1


Vi partir o avô Celestino, Auxiliadora, os meus pais, a tia Márcia, duas amigas da tia Márcia, um vizinho que nunca foi com a minha cara, a mulher dele e a mãe da mulher, o carteiro do bairro, um garoto de oito anos que passava as manhãs aos pulos na rua, antigos professores, o primo Ascênsio que teimou em ir fardado de militar e os seus dois filhos, pessoas de quem me lembro ou de quem guardo apenas uma ideia vaga, algumas que se apaixonaram por mim e outras que nunca amei. Vi partir gente sem nome, gente sem história, para os confins do tempo, gente aqui tão perto.
Por vezes, ouço o eco da voz de Auxiliadora ao fim da tarde:
Anda cá! Vem falar comigo…”, gritava ela da porta de sua casa, longe de saber que, décadas depois, eu recordaria a sua voz nítida e azul como se não tivesse passado um minuto desde o último instante em que nos víramos.
Auxiliadora falava com a segurança e a alegria dos que acreditam, dos que confiam. Falava como se tivesse o mundo inteiro ao dispor, olhando-me com malícia, com rebeldia. Eu não lhe respondia, não lhe ligava, na certeza de que a deixaria vibrante de fúria.
Anda cá… tenho uma coisa para te dizer”.
Eu fingia-me sem interesse, deixava-a falar, barafustar, irritar-se, encostada ao umbral da porta, descalça, irrequieta por baixo do vestido desalinhado acima dos joelhos, na expectativa de que o seu entusiasmo desaparecesse.
Não quero saber de ti para nada”, protestava ela ao fim de pouco tempo quando se dava conta da minha indiferença. “Estou farta. Não me voltes a procurar. Esquece-me. Só me arrependo de não ter dado ouvidos a quem me avisou…”.
Não terminava a frase com o propósito de me ferir, de me obrigar a uma reacção, mas nem assim eu lhe fazia a vontade. Metia-me em casa e não lhe punha os olhos em cima até ao dia seguinte.
Auxiliadora era magra, morena, de cabelo curto. Fervia em pouca chama. A nossa amizade durou até ao dia em que partiu. Cortámos relações milhões de vezes e milhões de vezes as reatámos. Quando recebi a notícia da sua morte, senti a cabeça oca e um aperto na alma que se prolonga até ao presente. Não voltar a ver Auxiliadora foi um rude golpe. Havia coisas que eu só a ela confessava, coisas que só ela compreendia. Eu acabara de completar trinta anos e ela vinte e oito. Não tínhamos a certeza do que nos esperava. Ela não chegou a compreender o que vinha a seguir. O seu desaparecimento foi um livro que ficou por escrever.
Mexo e remexo nas páginas de um caderno seu que guardo desde há anos, fazendo que Auxiliadora regresse, reviva através de palavras, rabiscos, garatujas. Está longe a minha Auxiliadora, está não sei onde, embora a sua presença seja tão real como o sol que me entra no quarto.
O primeiro capítulo deste meu livro é um dia claro, arrebatador, que se confunde com as páginas luminosas do caderno que Auxiliadora me deixou.
Auxiliadora está por aí repleta de coisas para contar, inquieta para acrescentar novidades às frases rascunhadas no caderno da sua memória, que se resume a umas notas breves, apontamentos vagos, ideias dispersas, desabafos. Com ela, há sempre tanta coisa a acontecer.
Auxiliadora foi-se e não se foi. Morreu, mas está viva, está viva em outros, está perene, indomável, rondando-me ainda como um tigre em busca da sua presa, um tigre cujas garras o tempo não envelheceu. Detecto os seus sinais, as suas marcas no ar, os suspiros com que me enfeita a casa ao entardecer. Não sei se continua a dar pelo nome de Auxiliadora, ou se dá por outro nome. Tanto me faz.
Por agora, estou na cama, à espera que me venham buscar. Senti uma ligeira indisposição e chamei uma ambulância que me possa transportar aos serviços de urgência. Na minha idade, não convém facilitar. Antes de recorrer ao hospital, telefonei a Rute, mas não obtive resposta. Há vários dias que Rute não me aparece. Quando passo algum tempo sem a ver, sinto-me outra pessoa, sinto que me falta algo de essencial e fico com a impressão de que tudo corre o risco de se desmoronar.
Rute é uma amiga médica que se habituou a visitar-me com alguma assiduidade. A indisposição que senti talvez se deva à sua ausência. Espero que a ambulância não demore, a ver se ainda resisto uns tempos. Quero ir juntar-me a Auxiliadora, mas há tarefas que por enquanto me impedem de partir.
Vejo as sombras de espíritos inquietos pairando à minha volta. Suplicam-me para que eu diga tudo, para que não interrompa a escrita, para que me deixe de sentimentalismos, para que esqueça Auxiliadora. Ela teve o seu tempo, enquanto o meu se aproxima do termo, um termo que me abrirá as portas do tempo todo.
Sei que têm razão. Não discuto, embora concorde que não é fácil desligar-me de Auxiliadora, nem de Rute, nem de ninguém. Afastar-me de um sítio ou de uma pessoa é o pior que me podem fazer. Sinto-me desintegrar por dentro, como numa orfandade insuportável, fico com ganas de ir à janela e renegar o que me ensinaram, perco as referências, desanimo, desisto. Desisto por uns tempos, mas depois sei que volto a ser quem era. Aconteceu-me tantas vezes, acumulei tanta dor.
Estou a chegar ao início de um outro tempo, que é o fim do meu tempo. Vai sendo altura de descansar. O percurso foi intenso, esforçado, quase no limite, obrigando-me a passar o testemunho a outro – um filho, um vizinho, um amigo, um desconhecido – que continuará a corrida por mim. É uma corrida de estafeta, em direcção à eternidade, à qual dei o meu contributo, ainda que ínfimo. A morte é um momento num percurso de que faço parte, é um instante de lucidez e amor, o instante em que alguém me sucederá na viagem, tal como eu sucedi a Auxiliadora, se é que assim foi realmente. Nunca se sabe com rigor a quem sucedemos, ou quem nos sucede, mas podemos imaginar. É uma questão de amor. O amor que sinto é esse encontro entre o outro e eu, essa identificação, ou tentativa dela, que justifica a eternidade.
Calculo que os seres, os corpos, têm o sentido de se sucederem uns aos outros, tornando possível o eterno. Viver para sempre nos outros talvez seja a nossa felicidade, o nosso bem. Não me refiro a qualquer tipo de reencarnação, mas a uma continuação da existência no outro. Uma passagem de testemunho de uma identidade para outra.
Durante anos, vivi na ilusão do que me diziam, do que me expunham. Depois, percebi como as coisas se passavam e aceitei a morte. Quero descansar. O que posso fazer de melhor, agora, é dar o lugar a outro, para que me seja possível continuar através dele.
A procriação dá forma a este processo imparável. Um filho é a solução mais evidente no caminho para a eternidade. A um filho entrega-se tudo de vontade, sem esforço, por prazer. Ele é parte de nós, nasceu de nós, existiu em nós e, caso a morte não o leve prematuramente, continuará para além de nós. Um filho é a maneira mais fácil de construir a eternidade. Por isso, a educação pesa nos relacionamentos familiares, transmitindo valores fundamentais para o alcance do eterno. Quanto mais os filhos seguirem o caminho dos pais, mais evidente será a passagem do testemunho.
A semelhança física entre pais e filhos alimenta a ideia de que a morte não é o fim de coisa nenhuma porque alguém pode continuar a viver por nós, alguém com um rosto semelhante ao nosso, com uns olhos parecidos aos nossos, com um tom de voz idêntico ao nosso, com uma forma de andar igual à nossa.
Quanto mais parecidas forem duas pessoas, mais fácil, mais óbvia, se tornará a passagem de testemunho porque, ainda em vida, salta à vista a continuidade da existência através do outro. A semelhança com o outro, seja pela aparência, seja pela educação, é a forma mais evidente de eternidade.
Imagine-se uma criança a caminho da escola, rasgando as sombras da manhã, aos saltos pela rua, transportando na mão a pasta que a mãe usou quando ia para a escola da sua infância. Passados anos, a pasta lá vai, testemunho de uma vida que continua e se renova, balouçando na mãozinha de dedos irrequietos, uma outra mão que é a mesma, ou que podia ser a mesma, foi a mesma, só com a diferença do tempo a separá-la.
Mas o tempo não conta. Nós, sim, contamos; nós, ser; nós, acção. E nós somos os outros, à margem do tempo. Estamos lá, na matéria alheia de que somos feitos, contribuindo para a ebulição das vidas que fazem o rodopio dos universos.
Se eu for capaz de olhar o outro, de o compreender, de o acompanhar, estarei a contribuir para a eternidade de um todo e, como tal, para a minha própria eternidade. Como parte do todo, não posso deixar de contar no processo.
A possibilidade de cada um ser eterno sozinho representaria a vitória do egoísmo sobre o amor, a vitória da ignorância sobre o saber, a negação do movimento cósmico e da sua lógica. A eternidade individual significaria o sofrimento para sempre. O horror dos horrores. A vida seria insuportável – e a morte desejada a cada momento.
Por isso a eternidade se materializa num percurso colectivo em que uns vão tomando o lugar de outros, numa caminhada cósmica de milhares, milhões de anos, um tempo ao longo do qual a memória se irá esvaindo, transmutando.
Mas a eternidade não termina com o fim da memória. É compreensível que a partir de certa altura eu deixe de ter consciência da eternidade (pelo menos uma consciência organizada), mas nem assim deixarei de estar nela, nem que seja por ter contribuído para o processo com um determinado tempo da minha existência.
A morte é apenas a inteligência natural a funcionar em nós, é o nosso instinto de sobrevivência no seu mais elevado grau de eficácia.
É a morte que justifica a irrequietude da infância, a precipitação da adolescência, o impulso da juventude, a febre da adultez, a realização da maturidade, a lucidez da velhice. A morte impede-me de ser monstro e, ao mesmo tempo, permite-me dar sentido ao outro. É ante a aproximação da morte que compreendo o incompreensível, aceito o inaceitável, tolero o intolerável. A morte é o que falta acontecer e que aos outros, não a nós, compete viver. Por isso, há os que acreditam na reunião das almas e dos entes queridos. Mas não há reunião, não há outra vida. Há outras vidas, que são as daqueles a quem, através da morte, passamos o testemunho da existência.
É na morte que soluciono as contradições que vivi e me deram a possibilidade de resistir ao furor prodigioso dos momentos felizes.
O meu corpo faz parte do movimento de galáxias, estrelas, cometas, planetas, matérias inúmeras e imensas de fogos e poeiras. O meu corpo fez parte, fará sempre parte, de todas as andanças cósmicas. A soma de todos estes percursos constitui a eternidade do universo que, por sua vez, se integra em outro universo, e este ainda em outros universos, por aí fora, dando lugar ao longínquo infinito, ou ao frenesim de milhões de universos derivados de outras e constantes explosões gigantescas, cuja adição sem limites explica a existência de uma eternidade maior, sempre maior, ao ponto de nos perdermos nas contas desse infinito.




