sétima garrafa de vinho da noite, quase não tinha forças para se
mexer.
“Já
deve ter nascido o menino nas palhinhas…”, pensou para si mesmo.
“Não posso fazer nada…”. E, logo a seguir, deixou cair a
cabeça dentro do prato, desatando a vomitar sobre os restos da
refeição. O vómito saía-lhe a um ritmo quase espontâneo, sem
espasmos, sem aflição. Era um vómito tranquilo, ponderado,
completo, com as suas pausas e os seus arranques controlados. Parecia
o vómito de um sono acordado, um vómito lúcido que perseguia
objectivos, ainda que desconhecidos.
Raimundo
bolsava, mas nem assim parava de comer. Fazia tudo ao mesmo tempo,
sem compassos de espera: vomitava, comia, comia o que vomitava,
vomitava o que comia, levava restos à boca com as mãos, lambia os
dedos, dizia que estava tudo muito saboroso, mas a cada palavra que
proferia era cada vez menor a sua força, a sua convicção, como se
a língua se lhe fosse toldando ao mesmo tempo que a visão, cegando,
entupindo, emparedando. À sua frente, havia um muro enorme que o
impedia de alcançar os hotéis onde ainda tinha reservas para
jantar.
“Digam-lhes
que esperem por mim…”, suplicava Raimundo, a um passo de
desfalecer. “A missa do galo já começou?”
Raimundo
falava com a cabeça enterrada no prato, a orelha esquerda
desaparecida no recheio, por entre duas pernas de galinha, batatas
assadas e azeitonas que saltaram para a mesa, rebolando por entre as
pequenas colinas formadas pela toalha amarrotada.
Chegou
uma altura em que não resistiu mais: como já tinha a cabeça no
prato, limitou-se a deixar cair as mãos, os braços, os ombros sobre
a mesa e tombou inanimado. Foi como se as luzes do restaurante se
tivessem apagado e todo o hotel, de repente, tivesse caído no sono.
Ouvia-se
a respiração de Raimundo por entre os restos de comida e vomitado.
Havia talheres no chão, guardanapos sujos, copos entornados e
manchas escuras na toalha. Antes de desmaiar, Raimundo havia tirado a
gravata, que jazia enrodilhada à volta de um dedo inerte, como se
não houvesse corpo que lhe pertencesse.
Quando
acordou no outro dia, Raimundo deu consigo na mesma posição em que
desmaiara horas antes: sentado, com a cabeça metida no prato da
consoada. O restaurante estava vazio e limpo, exceptuando a sua mesa.
Ninguém tivera coragem de o acordar.
33
Já
não sei a que propósito Raimundo foi para aqui chamado, já não
sei muita coisa. Podia ter contado tudo logo de início. Mas a
sequência dos acontecimentos não é decisiva. A noção do tempo
não faz as viagens, nem os livros. Não voltarei a falar de
Raimundo, nem da vida que deixo para trás.
Já
nem vejo Rute. Não sei onde a perdi, onde a encontrei. Voltou em
menos de uma hora, como dissera, mas não tenho ideia do que
aconteceu a seguir. O que me resta são as suas palavras. As últimas
palavras de Rute, que deixo aqui registadas, as palavras de que me
lembro, as de que me posso dar conta.
Não
sei o que virá depois de ela as ter proferido. Não sei nada, não
posso saber, nunca poderei. Está fora do meu alcance. A alternativa
é imaginar. Imaginar qualquer coisa para lá de mim, na qual me
prolongo, me continuo, me completo. Imaginar-me é realizar-me,
tornar-me mais real do que nunca.
Nestas
páginas, posso contar tudo – e contei – excepto o meu último
momento, o momento logo a seguir às palavras de Rute. E se não o
posso contar é porque a partir de então deixarei de ser eu. Ou
passarei a ser menos eu. O que de alguma forma significa ser mais eu.
É depois de morrermos que nos tornamos verdadeiramente nós próprios
porque essa é a altura em que crescemos sem limites. E quanto mais
tempo passa sobre a nossa morte maiores nos tornamos. Depois de
morrermos, somos nós e somos os outros. Não há mais barreiras, não
há mais temores.
Em
vida, procuramos entender o outro, na morte alcançamo-lo. E é pelo
outro que crescemos. Depois de mortos, podemos não ter consciência
pessoal, consciência dos detalhes, mas há uma outra consciência
impessoal, uma inconsciência vaga, que supera todos os
constrangimentos experimentados em vida. Só quando a consciência
ultrapassa as barreiras de si mesma se pode vislumbrar a esperança.
Um
dia, pode ser que alguém escreva por mim o instante que deixei por
contar. Alguém que se levante pé ante pé na noite escura e avance
para a luz. Alguém adormecido na penumbra cuja respiração não se
oiça no silêncio da noite imprevista. Um dia, talvez alguém conte,
talvez alguém escreva o tempo que está para lá da consciência,
para lá da voz desintegrada em átomos no vazio dos nomes.