2


Tocaram à porta. Levantei-me para ir ver quem era. Pensei que devia ser a ambulância de que estou à espera, mas enganei-me. Era a vizinha do piso de baixo a perguntar se eu precisava de alguma coisa. Lembra-se de me vir ver uma vez por outra. Mas não se dá ao trabalho de subir as escadas e bater-me à porta. Como vive no rés-do-chão e eu no primeiro piso, toca na campainha da entrada do prédio e espera que eu responda, para ter a certeza de que ainda ando por cá.
Agradeci-lhe e disse que estava tudo bem. Há-de saber que chamei a ambulância quando a vir parada à porta do prédio. Se apanhar um susto, talvez não lhe faça mal. Ao menos, sentir-se-á obrigada a fazer alguma coisa, a estar mais atenta. Para a próxima, talvez se dê ao trabalho de subir até ao piso onde moro.
Voltei para a cama, fechei os olhos e compreendi que já quase tudo havia passado em mim e continua a passar como um comboio que não se detém a caminho das inúmeras cidades que atravessa.
Puxei o lençol para o queixo e a seguir amarrotei-o, formando minúsculas colinas e ravinas sobre a cama. Ajeitei um dos cobertores com os pés e tive a sensação de estar num descampado poeirento, por onde havia de passar a ambulância que me vinha buscar, talvez para o outro mundo, para outros mundos. À falta da ambulância, contudo, pus-me a imitá-la com dois dedos deslizando sobre o lençol em curvas e contracurvas, recorrendo à boca para fazer o barulho do motor e o apito estridente da sirene. A ambulância dos meus dois dedos acelerava nas ruas desertas do lençol, desaparecendo e reaparecendo por trás das elevações do tecido, perdendo-se e reencontrando-se. De tanto andar, um dos pneus do veículo teve um furo, levando-me a substituí-lo, o que fiz com o polegar a servir de manivela junto aos outros dois dedos. O furo deve ser o motivo de atraso da ambulância. Não pode haver outra razão.
Não sei quem continuará o meu percurso, mas pode até não ser apenas uma pessoa. A minha vida foi feita de muita gente, amigos e amores. Pode estar perto o momento de abraçar alguém de forma sentida, dar um aperto de mão caloroso, sorrir apenas… ou olhar nos olhos quem esteja a pensar em outra coisa menos na minha morte e assim me despedir, e deste modo seguir em diante.
Lis é o nome pelo qual sempre me conheceram. Não sei, nunca investiguei, se são três iniciais, ou se é um nome de direito. Lis pode derivar de Lisa, como pode resultar do esquecimento do “u” em Luís, ou servir de diminutivo a Lisboa, Lisandro, Felisberto. Depende das sílabas que se queira eliminar. É difícil perceber se se trata de uma palavra feminina ou masculina, mas é justo que me chamem assim, porque sempre assumi a minha ambiguidade sexual. Nunca me senti completamente homem nem completamente mulher. E se decidi contar tudo nestas páginas foi para tentar saber quem sou.
Agora, entretenho-me com as palavras que se encarregarão de nada deixar por dizer. Tenho que obedecer a uma organização, seguir uma linha, como um fio de água que desce a encosta de uma montanha. Por mais voltas que me veja na obrigação de dar, deverei manter-me fiel à realidade.
Resta-me pouco cabelo. Hoje de manhã, quando me vi ao espelho, parecia ter apenas orelhas sobressaindo por entre farripas compridas e longas, que nunca me atrevi a cortar. O rosto que vi reflectido era uma sombra oval, com uma fenda na parte da boca. Tudo vai desaparecendo aos poucos, sem que, porém, a juventude deixe de alimentar em mim a sua imagem. A juventude e todas as outras idades de que me fui fazendo ao longo dos anos. Tive cabelo curto, cabelo comprido, liso e encaracolado, de todos os feitios e cores, até ficar apenas com esta meia dúzia de fios escorrendo sobre a face.
Desde jovem, sempre disseram de mim muita coisa: que era instável, que não sabia o que queria, que nunca havia de acertar com nada. Procurei sempre não me deixar influenciar pelo que constava. Fui reagindo, corrigindo, trilhando o meu caminho.
Hoje, estou só com as minhas ideias, mas avanço na companhia de todos os que deram intensidade e significado aos meus dias. Apesar de saber que já pouco tempo me sobra de vida, sinto uma inquietação miudinha que me devora. Qualquer coisa que vem de trás, para me atormentar. Não devia ser assim, mas é. A tranquilidade do fim não deixa de ter os seus sobressaltos, nem que seja porque nunca sabemos exactamente como passaremos o testemunho, a não ser no momento preciso em que o fazemos, altura em que não se deve excluir a hipótese de um percalço.
Há uma aflição ligeira que toma conta de mim e que não consigo identificar com rigor. Vivo com a impressão de ter deixado por fazer alguma coisa há dezenas de anos atrás, alguma coisa que devo realizar antes que seja tarde demais, como se o passado fosse agora, aqui, e não tenho dúvidas de que o é. Pode ser um beijo que ficou por dar em alguém que conheci de fugida, uma lágrima não derramada, uma conversa omitida, um voltar de costas indevido.
Divago com os olhos pelo quarto, com uma ligeira inquietação, em busca de algo que não encontro, embora não chegue a procurar o que quer que seja. Tenho um animal enjaulado no peito. Sei que não devo preocupar-me, mas gosto de me preocupar. Quando não me preocupo, as coisas passam a fazer sentido, e eu ainda quero “não perceber”, ainda quero ter alguns momentos – por breves que sejam – de confronto com o desconhecido. Nem que seja a incógnita de saber quem dará continuidade à minha estafeta.
Subitamente, sinto como se tivesse companhia em casa, ainda que não saiba, por ora, as consequências dessa impressão. Ignoro quem possa estar por aí rente aos móveis, papéis, roupa encardida, louça por lavar. São sombras, ou é como se fossem; são rumores que me envolvem e perseguem (sempre perseguirão); são seres indistintos e informes, que acabei por aceitar ao longo dos anos.
É, naturalmente, uma ilusão. Mas é essa ilusão que me dá a noção de haver gente à minha volta; gente da minha criação, da minha lembrança; gente de outras eternidades, cujos ecos se mantêm.
Falta-me saber quem são, quantos somam, o que pretendem. Falta-me saber tanta coisa. Desconheço até que ponto serei capaz de entrar nessas vidas e se essas pessoas conseguirão entrar na minha.
Enquanto ignoro o que me espera, leio. Olho para o relógio: a ambulância já devia ter chegado. A demora, todavia, acaba por me convir. Os meus dedos cansaram-se de andar por cima do lençol.
Sento-me na cama e ponho-me a ler, até me doer o corpo. Perco-me em páginas de livros que fui acumulando no tempo. Depois, apetece-me dormir, mas irrito-me, enervo-me. Não quero perder um minuto. Começo a fazer contas ao tempo de vida que me resta. Podem ser anos, meses, semanas…
O grande desafio que enfrento é o de dominar a aprazível ameaça do fim, que não é fim, antes passagem para o outro. Não me compete evitar esse fim, mas dominá-lo, controlá-lo, ajeitá-lo, tentar conformá-lo ao meu ritmo, para que o testemunho seja passado sem sobressaltos de última hora.
Com o andar dos anos, perdi o interesse por quase tudo. Só a leitura resiste. É um prazer que me vem das entranhas. Uma força imparável. Os livros, a arte, são uma forma de eternidade, um testemunho que passa de mão em mão e que nos prolonga nos outros.
À medida que os dias vão sendo em menor número, sinto maior segurança interior, embora tenha a certeza de que a minha capacidade física será cada vez mais reduzida.
Tenho consciência de que as horas se irão tornando profundas, cavernosas, mas inquieto-me com o que me farão descobrir, ou não. Pressinto que se aproxima qualquer coisa, pressinto que se aproxima alguém. Poderá ser a vizinha de baixo, com um rebate de consciência; ou Rute, com um pressentimento sobre o meu estado de saúde. Ou alguém que me visita pela primeira vez.
Apuro o ouvido. Os passos continuam nas escadas em direcção ao piso de cima. Por vezes, é como se eu visse coisas para lá das paredes do quarto. E tenho medo.
Vejo-me quando tinha trinta anos, quando tinha quarenta… cinquenta. Tenho pavor do cerco que se aperta à minha volta. Quando já não o suporto, ou quando penso que ele me poderá conduzir à loucura, volto a pegar num livro, no primeiro livro que me vem à mão. Ou ponho-me a imitar carros e ambulâncias acelerando sobre os declives formados pela roupa da cama.
Foi assim que sempre me salvei. Aprendi a fazer que tudo aconteça de acordo com as forças do além, que são as minhas forças. Deixo-me levar e enfrento a eternidade que encontro nos livros dos outros, como se a morte já tivesse chegado. É uma outra forma de recomeçar. Em qualquer fim de tempo, em qualquer princípio de lugar.




3


Agora vem a propósito Raimundo, não porque o que tenho a dizer dele se relacione com o que vinha escrevendo, mas por a sua têmpera ser pouco ruidosa, pouco flamejante, e como tal se adequar mais ao tom do momento. A qualquer instante, pode chegar a ambulância e eu ter de interromper o que tiver em mãos. Neste caso, não quero perder nada de relevante. Se estiver a escrever sobre Raimundo, logo que regresse do hospital não terei dificuldade em voltar ao texto.
Raimundo viveu emigrado durante anos. Voltou rico, mas voltou outro homem. Voltou de olhar baço, reduzido ao pó do silêncio, como se ferido por qualquer coisa que o tivesse magoado irremediavelmente.
Quando fui visitá-lo a casa, ao fim de mais de duas décadas, quase não me ligou. Foi a primeira grande diferença que notei nele. Cumprimentou-me vagamente e dirigiu-se à cozinha para preparar uma sandes que seria o seu jantar. Raimundo comia pouco, o menos possível. Era a sua forma de poupar dinheiro.
Estranhei o seu comportamento. A nossa ligação vinha de há muito e apesar de as nossas idades distarem mais de duas décadas sempre nos havíamos entendido. Por isso, aquele seu cumprimento frio e distante impressionou-me e magoou-me. Mas não o deixei transparecer.
Sentei-me à mesa com ele e procurei afastar as dúvidas que me assaltavam sobre a oportunidade da minha presença. Para não o afligir com estimativas de preços do pão, da manteiga e afins, fiz-lhe saber que já tinha comido e deixei-me estar, mais por dever de circunstância do que por prazer.
Raimundo deu por finda a sua emigração quando já contava mais de cinquenta anos e numa altura em que eu já dobrara a casa dos setenta, sendo provável que a nossa diferença de idades tivesse então um peso que antes não tinha. Além do mais, ele passara a contar com o estrangeiro no seu currículo, uma experiência que eu nunca vivera.
Raimundo tem um rosto familiar, mesmo para quem não o conhece. É um rosto vulgar, parecido a milhões de outros. Um rosto sem traços especialmente distintivos, sem nobreza, sem personalidade vincada. Um rosto perfeito para fazer parte de uma multidão, de uma massa de gente num filme que a história não recordará.
Naquele dia em que tive a certeza de que tudo tinha mudado entre nós, fiquei-me a vê-lo arrastar os pés, enquanto se deslocava de um lado para o outro (um hábito que lhe vinha de criança), abrindo armários e gavetas, pausadamente, como se contabilizasse o gasto de energia que os seus músculos despendiam em cada movimento. No fundo, porém, percebia-se que aquela era a sua forma de se relacionar com o vazio que o preenchia.
Olhava-se para ele e tinha-se a certeza de que algo o modificara, embora, no fundo, não deixasse de ser o mesmo. Na aparência, estava apenas mais curvado e perro, magro e de cabelo grisalho. O seu rosto mantinha a falta de brilho e a monotonia da infância. Os olhos é que se tinham mesmo escapado para qualquer sítio que eu não imaginava.
Enquanto andava de um lado para o outro, sempre arrastando os pés, Raimundo observava-me com um ligeiro sorriso trocista, parecendo que tinha esquecido as próprias palavras.
A sua frieza era constrangedora, sobretudo para mim, que sempre nutrira por ele um afecto particular. Senti-me profundamente só.
Raimundo nunca fora de comer muito. Uma sandes e um café bastavam-lhe para a última refeição do dia. A sua estrutura física não exigia mais. Em pequeno, o pai fartava-se de lhe ralhar, mas não conseguia abrir-lhe o apetite.
Hás-de morrer tísico”, dizia-lhe com um desespero mal contido, perante a indiferença do filho. “Quem te vir até há-de pensar que não te dou de comer!”
Em casa dos amigos, acontecia o mesmo. Insistiam para que ele comesse, mas deparavam-se com recusas sistemáticas da sua parte, ao ponto de parecer que Raimundo desdenhava a comida alheia por recear que estivesse envenenada. Passaram a detestá-lo, por isso.
O que me intrigava no reencontro com Raimundo após tantos anos de separação era verificar que ele não aparentava qualquer necessidade de contar alguma coisa, nem que se limitasse a perguntar pela minha saúde. Se fosse ele a escrever este livro, tenho a certeza de que dificilmente encontraria material para encher uma página.
Raimundo mantinha-se sentado, comendo em silêncio. Sorvia o café e pensava, ia pensando. Levava a sandes à boca, compassadamente, cerebralmente, como se reflectisse com as mãos, com os dentes. Tossia e olhava em volta na direcção dos armários, do frigorífico, do fogão, sem deter a vista em sombra alguma. A seu lado, eu só não me sentia uma árvore na paisagem porque o conhecia desde a infância. E adivinhava o que estava por detrás dos seus silêncios. Só podia adivinhar. Quanto menos ele falava comigo, de resto, melhor eu o conhecia, melhor destrinçava os meandros da sua sensibilidade.
Terminada a refeição, Raimundo permaneceu imóvel, com os cotovelos apoiados na mesa. O seu rosto era quase inexpressivo, o que me facilitava a tarefa de lhe desenhar histórias em cima.
Ele habituara-se a ocupar os serões dando uma volta a pé pelas redondezas. Era uma forma de desentorpecer as pernas e de não gastar gasolina. Raimundo não desgostava de arrastar os pés. Os joelhos podiam fraquejar-lhe uma vez ou outra, mas isso não justificava a maneira como se deslocava. Dava a impressão de que andava daquela maneira preguiçosa só para ter presente as limitações da sua condição terrena.
Com o ar de ser completamente dono da sua vida, a sua forma de caminhar dava-lhe a noção da existência dos outros. Os outros começavam no exacto momento em que as pernas lhe soçobravam. Nos breves instantes em que os seus passos perdiam a ligeireza dos tempos de juventude, apercebia-se da existência de mais gente à sua volta.
Não era óbvia a relação entre uma coisa e outra, mas tudo indicava que era isso que lhe acontecia. A consciência da sua vulnerabilidade abria-lhe os olhos para o que o rodeava, para a sobrevivência dos seres na teia do quotidiano.
Uns meses após ter regressado do estrangeiro, Raimundo conheceu Estela, uma vizinha, com quem passou a encontrar-se todos os domingos à tarde. Passeavam pelo jardim, de mão dada, quase sempre em silêncio, exceptuando nas ocasiões em que o arrastamento dos pés era o seu único motivo de conversa. Quando se via obrigado a quebrar a mudez, aproveitava para observar, ao mesmo tempo, a reacção dela:
Tenho andado a arrastar os pés…”, dizia, simulando apreciar as copas das árvores.
Ela aconselhava-o a consultar o médico, mas ele não se deixava iludir. Sabia que a sugestão dela não passava de uma formalidade. Porque, no fundo, Estela tinha plena consciência de que Raimundo nunca se atreveria a entrar num consultório médico com o argumento de que arrastava os pés. Sentir-se-ia ridículo. E barafustaria com o preço da consulta, dizendo que o médico só pretendia apropriar-se do seu dinheiro.
Estela havia de saber que Raimundo não deixaria de fazer contas ao chocolate que lhe comprava todos os domingos à tarde quando passeavam pelo jardim e que somaria o preço da guloseima ao da consulta médica, concluindo no íntimo que, se a despesa com o chocolate era obrigatória… a despesa com a consulta era incomportável.
Por vezes, Estela tentava ir ao encontro do sentimento de Raimundo e recusava a oferta do chocolate, argumentando que aquele dinheiro poderia servir para outra necessidade, mas Raimundo não transigia. Aquela era a sua única concessão às trivialidades do dia a dia. O chocolate que Raimundo oferecia a Estela era a extravagância que admitia a si próprio durante toda uma semana, única prova de afeição que tinha para com a mulher com quem convivia regularmente.