Ela
veio sobre mim com asas enormes de águia e levou-me. Pensei que
seria Rute a libertar-me, mas enganei-me. Foi outra. Ainda hoje não
sei quem, não percebo o que aconteceu. Não sei ao certo, reconheço
que me deixei cair num estado de relativa confusão.
Eu
não a conhecia, mas deixei-me ir, porque confiei. Deixei-me
encantar. Sabia que não se tratava de Auxiliadora, nem de Rute,
sabia que se tratava de alguém novo na minha vida, e nem assim
receei as consequências do que me esperava.
Não
me arrependi. Passados todos estes anos, continuamos inseparáveis
pelo tempo fora. Ela sorrindo e fartando-se de dizer disparates e eu
da mesma forma. De início, houve alguma insegurança de ambas as
partes. Ela estremecia, por vezes, hesitando sobre o meu tempo, o meu
desejo. E eu pensava em demasia, receando que não fosse verdade o
que me estava a suceder. Mas depressa superámos a instabilidade
inicial e largámos âncoras na viagem que estava para vir.
–
Ainda gostas de mim?
– perguntava-me ela de meia em meia hora, como se não pudesse
suportar a felicidade da nossa união. Eu respondia-lhe que sim e
agarrava-me mais a ela, apertando a sua mão na minha, beijando-lhe
os lábios e sublinhando o seu sabor profundo.
–
Namoraste muita
gente? – queria ela saber, ainda.
–
Sim – confirmava
eu. – Sim… mas tu estavas em todas as pessoas que namorei, embora
nem sempre te tivesse reconhecido.
Tenho
que voltar atrás, para não me esquecer de nada.
O
dia em que vi Rute pela última vez não podia ter amanhecido mais
normal. O dia amanhecera simplesmente azul, de um azul tão monótono
e desinspirado que se fosse negro ou cinzento não se daria pela
diferença. E se percebi que alguma coisa acontecia, ou estava
prestes a acontecer, foi apenas por uma ligeira luminosidade no rosto
de Rute, uma luminosidade quase imperceptível. Foi pela forma como
me olhou, pela forma como se aproximou da minha cama. Disse cá para
mim – é hoje – e foi mesmo. Ou penso que foi.
Não
recordo pormenores. Nem me resta espaço para os anotar. Mas tenho
ideia de ter olhado para Rute e de a ter visto com um daqueles seus
sorrisos que não dava hipóteses.
Pensei
em minha mãe, apesar de esta não ter tido por hábito sorrir muito.
Rute era magra e minha mãe era gorda, mas associei as duas. E também
vi Auxiliadora vestida de Rute ou Rute vestida de Auxiliadora, com
aquele seu ar refilão, de perna cruzada, como quem tem um cigarro
entre os dedos, embora nenhuma delas fumasse.
–
Deixa que a noite
desça sobre ti – pareceu-me ouvir Rute murmurar. Não tive a
certeza de compreender, porque era de dia, pelo menos tanto quanto me
apercebera, e ela vinha falar-me da noite. – Sei que sempre me
quiseste à tua beira – continuou. – Entrega-te agora à noite e
vem comigo para o fundo iluminado do tempo. Deixa que a noite venha
como um manto sobre o teu corpo. Fecha os olhos e caminha para onde a
minha voz te chama.
Acho
que dei um pulo na cama e gritei o nome de Auxiliadora, mas logo a
seguir senti a mão de Rute, ou a mão de minha mãe, sobre a fronte,
procurando auscultar-me a temperatura. (Ou o que senti talvez fosse
uma águia de asas abertas subindo nos céus). Minha mãe chorava…,
Rute sorria. E do choro e do sorriso de ambas se fazia o rosto que eu
via.
Quis
perguntar a minha mãe por que razão estava desfeita em lágrimas,
mas não tive forças. Calculei que chorasse por se lembrar da forma
como eu a tratara nos últimos instantes de vida. Afastei o
sentimento de culpa. Pus a hipótese de as lágrimas na face de minha
mãe serem os reflexos húmidos dos sorrisos de Rute, que me agarrava
as mãos, apertava os pulsos, consolava a alma com palavras redondas
e doces.
Um
dos motivos pelos quais eu tinha dúvidas sobre quem estava comigo
tinha a ver com o “tu”. Só minha mãe e Auxiliadora tinham o
hábito de me tratar assim. O mais provável era Rute ter decidido
facilitar as regras da nossa comunicação. Já não havia nada a
perder. Eu estava a esvair-me, estava à beira de atingir o ponto em
que não há mais linhas demarcadoras.