Os passeios de Estela e Raimundo prolongaram-se por anos, sem qualquer aparente evolução. Nunca casaram, nem alguma vez falaram dessa possibilidade.
A partir de determinada altura, ambos concluíram que já era tarde para o fazerem. Embora não o assumisse, Raimundo considerava que o casamento poria em risco a sua liberdade, além de ser uma despesa evitável. Atrás do casamento viriam os filhos e ele não estava disposto a suportar os gastos da sua educação.
Certa vez, ao encontrarmo-nos casualmente na esquina de uma rua, Raimundo deteve-me pelo braço e puxou-me para junto de um prédio, com um à vontade a que eu já me desabituara, para me dizer:
Já fizeste as contas ao que se gasta para educar um filho durante vinte anos?”
Numa primeira reacção, nem tive a certeza de ter compreendido o alcance das suas palavras. Mas ele repetiu exactamente o que eu não tinha certeza de ter ouvido.
Fiquei sem resposta, embora não me tivesse atrevido a contrariá-lo, porque li nos seus olhos que ele estava disposto a continuar a discussão, o que eu estava longe de poder suportar.
Daquela vez, por isso, fui eu que me esquivei, dando a desculpa de que tinha consulta marcada no dentista. Havia qualquer coisa que me afastava de Raimundo naquele momento, qualquer coisa que eu não dominava, que ia para além da minha compreensão imediata.
Vim para casa a somar as despesas de educação dos primeiros vinte anos de vida de um ser humano. Inconscientemente, distraidamente, pus-me a fazer contas. O resultado da operação era astronómico. Mas o dinheiro, para mim, não tinha importância, enquanto, para Raimundo, significava tudo. Bastante mais do que um filho.
No preciso instante em que Raimundo me perguntou se eu já tinha feito as contas ao custo da educação de um filho, fiquei com a nítida sensação de lhe ter atravessado a alma. Por isso senti necessidade de o evitar naquele dia.
O silêncio que geralmente imperava nos nossos encontros era uma forma de Raimundo poupar palavras. E, para ele, poupar palavras era tão decisivo como poupar dinheiro.
Raimundo fazia contas a tudo, tostão a tostão, sem qualquer cedência. Por isso (segundo ele próprio me confidenciou certa noite, quando eu me preparava para sair, ao fim de duas horas em que nenhum de nós havia proferido qualquer palavra), nunca prometeu o que quer que fosse a Estela. Nem sequer tentou alguma vez seduzi-la. Limitava-se a passear com ela aos domingos à tarde e a oferecer-lhe um chocolate.
Estela chegou a dizer-me que Raimundo deixara de gostar de chocolates só para não ter mais uma despesa semanal consigo mesmo. A Raimundo, bastava o chocolate que comprava para ela. Às vezes, para tentar manter conversa, Estela oferecia-lhe uma parte do seu chocolate, mas ele recusava, com receio de não resistir a comprar um inteiro só para ele.
Estela e Raimundo eram de tal forma solitários que não só acabaram por prescindir de todas as suas amizades como chegaram a um ponto em que pouco ou nada tinham para dizer um ao outro. Quanto mais tempo ela demorasse a comer o seu chocolate, tanto melhor para ele. Ela prolongava o prazer de cada pedaço que se lhe derretia na boca porque sabia que só teria oportunidade de saborear outro no domingo seguinte. Além de que esta também era uma forma de não ter de arranjar motivo de conversa.
Logo que terminava o chocolate, Estela deixava-se ficar silenciosa, digerindo os restos que lhe adoçavam os intervalos dos dentes, enquanto notava em Raimundo um profundo respeito por todos os seus movimentos faciais até ao último resquício de doçura.
Havia momentos em que Estela tinha vontade de dar a mão a Raimundo, mas nunca o fizera para que ele não pensasse que ela alimentava a esperança de que o seu relacionamento, um dia, se tornasse mais íntimo.
Estela tinha a impressão de que Raimundo não gostava das mãos dela, por os seus dedos não serem finos nem longos. Ele referira uma vez que apreciava especialmente mãos femininas com dedos finos e longos e ela registara esse pormenor. Em casa, pusera-se a mirar as mãos e o comprimento dos dedos e tivera que concluir que estavam muito longe do padrão eleito por ele.
Por seu lado, Estela tinha uma especial predilecção pelas mãos de Raimundo. Eram grandes e fortes. Faziam-na sentir-se protegida. Mas tinha a certeza de que nunca as teria para ela. Nunca teria as mãos dele nem jamais o teria a ele.
Se continuavam a sair juntos aos domingos à tarde (ele com mais de sessenta anos de idade, ela à beira dos cinquenta), era por simples hábito. Durante os primeiros tempos, ela chegara a alimentar a esperança de que um dia viriam a casar. As pessoas comentavam o seu relacionamento como se se tratasse de um namoro e algumas chegavam a perguntar-lhe por datas e projectos. Ela sorria, agradecia a atenção, mas adiava respostas concretas. Fizera bem em ser cautelosa. Porque Raimundo nunca dera o passo em frente. Em anos e anos de convívio, nunca a beijara uma vez, sequer. Por fim, toda a gente percebera que aquele namoro se resumia a um passeio semanal pelo jardim. E olhavam para ela como quem olha para uma órfã.
Raimundo fora educado de forma severa. Em criança, o pai poucas vezes o levara a passear e quando o fizera nem uma guloseima lhe comprava, uma postura de que ele veio a vingar-se anos mais tarde com o chocolate que oferecia a Estela. Raimundo não tinha autorização de brincar com outros miúdos. Se fazia alguma pergunta ou pedia qualquer coisa, a resposta do progenitor era sempre a mesma:
Não digas asneiras!”
Raimundo preferia estar com a mãe. Falavam muito um com o outro, divertiam-se imenso. Mas perdeu-a, aos seis anos de idade. Quando regressavam das compras, de mãos dadas, a conversar descontraidamente, um carro despistou-se, colhendo a mãe no passeio e arrastando-a por uma distância de metros que pareceram quilómetros.
Nos primeiros momentos, Raimundo não percebeu o que acontecera. Pensou que a mãe lhe tivesse largado a mão para cumprimentar alguém que passara, pôs a hipótese de ela ter sido levada por um pássaro, imaginou que se tivesse esquecido de alguma coisa e voltado à loja de onde tinham acabado de sair.
Pôs-se a olhar em volta. Viu muita gente a correr na direcção de um veículo que batera na parede diversos metros à sua frente e pensou que mãe podia ter ido em socorro de alguma vítima.
Teve medo de se aproximar da confusão. Sentiu os cabelos curtos enregelados sob uma ventania agreste. Perdera subitamente a mão a que se agarrava. Não sabia onde estava, não conhecia ninguém. Deu dois passos, mas acabou por recuar. Viu a chegada de duas ambulâncias e pensou que dentro de momentos a mãe regressaria para junto dele. Esperou, mas a mãe não veio. Tinha sido levada por umas asas negras à sombra das quais a sua cabeça se diluía.
Quando Raimundo já corria o risco de definhar sob o peso da angústia que o fizera perder o rumo, uma mulher reparou nele e tentou ajudá-lo, mas Raimundo evitou-a, indo colar-se à porta da casa mais próxima, como se ali tivesse vivido desde sempre.
A polícia chegou e levou-o sem grandes protestos. Raimundo nunca falou, nunca se queixou, nem quando lhe foram comprar rebuçados e um dos guardas o sentou no colo prometendo comprar-lhe um automóvel a pilhas.
Ao fim de quase duas horas, o pai apareceu na esquadra para o levar e Raimundo limitou-se a acompanhá-lo. Nem a caminho de casa se atreveu a perguntar pela mãe. Enquanto observava as mãos grossas do pai sobre o volante, ia pensando: “Não digas asneiras…, não digas asneiras!”




4


A beleza foi o grande tormento da vida de Rute, foi o terrível acontecimento que condicionou todas as suas decisões. Chocantemente bonita, Rute nunca acreditou nos dotes com que a natureza a dotou. Pensou sempre o contrário, sobretudo quando alguém lhe dizia que era bela. Especialmente nessas alturas, pensava que a ridicularizavam.
O seu tormento tinha raízes na infância e na adolescência, quando a sua aparência não correspondia aos padrões de elegância e atracção geralmente aceites. Era magra, enfezada, alta, pernuda, arrapazada, desprovida de formas. Não tinha por onde se lhe pegasse.
Com o decorrer dos anos e com a rejeição que provocava junto dos rapazes, Rute convenceu-se de que o futuro não lhe reservaria grandes hipóteses. Interiorizou tão desfavoravelmente a sua fisionomia que, um dia, ao atingir os dezoito anos, já mulher perfeita, de feições correctas e delicadas, corpo imaculado, achou que se tinha tornado mais feia do que nunca, achou que perdera as características da adolescência a que se tinha acostumado e considerou mesmo uma afronta a sua eleição como rainha dos caloiros pelos colegas da universidade.
Passou-lhe tudo pela cabeça, menos que aquela tivesse sido uma eleição honesta e transparente. Imaginou manobras obscuras dos colegas para a amesquinharem, supôs que tivesse sido uma das muitas brincadeiras de mau gosto com que os alunos mais velhos costumavam divertir-se à custa dos caloiros, pôs a hipótese de ter havido um engano na contagem dos votos, tudo lhe veio à mente num torvelinho infindável de confusão e desespero.
Os colegas rodeavam-na, felicitando-a pela eleição, mas Rute só via escárnio e maledicência naquele comportamento efusivo.
Estou a viver um pesadelo”, dizia para si própria. “Isto não pode ser verdade”.
Para Rute, não era possível ser bonita quando se cresce feia e desprezível. Ela não podia ter-se transformado de um instante para o outro. Não fora objecto de qualquer metamorfose. Por isso, tudo indicava que estavam a escarnecer dela, ou, então, que a sua eleição fora um simples erro.
Naquela mesma noite, depois de regressar a casa, correu para o espelho e confirmou que a sua imagem era detestável e repelente. Tinha olhos quase amarelos, o que sempre a diferenciara de toda a gente, sempre a estigmatizara, sempre a deprimira. Nunca em momento algum da sua vida ouvira tecer elogios a uns olhos quase amarelos. O cabelo escuro, normalíssimo não tinha qualquer motivo de atracção. O nariz parecia talhado à faca, os lábios grossos e disformes, a fronte altiva e o queixo firme sempre lhe haviam dado um ar pouco feminino.
Pensou telefonar à mãe, para desabafar sobre o que lhe acontecera na universidade, mas acabou por desistir, para não aumentar o caos interior em que mergulhara. Rute estava habituada a que ninguém lhe ligasse, ninguém realçasse as suas qualidades, ninguém se importasse com o que fazia ou não fazia. Não a encaravam como rapaz, que o não era, mas também não lhe dispensavam as atenções habitualmente dadas às raparigas, porque não parecia ser uma delas.
Rute fora sempre vista com indiferença, até pelos pais, que na sua adolescência tudo fizeram para evitar que ela viesse a sentir-se ainda mais horrível do que era. Se dissessem que era bela, estariam a mentir. Se dissessem que era feia, estariam a torturá-la com a verdade. Por isso, a indiferença terá sido o melhor caminho que encontraram para lidar com aquele caso.
Os dois irmãos de Rute, ainda por cima, eram tão bonitos e atraentes que as miúdas da vizinhança nunca se cansavam de lhes bater à porta, convidando-os para irem ao cinema ou para darem um passeio. Por vezes, ela pensava se a natureza não a teria trocado de berço com os irmãos. Parecia mesmo que Rute era uma rapariga com um corpo errado, com um corpo de homem. Quantas vezes desejou ter nascido rapaz.
Rute cresceu com a plena convicção de que algo correra mal durante o período que passara no ventre da mãe. Mas aceitou esse facto. E nunca admitiu discuti-lo.
No dia em que foi eleita rainha dos caloiros da sua universidade chorou inconsolavelmente no ombro da única amiga que tinha.
Não podes reagir desta maneira”, dizia-lhe Berta, que era bonita, mas estava longe de chegar aos calcanhares de Rute. “Aceita a eleição como algo de bom para a tua vida. Por que não hás-de perceber que és atraente para os rapazes? Esquece o passado. Hoje, és uma mulher diferente. Assume-te como és. A partir de agora, terás mais pretendentes do que nunca.”
Não te lembras de que me chegaram a atirar pedras, dizendo que eu tinha olhos de boi? Não me admiraria que alguns deles, hoje, tivessem votado em mim. Como queres que esqueça? Como queres que acredite? Como queres que reaja? Julgas que sou parva e que não conheço as pessoas que me rodeiam?”
Estás a ser tola”, respondeu-lhe Berta. “Foste eleita rainha dos caloiros e pões-te a chorar! É ridículo.”
Não faz sentido!”, argumentou Rute. “Sei que estão a gozar comigo! Se sempre fui feia, não há motivos para que agora me considerem bonita. Esta é a maior humilhação que me podem fazer! Parva seria eu se me deixasse levar, se me pusesse agora a rir e saltar de felicidade. Não me poderiam ter feito coisa pior. Olha para mim, olha para as minhas pernas magras, para as minhas mãos esqueléticas, para os meus lábios grossos. Repara nestes meus olhos amarelos! Por favor, não tentes convencer-me de uma coisa que só pode ser mentira. Se és minha amiga, não te ponhas do lado daqueles que me amesquinham. Prefiro continuar a ser feia como sempre fui.”
Estás cega! O trauma da infância impede-te de reconhecer que, hoje, és uma mulher lindíssima”, insistia a amiga, consolando-a e abraçando-a. “Deixa-te de tolices. Vamos dar uma volta. Deves convencer-te de que as coisas mudam. Há pessoas feias que se tornam bonitas e pessoas bonitas que se tornam horríveis. Tu pertences às primeiras. Foste eleita a mais bela, mete isto na cabeça. Percebo que te custe, mas faz um esforço.”
Os rapazes nunca quiseram nada comigo. Quando aparecia em algum lado, até fugiam, como se eu cheirasse mal ou tivesse alguma doença contagiosa.”
Mas Berta replicava que isso acontecera noutro tempo, que hoje ela se tornara uma mulher irresistível para qualquer homem.
Rute riu desproporcionadamente, enquanto enxugava as lágrimas, mas sem deixar de chorar, como se as lágrimas fossem a consequência lógica das suas gargalhadas sem propósito.
Acredita que este é o dia mais infeliz da minha vida. Tenho a certeza de que me elegeram para me fazer sofrer mais do que tudo o que já sofri. Um dia que conquiste alguma coisa hão-de sempre dizer que o consegui por ser bonita, por ter ido para a cama com este e aquele. Não está certo. Se não me candidatei a nada não devia ter sido eleita. Agora, serei sempre suspeita. Nunca mais terei um momento de sossego. Já imaginaste o que é seres perseguida por homens que não conheces de parte alguma e que não param de te provocar e mandar bocas, ainda por cima sabendo que não estão a ser sinceros?!”
Estás a exagerar…”, retorquia a amiga.
Mas Rute não se conformava. Sentia-se mais incompreendida do que nunca. Sabia que a beleza era um sonho de todas as mulheres, mas também achava que essa era uma circunstância que se podia tornar uma verdadeira tortura. Por isso, nunca recorrera à ajuda de maquilhagens, pinturas e vestes provocantes. Não fazia sentido que uma jovem feia passasse, de repente, a ser bonita, só porque a moda tinha alterado os cânones de avaliação da beleza.
Estava disposta a recusar o cargo de rainha dos caloiros. No dia seguinte, procuraria o responsável pela associação de estudantes e informá-lo-ia da sua indisponibilidade para aceitar o resultado da eleição. Escolhessem outra. Ela não estava na disposição de se deixar levar por semelhante paródia. Considerarem-na bonita era a pior ofensa que lhe podiam fazer. Não queria alimentar falsas expectativas sobre ela mesma. Naturalmente, e quando chegasse a altura, feia que era, feia que sempre seria, havia de escolher um companheiro entre os seus pretendentes e levaria uma vida normal, sem sobressaltos. Nascera feia e feia haveria de morrer.