–
Esta é a hora da
tua noite, a hora dos teus sonhos profundos – dizia Rute, ou dizia
minha mãe, ou dizia Auxiliadora (eu já não queria saber, só
queria viver aquele momento), obtendo de mim apenas esgares,
expressões interrogativas, interjeições confusas.
–
Não te esforces sem
necessidade – continuavam elas, não me restando dúvidas de que
eram apenas uma, como se eu já não estivesse ali e só as pudesse
ouvir à distância, como se o meu caminho avançasse para outro
universo, outro tempo, e elas só quisessem ter a certeza de que a
viagem não me traria sobressaltos.
–
Esta é a tua hora,
a nossa hora, a hora de todas as felicidades. Agora começa a vida
para ti, agora e sempre. Agora começa tudo. A dor não voltará a
atingir-te.
No
meio do burburinho provocado pelas correntes de ar que me
atravessavam e levantavam as cortinas da alma, pareceu-me ouvir a
palavra “amor”. Tive quase a certeza de a ouvir. Mas hesitei e
não reagi. Senti-me bem, profundamente bem, por me ter parecido
ouvir a palavra “amor”. Só a ilusão de a ouvir me fez feliz.
“Amor” era a palavra que mais falta me fizera na vida. Era a
palavra sobre a qual eu não conseguira construir a minha identidade.
Seria Rute capaz de me amar? Ou teria pronunciado a palavra “amor”
com o fim de me iludir, de me amparar, de me compensar? Minha mãe,
sim, disse-a muitas vezes ao longo da vida. Mas sempre que o fez eu
não sentia que me fosse dirigida, que me dissesse respeito. Vivia
com a permanente sensação de que a minha mãe falava de amor para
uma entidade que me era alheia e que nunca conheci. Foi esta sensação
que me levou ao desespero na hora da sua morte. Eu sentia ciúmes
dela, sentia que ela me abandonava e me desprezava. Por isso, quanto
mais vezes falava de amor, maior era a minha solidão.
O
amor não se resumia a uma palavra. Significava bastante mais,
significava algo que eu nunca alcançara e que não sabia se alguma
vez alcançaria. Só agora, no fim da vida, o termo “amor” me
enternecia e deslumbrava. E era assim porque eu sabia que estava
entregue às asas do tempo que atravessava os mares de universos sem
nome.
Auxiliadora
era um vendaval de ternura, mas nunca me falara de amor. Preferia
protestar por eu não lhe dar a atenção de que ela se considerava
merecedora. Mas Auxiliadora desapareceu nos anos e está agora à
minha espera em toda a parte para onde vou. Vai finalmente receber de
mim o que nunca lhe dei. Auxiliadora repousa adiante com o rosto
tombado sobre a almofada como quem dorme. Pode ser a Auxiliadora de
sempre, a Auxiliadora que me desafiava e que partiu antes que eu
tivesse tempo de me decidir sobre o que nos unia, ou pode ser outra
Auxiliadora, alguém desconhecido que se abeira de mim e me envolve
numa compreensão antiga e sem remédio, permitindo que eu me aninhe
sob o calor das suas penas.
–
Não te sintas só –
dizia Rute com o tom de voz que sempre identifiquei como o de minha
mãe. Rute fizera a sua escolha depois de perceber que minha mãe era
a pessoa que eu mais desejava junto ao leito de morte. Por isso, eu
não sabia exactamente quem estava ao pé de mim naquele momento.
Rute estava a baralhar-me, a confundir-me, e o seu objectivo era que
eu aceitasse os factos, que aceitasse a mãe que ela reinventara para
a minha última viagem.
Apesar
de não ter certezas, compreendi o que se passava. Ou achei que
compreendi. E optei. Decidi que não me restava melhor solução do
que deixar-me ir na ilusão daquele instante porque aquela era a
ilusão que Rute certamente me preparara. Se eu continuasse a
hesitar, ou se rejeitasse o que me acontecia, corria o risco de
falhar o prazer dos últimos instantes.
–
A luz é a força da
tua alma – disse Rute com os lábios encostados ao meu ouvido
esquerdo, o ouvido que tinha melhor audição, conforme ela desde há
muito sabia, fazendo-me sentir que as suas palavras também eram
minhas. Era como se falássemos ao mesmo tempo, como se pensássemos
a duas vozes e não pudéssemos evitar a partilha daquele momento
perpétuo.