5


Parecia impossível que a ambulância ainda não tivesse chegado. Já tinham passado quarenta e cinco minutos sobre o meu telefonema. Se eu estivesse a morrer, bem poderiam mandar de vez o carro funerário.
A indisposição que eu sentira já se tinha praticamente extinguido, mas eu recebera instruções para, ao menor aviso, recorrer ao hospital.
Na sua idade, o mais pequeno sintoma pode ser um aviso…”, dissera-me um médico da última vez que eu recorrera aos seus serviços e a própria Rute não se cansava de me aconselhar e avisar sobre indícios.
Voltei a ligar-lhe, mas ela continuava a não atender. Não havia sinais de Rute nem da ambulância.
Eu cansara-me de brincar aos automóveis que aceleravam por entre as dobras do lençol. Até me doíam os lábios de tanto roncar, travar, guinchar, apitar, avançar, travar de novo. Usei os dedos da mão esquerda, depois os da direita, imitei ambulâncias, camiões, veículos desportivos, até motorizadas com um dedo deitado que se inclinava nas curvas mais apertadas. Lembrei-me dos meus tempos de criança e senti a distância dos anos, apesar da semelhança que havia na brincadeira dos dedos que imitavam automóveis correndo sobre a cama. Na infância, quando eu adoecia, entretinha-me igualmente com bonecas que escondia sob as dobras do lençol e dos cobertores. Meu pai não gostava de me ver brincar com bonecas. À noite, quando vinha saber como eu estava de saúde e dar-me um beijo, sugeria que eu me divertisse com livros, cadernos e lápis de cor, que ele se encarregava de espalhar sobre a minha cama, como se estes tivessem o condão de me baixar a temperatura.
A prolongada ausência de Rute intrigava-me. Não imaginava os motivos que podiam explicar o seu afastamento por tantos dias. Sempre nos déramos bem e mesmo quando discordávamos aceitávamos que essa era a regra do nosso convívio.
Quando não a tinha comigo, ocupava muitas vezes o espírito com a história da sua vida, a lembrança de tudo o que ela me fora contando.
Algum tempo após a sua eleição para rainha dos caloiros, uma decisão que foi mantida, apesar dos protestos de Rute, e depois de muito reflectir sobre se era realmente bela, ou não, e sobre quais as consequências de uma ou outra condição, Rute deixou de sofrer por ser bonita. Ou melhor, passou a ostentar um sorriso permanente. Era um sorriso de dor, mas ela achava que ninguém se apercebia disso.
Havia ocasiões em que sorria tanto que chegava a ser difícil suportar a sua expressão facial por saltar à vista que era a dor, e não o prazer, que a levava a ter semelhante reacção. Rute ria tanto e tão permanentemente que chegava a fazê-lo em algumas circunstâncias dramáticas ou mesmo junto de muitos leitos de morte, com o argumento de que era preferível as pessoas partirem realizadas e felizes em vez de tristes e desesperadas. Rute habituou-se de tal forma a sorrir que passou a fazê-lo sem saber a que propósito. O sorriso ficou-lhe como uma espécie de imagem de marca, que passou a constituir a sua linguagem natural, a prova da sua tragédia interior. Rute tinha encontrado um caminho no mundo, o de sorrir.
E não arredaria pé do seu destino, mesmo sabendo que era quase impossível não ver que a alegria com que se apresentava em todos os sítios e momentos era o sinal fulminante da sua grande mágoa. O seu sorriso, porém, era de tal maneira suave, etéreo, espontâneo, quase sobrenatural, que ninguém ousava pô-lo em causa. Rute sorria tão do fundo da alma que era impossível alguém não se sentir cativado pelo magnetismo que exalava da sua face. Provavelmente, sorria daquela forma para compensar a fealdade que julgava ter. Era como se dissesse: “sou feia, mas sorrio”. A sua expressão era de tal maneira poderosa que, aos olhos de muitos, fazia dela a mais bela mulher do mundo.
Ao longo dos anos, Rute relacionou-se com vários homens, mas eles abandonavam-na, ou então ela despachava-os. Muitos desistiram de a conquistar por a considerarem demasiado rebelde e bonita. Para Rute, no entanto, se desistiam dela, isso queria dizer que a sua beleza era um logro. Se não o fosse, persistiriam em conquistá-la.
Mas ela também desistiu de muitos por não acreditar neles quando afirmavam que a sua beleza era inigualável. Rute não admitia que a quisessem apenas na cama, não admitia que o mundo se resumisse a um vale de lençóis. Por isso, também se sentia no direito de tratar os homens como achava justo.
Quando os recebia no apartamento que habitava sozinha, oferecia-lhes café, chá, cerveja, ou o que fosse, e passavam o serão a conversar na cozinha, quase sempre, pela noite dentro. Se saíam a passear, durante o dia, ela permitia-lhes um ligeiro toque na mão, caso fossem a pé; ou na perna, caso fossem de carro. Não mais do que isso. Se eles procuravam ser mais afoitos, ela ameaçava desatar aos gritos ou sair do carro em andamento. E nem nessas ocasiões deixava de sorrir. Mesmo quando se deixava contrariar por alguma situação, Rute sorria cheia de luz.
Todavia, eles não desistiam de querer mais, não hesitavam em visitar Rute, convictos de que, tarde ou cedo, conseguiriam deitar-se com ela. Por isso, punham-se de conversa, imaginando que a sua resistência lhes aumentaria as possibilidades de sedução. Ao ouvi-los falar, Rute ria, ria muito, ria sempre… demonstrando grande interesse e envolvimento nos assuntos. Os seus olhos chispavam e todo o seu corpo vibrava durante as longas conversas com os homens que a pretendiam seduzir.
Rute não tinha assunto de conversa preferido. Qualquer tema a maravilhava. O que ela queria era ouvir dissertar sobre as mais diversas matérias, desde profissões e desportos a questões pessoais. Depois, ela também falava, falava, por tempos sem fim. O seu prazer estava em falar e ouvir. Sabia ouvir, sabia falar. E sabia sorrir.
Rute contava a sua vida a qualquer pessoa, o que contribuía para dar aos homens a ideia de que estava interessada num envolvimento íntimo. Mas ela não tinha a mesma interpretação. Se se abria e expunha era porque não sabia ser de outra maneira. Falava dos pais e dos irmãos, do passado, dos amigos e de desporto, das expectativas que alimentava, dos sonhos, dos desgostos. Quando lhe diziam que era bonita, negava-o com veemência, lembrando quanto sofrera em criança e na adolescência precisamente por ser feia e detestável. Rute contava tudo, os pormenores, os vexames, as dúvidas, os projectos de suicídio, as lágrimas que derramara, as incompreensões, os desânimos. Nada escondia. Achava que era melhor dizer tudo, nem que fosse para ficar a conhecer as reacções do interlocutor. Ao ouvirem-na falar dos seus complexos e da revolta com que crescera, muitos consideravam-na perdida. Outros sentiam aumentar a atracção por ela.
Em qualquer dos casos, era fácil chegar a uma altura em que as conversas se orientavam para o sexo, um tema que ela apreciava especialmente. Se alguma coisa a entusiasmava era conversar sobre sexo.
Rute adorava falar de sexo, como se pudesse experimentar nas palavras o prazer que nunca experimentara no corpo. Mas se não o experimentara foi porque não quisera, pois não faltava quem a desejasse na cama.
Nos seus encontros com homens, o tema de conversa era frequentemente sem importância, mas era mais do que certo acabar no sexo.
Eles adoravam falar de sexo com ela pensando que acabariam por conseguir convencê-la a praticá-lo. Mas ela não ia na conversa. Só falava de sexo. Não dava o passo seguinte, não se atrevia a partilhar a intimidade. Em certas alturas, até, dava a entender que possuía alguma experiência sexual, para que o homem com quem estava não a pensasse completamente desprovida da noção do real. Mas a verdade é que Rute nunca tivera uma relação sexual completa.
Vivia as conversas como se fossem verdadeiros actos sexuais, parecendo que tinha orgasmos a seguir uns aos outros. Talvez por isso o sexo com ela nunca passasse de palavras. Era um sexo apenas falado, mas de qualidade, cheio de comentários, partilha de emoções, risos, expressões de admiração, concordância, afagos na mão e na face, piadas oportunas, cumplicidade.
És um amor!”, dizia ela, por vezes, de olhos brilhantes, ao homem com quem estava, prometendo nunca esquecer aquele instante. “Adoro os teus ombros, a tua cintura…”, uma expressão que deixava qualquer um confundido e atrapalhado com a contagem dos minutos que faltariam para que se concretizasse o acto por que tanto ansiava. Não muito tempo depois, contudo, Rute esboçava um pequeno bocejo, olhava para o relógio de forma subtil e, denotando perplexidade, dizia que não dera pelo tempo passar:
São duas da manhã!”, acrescentava, sem se esquecer de recorrer a um sorriso que denotava tolerância com as travessuras do relógio.
Não era possível resistir ao encanto com que dominava cada momento de conversa. A sua beleza tinha o poder mágico de tudo submeter aos seus desígnios. Rute geria o tempo de forma subtilmente avassaladora. Era dessa postura que parecia arrancar todo o prazer.
Até perceber que eram nulas as hipóteses de conhecer a íntima fronteira de Rute, a maioria dos homens demorava semanas, meses. Para eles, era difícil entender que uma mulher aceitasse falar de sexo abertamente e na prática rejeitasse qualquer aproximação física. Por isso, muitos insistiam em tentar uma e outra vez, na esperança de que, um dia, ela passasse das palavras aos actos.
Rute acompanhava-os em tudo o que diziam, discutia pormenores e, muitas vezes, ia ao ponto de os levar para a cama, onde a conversa podia ser mais agradável, segundo ela própria dizia.
Aqui está mais quentinho…”, sublinhava, afagando a colcha sobre o colchão, um gesto que os deixava cheios de esperança. Não poucos, até, nessa altura, chegavam a ir à casa de banho onde aproveitavam para fazer um telefonema a informar que naquela noite dormiriam fora. Ao verem a ternura com que Rute os conduzia ao seu quarto, não lhes passava pela cabeça que a madrugada não os viesse encontrar confortavelmente instalados entre os lençóis dela.
Rute levava-os para a cama, só que os obrigava a ficar sentados a cerca de meio metro de distância, conversando durante tempos infindos. Eles doidos para avançarem sobre ela e ela, firme, sem os deixar aproximar-se. Na cama, Rute nem se despia. Nem um beijo ou um simples apalpão consentia. Apenas estava disposta a conversar, deitada, como se estivesse sentada na cozinha ou na sala de estar. Com todo o decoro e pruridos.
Os que a tentaram seduzir, despir, beijar, foram sempre implacavelmente repelidos, por entre zangas, berros, discussões. Certa vez, ela pontapeou um vizinho que a viera visitar e que se tornara mais atrevido, deitando-se sobre ela na cama e metendo-lhe a mão entre os seios. Um pontapé que o deixou estatelado no meio do quarto e o fez regressar a casa antes que ela tivesse tempo de pedir desculpas pelo sucedido.
Quem chegava à cama de Rute, não admitia facilmente ser rejeitado sem uma explicação. Mas ela achava que os homens não tinham nada que a obrigar a fazer sexo, achava que já tinha sido muito cordial ao convidá-los a partilhar o seu leito e então despedia-os com naturalidade, sem remorsos, alegando que estava com sono e que no dia seguinte o trabalho a esperava.
Eles não percebiam. Antes de serem delicadamente mandados embora, alguns ainda punham a hipótese de tudo aquilo não passar de uma brincadeira, de um divertimento, de uma partida, mas quando a viam avançar resoluta em direcção à porta de saída, compreendiam que nada mais lhes restava senão cumprir a vontade dela.
Havia quem, mesmo depois de rejeitado, não hesitasse em sentir-se feliz só por ter estado na cama de Rute. Podia não ter conseguido mais do que estar a meio metro dela, podia não ter feito nada, podia ter apenas aspirado o seu perfume, mas considerava-se satisfeito por ter experimentado o seu colchão. Era o colchão da mais bela mulher do mundo! A frustração de estar tão perto dela e não ter possibilidades de lhe tocar era tão grande que o contacto directo com a sua cama acabava por ser compensador.
Certa noite, um conhecido da universidade que a fora visitar (e que prometera a si mesmo não desistir antes de consumar o acto com Rute) sentiu-se indisposto no fim do serão e disse-lho no momento em que se despedia, mas Rute pensou que ele estava a simular a indisposição na esperança de ela o convidar a passar a noite em sua casa. Não hesitou em pô-lo na rua, onde o homem desmaiou sobre o passeio, sendo apenas socorrido de madrugada. Para Rute, quem realmente a amasse nunca desistiria de a conquistar, por maiores que fossem as provações e dificuldades. Ela achava que tanto maior seria o amor quanto mais intenso fosse o sacrifício. Por isso, ao longo dos anos, percebendo que a amizade, por vezes, era uma forma grosseira de penetrar na intimidade alheia, fartou-se de empurrar homens pela porta fora.




6


Apesar da sua notável saúde, Raimundo arrastava os pés, provavelmente, para saber como seria quando não pudesse mesmo deixar de os arrastar, o que não deixava de ser uma estranha forma de preparação para o fim que o esperava. Ao antecipá-lo, acabava por parecer mais velho do que realmente era, mas, ao mesmo tempo, surpreendia porque era mais novo do que aparentava. Era como se gostasse de apostar na ilusão, para que não adivinhassem o que faria a seguir.
Mas isto não era tudo. Raimundo também era capaz de arrastar os pés para atrair a atenção de Estela. Ela seria a única pessoa capaz de se preocupar com ele. Aconselhava-o a ir ao médico, embora sabendo que ele nunca o aceitaria, mas a simples sugestão dela, porém, já o fazia sentir-se melhor. Ele sabia que não precisava de ir ao médico porque o seu arrastar de pés era um hábito diário. Se estivesse afectado por um mal maior não teria coragem de o dizer a Estela, para que ela não sentisse que corria o risco de o perder.
Se Raimundo tivesse arrastado os pés no dia em que fora às compras com a mãe, talvez ela não tivesse sido apanhada pelo carro que lhe tirou a vida. Mas o pai não se cansava de lhe dizer para andar mais depressa, para acelerar o passo:
Mexe-te! Mexe-te!”, dizia quando o acompanhava a algum sítio.
Arrastar os pés, agora, contribuía para que Raimundo se sentisse melhor consigo próprio. Como se tivesse que penitenciar-se por alguma coisa. Nem que fosse apenas para contrariar as antigas ordens do pai.
Depois do jantar, costumava passear pelo quarteirão, arrastando os pés pelas ruas molhadas, a fim de algum larápio não reparar nele. Fazia-o de preferência em noites de chuva, para reduzir as hipóteses de ser notado.
De chapéu na cabeça, curvado dentro da gabardina amarrotada, dificilmente alguém se interessaria por ele. Nunca trazia consigo objectos de valor (não os tinha), nem trazia dinheiro para não correr o risco de o gastar em alguma tolice ou de lho roubarem numa qualquer esquina mal iluminada.
Só usava o carro para fins profissionais, em deslocações a lugares mais distantes. A poupança de combustível era um dos seus princípios de vida. Sempre que possível, ia a pé, apesar de saber que isso aumentava a probabilidade de se deparar com alguém que lhe pediria ajuda, mesmo debaixo de chuva. Geralmente, quando tal acontecia, Raimundo prometia pensar no assunto, a ver o que poderia arranjar. Mas o que fazia era informar-se sobre as posses do necessitado. Se tinha propriedades, Raimundo aceitava emprestar dinheiro, a troca de uma hipoteca. Se não tinha nada, Raimundo alegava indisponibilidade financeira para o auxílio. Não foram poucas as vezes em que preferiu não voltar a ver o dinheiro que emprestara e assumir a propriedade do imóvel. Nunca emprestara um tostão a troco de nada e não tencionava vir a fazê-lo. Se conseguira amealhar riqueza ao longo dos anos, os outros também podiam proceder da mesma forma. Tão importante como trabalhar era não gastar o que se ganhava.
Raimundo privara-se de uma quantidade de coisas, raramente entrava num estabelecimento comercial, procurava não olhar para as montras quando passava na rua para não ser tentado a comprar isto ou aquilo, por isso não se sentia obrigado a ajudar quem precisava.
Também era cada vez menor o número dos que o importunavam. Porque muita gente acabara por se aperceber dos riscos que corria ao pedir-lhe ajuda. Quem o conhecia respeitava-o pela sua posição, ou ria-se dele, mas acabava por não se aproximar. Se alguém o abordava, porém, Raimundo limitava-se a ouvir, cordialmente, como se a conversa fosse com outro e ele estivesse ali por mero acidente. Logo que tinha oportunidade, despedia-se e afastava-se, desaparecendo por entre a neblina da chuva.
Sempre que saía, à noite, durante a semana, Raimundo passeava sozinho. Passeava com ele próprio como se fosse o cão de si mesmo. Para além das noites chuvosas, preferia as frias, quando se via pouca gente nas ruas. E, se saía, era apenas para não estar permanentemente em casa. Saía para se sentir igual aos outros, que preferia não ver, sabendo embora que a sua forma de estar no mundo em nada coincidia com a da maioria das pessoas.
Enquanto caminhava, procurava não pensar, tentava distrair-se, desanuviar, mas raramente o conseguia. Vinham-lhe à cabeça números, extractos bancários, despesas que devia reduzir, oportunidades de investimento.
Olhava os prédios das ruas por onde passava e tentava calcular o custo de construção e manutenção de cada um, quantas pessoas residiriam neles e qual o valor das rendas que os proprietários dos imóveis receberiam. Já tinha feito os cálculos por mais de uma vez, mas entretinha-se a verificar de novo preços de materiais, salários, horas de trabalho, seguros, consequências financeiras de eventuais greves. Às vezes, discordava de uma análise que ele próprio fizera, achava uma patetice ter chegado a determinada conclusão, ria-se sozinho de um pormenor que o levava a uma descoberta importante.
O nariz pingava-lhe, assoava-se, receava constipar-se ou engripar. Acelerava o passo de regresso a casa. Sentia-se como se tivesse falado com meio mundo, como se tivesse desabafado, como se lhe tivesse saído um peso de cima.
Sentava-se à mesa para programar o dia seguinte. Se previa alguma viagem de carro, consultava o mapa para descobrir o caminho mais curto para o sítio pretendido. Anotava os telefonemas que precisaria de fazer, organizando-os conforme as prioridades. Tinha sempre a cabeça cheia de planos e projectos, embora nunca chegasse a concretizar muitos deles por considerar que implicavam despesas excessivas ou por, a dado momento, lhe parecerem demasiado arriscados.
As operações imobiliárias eram o seu forte. Raimundo só avançava para um negócio depois de estudadas todas as hipóteses, mesmo as mais remotas, e quando não lhe restavam praticamente dúvidas de que não havia solução mais em conta.
Dizia que sim aos interlocutores com quem negociava, manifestava sempre interesse, se fosse necessário começava por realçar as virtudes da propriedade, em vez dos defeitos, costumava mesmo dizer que o preço era bastante acessível quase dando a entender que houvera subavaliação do imóvel, mas esta era uma estratégia que apenas durava enquanto a burocracia seguia o seu curso. Logo que se aproximava a data da ida ao notário para a efectivação da escritura, Raimundo começava por desnortear a outra parte, aparentando súbito desinteresse pelo negócio, denotando hesitações, dizendo que tinha de pensar melhor no assunto ou simplesmente não atendendo o telefone.
Esta era a altura em que começava a negociar realmente. Quando o vendedor já pensava ter tudo resolvido, Raimundo inventava problemas, alegava dificuldades financeiras, confessava-se arrependido, dizia que tinha visto um imóvel em tudo semelhante na mesma zona por quase metade do preço e pintado de uma cor que lhe agradava bastante mais, tudo isto sem contudo desistir do negócio, o que levava a outra parte ao desespero.
As coisas não estão fáceis…”, dizia. “Não leve a mal a minha hesitação, mas deixe-me pensar mais uns dias...”.
Vendo o negócio prestes a ir por água abaixo, o vendedor pensava na hipótese de o anular, mas acabava por reconsiderar, quando se punha a contabilizar perdas, arrelias, gastos com documentos, tempos de espera e, sobretudo, quando se punha a pensar na inevitabilidade de ter que recomeçar tudo do início, voltar a anunciar nos jornais, voltar a mostrar o imóvel, voltar a discutir valores, levantando eventualmente dúvidas ou suspeitas no mercado por ainda não o ter conseguido vender.
Em poucos dias de enervamento, o proprietário do imóvel concluía que não tinha margem de manobra para fazer a venda a outro que não a Raimundo, nem que fosse pelo facto de não lhe interessar desfazer uma transacção que estava à beira de se concretizar. Se o desfizesse, o mais certo era o prédio acabar por se desvalorizar, em resultado das desconfianças que o cancelamento do negócio provocaria. Por isso, era preferível consumar a operação com Raimundo, nem que fosse necessário acertar com ele um novo preço.
Chegado a este ponto, Raimundo percebia que os ventos lhe passavam a correr de feição, mas nem assim dava mostras de recuperar o entusiasmo pela transacção. Aproveitava a quebra anímica do outro para manter o assunto de pé, mas insistia em lançar as mais diversas dúvidas, chegando a fazer exigências disparatadas como a mudança de notário ou a alteração da cor do prédio. Fazia-o só para manter a venda sob tensão, uma vez que não tencionava ver cumpridas as suas exigências.
Quando a outra parte já não tinha para onde se virar, quando já não sabia o que fazer, Raimundo reposicionava-se, voltava a mostrar interesse pelo negócio e assim tudo se resolvia como inicialmente fora pensado, excepto o preço do imóvel que sofrera uma descida apreciável.