–
Vai… este é o
tempo da nossa companhia, o tempo do desejo e da consciência, o
tempo do entendimento, o tempo da eternidade. Não separemos a dor da
alegria, não separemos a noite do dia, não separemos nada,
mantenhamos tudo junto, tudo unido, tudo ligado. Sobre ti desce a
noite, desce sobre nós, e a noite é o teu dia, o nosso dia. Sobre
nós desce o dia que nasce da noite, sobre nós desce a claridade da
distância que encandeia, sobre nós desce o calor do manto que secou
as lágrimas. Sobre ti, desço eu. Lembras-te? Quero que me sintas
dentro de ti, quero acabar contigo para recomeçar. Quero que me
olhes, que me oiças. Estou aqui, não te aflijas. Estarei aqui
contigo, sempre. Irei contigo a todo o lado. Não receies partir. A
minha voz irá contigo. A noite é a viagem que nos conduz ao centro
das coisas desconhecidas. Vencemos a tempestade das ondas e a
solidão. Superámos a dor de crescer. Agora, este é o lugar da
noite que nos aquece, do dia que nos acolhe. Não te inquietes, não
digas nada. Acabou-se o tempo das palavras. Esta é a última
palavra. Que faz o nosso caminho, a nossa luz, a nossa noite, sobre a
qual repousamos na serenidade das estrelas. As palavras são o nosso
corpo, o nosso pensamento. Nada mais nos resta do que viver a noite
no esplendor da sua quietude. A noite é o interior da luz, o tempo
desejado de sonhar e adormecer. A noite é feliz. É feliz, meu amor,
minha mãe. Adormece sobre as ondas dos astros que brilham no meu
peito. Adormece e escuta o que te digo para sempre. Não cederás,
agora. Não regressarás. Não sofrerás. A tua navegação é o meu
olhar que te segue para lá dos horizontes. Se a respiração te
pesa, deixa-a ir. Deixa ir o caminho dos teus passos, deixa ir a
música que te envolve. Vais num tempo de sons e consolação. Abre
os teus olhos depois de partires, abre a noite e o tempo desfeito em
cinzas que depositaste na palma das minhas mãos. Confia no que te
digo. Confia e salvar-te-ás da escuridão do dia. Abraça-te à luz
da noite, abraça-te ao rio que te viu nascer e ao qual pertences,
abraça-te às margens e caminha sobre a verdura luminosa da espera
que terminou. Agora, começa tudo, começas tu, começa o que é
certo, começa o imutável. A dúvida desfez-se na sombra quente da
luz. Aceita as minhas carícias sem temor, aceita os meus gestos
sobre a tua pele, aceita a companhia do meu desejo em ti. O amor
começa nesta liberdade. Terminou o ódio, terminou a ignorância,
terminou a dúvida. As margens unem-se no teu olhar sobre a noite que
não acaba. Deixa a poeira da luz sobrevoar as sombras do tempo. A
noite é o segredo das espumas, o segredo do fogo e das ideias sem
mácula. Tudo o que era mácula terminou para ti, terminou para nós.
Se ouvires a minha voz afastar-se é porque a esperança te segura e
te consola. Se deixares de me ouvir sou eu que parto contigo na
direcção da claridade dentro da noite. Se deixares de me ouvir é
porque adormeceste a meu lado e respiras as minhas palavras. Nada te
pesa, agora. Nada te aflige. Só a minha voz te aquece na bruma da
densidade luminosa. Os relógios pararam, deixaram de se ouvir,
deixaram de andar em círculos sobre o eixo do nada. Agora, caminhas
pelo vale dos relógios esquecidos quando o tempo era digital e
antigo. Sente os meus dedos, o meu sangue, os meus poros bebendo das
tuas células abertas no espaço interminável. Caminha e
encontrar-te-ás na beira de um lago onde desagua o brilho dos lumes.
Escreve a consciência das águas, escreve a alegria de me teres,
escreve o pranto e a luz e o sonho. Escreve-me sem palavras para que
sempre me desejes. Escreve-me na noite dos teus olhos. Toma nota da
minha voz e guarda-me, guarda-me, fecha-me em ti, guarda-me em ti,
estou aqui, acarinho-te e levo-te em corpo e alma na tremura dos meus
dedos. És a minha noite e eu a tua… Não me perderás. Em cada
momento te reencontro e reconquisto. Nada diremos do que nos embala,
do que nos consome. Nada diremos dos sons que nos chegam. Quero que
te sintas livre, que te sintas voando no tempo das asas que criei
para ti. Bebo as tuas lágrimas, todas as lágrimas que não secaste
em vida. Estou aqui junto dos raios em que a tua sombra se refaz para
que me contes tudo. Sou aquela que tanto desejaste e desejas. Não
desistas. Se esperaste anos para me ter a teu lado, podes bem
continuar agora a marcha dos meus pés para o infinito do saber. Oh
conta-me, conta-me o que farás no futuro para onde caminhamos.
Escreve, escreve a última palavra, escreve todas as andanças, todas
as curvas da claridade nas janelas do céu. Escreve para não me
esqueceres, para não morreres, para continuares na direcção que te
aguarda. E conta-me, conta-me o que sentes, conta-me o que há,
conta-me o que se passa nos rolos do tempo que nunca começaram.
FIM