7


Não percebo se sou homem ou mulher. Nem o meu nome, Lis, ajuda. Sempre foi este o grande drama da minha vida. Umas vezes sinto-me homem, outras vezes sinto-me mulher. Não encontrei o ponto de equilíbrio entre estas duas possibilidades. Acabo por não ser nada, na prática. Porque não me assumo como homem, nem como mulher. Andei sempre a fugir de um lado para o outro. Sempre a fugir de mim. Quando liguei, há pouco, para o hospital, tive dificuldades em posicionar a voz. A dado momento, fiz voz grave, mas logo a seguir tornei-a mais aguda. Do outro lado da linha devem ter pensado que eu devia estar com problemas de garganta. Também procedi assim para que não me colocassem demasiadas perguntas, o que resolvi, pondo-me a tossir junto ao bocal do aparelho.
Sinto atracção por mulheres e por homens, mas ser homem ou ser mulher não é só sentir atracção pelo género oposto. Se o fosse, bastaria satisfazer esse desejo com uns e com outros, como fiz muitas vezes.
Ser mulher ou ser homem é uma natureza íntima, um estado de espírito, uma forma de inteligência e sensibilidade. Não é uma questão exterior que se resolva com alguém, conhecido ou estranho, é matéria pessoal, profunda, decisiva, de nós para nós, que se define ou não se define.
O problema começa na adolescência, quando despontam as identidades feminina e masculina. Nessa idade, dei-me com rapazes e raparigas, procurei ser uns e ser outros, conforme as situações, os desafios, os desejos. Comecei à deriva. Depois, acabei por não perceber o que se passava comigo.
Acho que foi esta a razão que me fez dedicar ao ensino. Para me tentar compreender de fora para dentro, aumentando o meu campo de vida através dos outros.
Não há nada que me incomode tanto como não saber quem está dentro de mim. É um verdadeiro inferno. É como ter o coração nas mãos do inimigo.
Tenho um sexo definido, um sexo exacto, um sexo normal, um sexo que funciona, mas o órgão genital, só por si, não me parece suficiente para definir uma personalidade. De resto, não vejo grande diferença entre os órgãos reprodutores de uma mulher e de um homem. Nos homens, o clítoris é apenas maior do que nas mulheres. O sexo dos homens é todo e apenas clítoris. Por isso, eles só pensam naquilo, no sexo. Querem sexo, sexo e apenas sexo como as mulheres que se sentem revoltadas por terem um pénis de dimensões tão reduzidas.
Mas a identidade não é uma questão de dimensão, de tamanho, de medida, muito menos de órgão sexual. A identidade é uma questão de consciência.
Apesar de sempre ter tido prazer com mulheres e com homens, nunca fiz uma opção clara. Preferi sempre manter os dois géneros em mim. Mas isto também significa que não tenho sido completamente homem, nem completamente mulher, o que talvez explique o facto de eu nunca me ter sentido à vontade na companhia de uns nem de outros.
Em reuniões sociais, que há muito não frequento, sentia-me normalmente fora do sítio. Eles impulsivos (querem resolver tudo no momento) elas triviais (procuram adiar tudo para outra altura). Uma vida insuportável. Nem uns nem outros expõem a sua verdadeira forma de ser e de pensar porque receiam ser punidos. Até na cama se inibem, como se estivessem a ser vigiados.
Não há verdade nas palavras do quotidiano. Só indícios. Por isso, não vejo outro caminho para além do ensino, para tentar construir alguma coisa.
Ao fim de anos, a solidão tomou conta de mim. A solidão de não saber quem pode estar, ou não, comigo. Sinto que nada me falta, ou que até possuo mais do que aquilo que sempre ambicionei, mas é precisamente essa sensação que mais me incomoda e aflige. Por vezes, penso em dar cabo da vida. Há momentos em que me apetece resolver o assunto pelas minhas próprias mãos. Mas nunca chego a dar o passo decisivo. Penso nos alunos que tive e desisto. Quando penso nos milhares de jovens que conheci nas salas de aula, sinto-me outra pessoa. Como se os seus espíritos sedentos me invadissem repentinamente. É como se deixasse de ser eu para ser eles. Nessas alturas, não tenho mãos a medir. O coração bate-me aceleradamente, deixando-me com imensa vontade de continuar.
Quando estou só, sinto que nada faço no mundo e apetece-me ir embora. Porque tudo desaparecerá – até a arte – na grande fogueira cósmica em que havemos de perecer. E se tudo desaparecerá por que razão hei-de estar à espera?
Temos hipóteses de ir viver para outros planetas, com certeza, provavelmente fora do sistema solar, fora da galáxia. E não me restam dúvidas de que acabaremos por fazê-lo. Mas esses planetas e sistemas estelares também terão o seu fim. De outra forma, não dariam origem a novos universos. É preciso que terminem, um dia, para que a multiplicação se perpetue.
Os humanos nada acrescentam ao cosmos. E é esta inutilidade absoluta que me faz ter vontade de partir. Aqui, não faço nada, a não ser esperar, o mesmo que nada, nada mesmo – um nada que, porém, me segura – como se me restasse uma esperança baseada em coisa nenhuma.
Estamos condenados a perceber apenas parte das coisas. À medida que acumulamos experiência vamos aumentando o nosso campo de compreensão, e isto não deixa de ser estimulante, mas nunca atingiremos a compreensão do todo. Se o conseguíssemos, tornar-nos-íamos no próprio todo. Podemos aumentar a parte, torná-la maior, mas o que sabemos nunca deixará de ser uma parte.
Esta é talvez a minha última oportunidade de descobrir quem vive dentro do meu corpo, a quem pertence a minha alma. Contando tudo, abrindo-me, talvez consiga saber, talvez consiga detectar o momento em que a identidade se afirma sem contemplações.
Penso que minha mãe desconfiou do que se passava comigo, embora nunca me tivesse tocado no assunto. Nem jamais soube que tenha falado com alguém para esclarecer eventuais dúvidas, ou com fins de simples aconselhamento. Nem com o meu pai acredito que tenha trocado opiniões. Acho que preferiu não correr o risco de abrir feridas na minha alma e na dela. Foi pena que não tivesse tentado explicar-me. Poderia ter-me ajudado, mesmo desconhecendo os motivos do que me perturbava, afligia, confundia.
As mães são a nossa única certeza. A minha teve receio de se confrontar com a natureza que em mim gerou. Talvez receasse que, ao desvendar-me, pudesse descobrir algo sobre ela mesma, sobre os seus meandros menos visíveis.
Por vezes, ela olhava-me de uma forma tão penetrante que eu chegava a sentir vertigens. Mas olhava-me sem se dar conta de que eu não só me apercebia disso como praticamente me deixava afundar no reflexo do seu instinto.
Mãe!...”, cheguei a dizer uma vez, quase ganhando coragem para lhe abrir o meu coração.
Mas quando me via a transbordar de sinceridade, ela preferia esquivar-se, como se me considerasse um caso sem solução, ou como se fugisse dela própria, como se não ousasse ver-se ao meu lado no espelho.




8


No dia em que fiz quarenta e dois anos de idade, encontrei uma criança de olhos grandes e lindas bochechas junto à porta do meu prédio. Era uma menina com saia branca pintalgada de bolinhas vermelhas que parecia estar à espera dos pais ou de algum irmão mais velho.
Enquanto metia a chave à porta, fiz-lhe uma festa na cabeça e segui o meu caminho para casa. Mas quando me preparava para subir o primeiro lanço de escadas, ouvi uns passitos miúdos nas minhas costas e uma vozita que dizia:
Chamo-me Rita”.
Quantos anos tens?”, perguntei-lhe, detendo o passo, ao que ela me respondeu erguendo quatro dedinhos à frente do rosto. “Estás muito crescida para a tua idade”, comentei e voltei a afagar-lhe os cabelos, pondo-me a subir a escada.
Quando me detive à porta de entrada para o apartamento, contudo, reparei que Rita continuava a seguir-me:
Posso ficar na tua casa?”, perguntou-me ela, com a sua vozinha cândida atravessada por um fio de medo.
E os teus pais? Onde estão os teus pais?”
Não sei…”, replicou, dirigindo-me um sorriso cintilante.
Mandei-a entrar, dei-lhe um copo de leite e procurei saber exactamente o que se passava. Rita pouco ou nada me adiantou. Respondia a tudo o que eu lhe perguntava, mas sem nenhuma precisão, olhando-me com grandes sorrisos cheios de água, à espera das minhas reacções.
Deixei-a dormir em minha casa naquela noite. No dia seguinte, articularia ideias e decidiria como proceder.
Só que ela acabou por ficar. A sua afabilidade convenceu-me. O seu riso e os seus olhos de água. Claro que eu devia ter contactado as autoridades, mas preferi correr o risco de não o fazer. Se, um dia me descobrissem, não havia de ser por isso que me prenderiam ou condenariam. Se tal acontecesse, aliás, nessa altura eu havia de encetar o processo de adopção de Rita.
A minha vida mudou radicalmente. Passei a ser mãe e pai de uma menina que me tinha caído do céu. Tive que fazer mudanças em casa, entretê-la a toda a hora, arranjar-lhe um quarto, comprar-lhe roupa e brinquedos, preparar-lhe as refeições, matriculá-la numa escola. Os meus dias tornaram-se acelerados e luminosos. O que antes me acabrunhava passou a divertir-me. Tudo por causa de Rita e pela alegria contagiante de lidar com as coisas mais insignificantes, um gancho de cabelo, um botão, um carro de linhas.
Rita andava sempre a correr pela casa, fazendo barulho, cantando, dançando. Com ela, deixou de haver espaço para a tristeza. Por vezes, eu receava que, mais dia menos dia, os pais dela aparecessem a exigir-me que lha devolvesse, e imaginava fugas, perseguições em auto-estradas, buracos na floresta onde me esconderia com ela, mas logo a seguir, caía em mim e compreendia que o meu dever era agir de acordo com os interesses de Rita e que me competia saber avaliá-los sempre e em todas as circunstâncias.
Os anos passaram e ela foi crescendo. Com nove anos de idade, houve um dia em que me pediu para dormir em casa de uma amiga de escola. Acedi, sem suspeitar que nessa noite me veria numa aflição para adormecer. O silêncio que enchia os quartos fazia-me lembrar uma série de túmulos com portas que comunicavam entre si. A ausência de Rita era um fantasma medonho, uma tristeza inimaginável. Pensei que não suportaria tanto vazio, pensei ir buscá-la de volta a meio da noite, pensei que poderiam ter engendrado um esquema para ma raptarem.
Nos anos que se seguiram, Rita ficou por diversas vezes em casa de amigos da sua idade e nunca deixei de sentir a angústia que me invadiu na primeira noite em que dormi sem ela. Frequentemente, mesmo quando estava apenas na escola, eu sentia uma profunda amargura por Rita não se encontrar a meu lado. Sofria que me fartava quando não sentia a sua respiração por perto. Durante o tempo que viveu comigo, ela foi um mundo sempre novo para mim.
Por volta dos quinze anos, passou a sair regularmente à noite, para ir ao cinema ou simplesmente dançar com os colegas. Não tive outro remédio senão aceitar a realidade. Dava-lhe toda a minha atenção quando estava em casa, mas quando ela saía pouco me restava fazer senão esperar pelo seu regresso.
Até que houve uma noite em que Rita não voltou. Depois de telefonar várias vezes, a dizer que estaria em casa às duas da manhã, depois às três e, mais tarde, às cinco, acabei por lhe perder o rasto. Às sete da madrugada, em desespero, estava com os nervos em franja a andar de um lado para o outro, entrando e saindo no quarto que ela deixara arrumado e limpo. Sabia que algo não estava bem, mas desconhecia o que pudesse ser. Às oito, já sem esperança, contactei a sua melhor amiga, que me atendeu estremunhada e me disse, com voz enrolada, que a deixara por volta das três à saída de um dos bares da cidade e que não tinha qualquer outra informação.
Tentei conter-me e esperar. Não preguei olho. A meu lado, Emanuel dormia tranquilamente com o ar de quem navegava os sonhos de uma galáxia distante. Sentia-o próximo, mas, ao mesmo tempo, longe, entregue ao seu próprio destino. Fiz-lhe uma festa no focinho e deixei-me estar.
Com o tempo, acabei por aceitar o desaparecimento de Rita. O que não significa que a tenha esquecido. Pensei nela durante anos. E continuo a pensar. Por vezes, sem saber porquê, imagino que ela e Auxiliadora possam estar juntas. É um pressentimento, talvez um medo. Não faz qualquer sentido. Sempre Auxiliadora, por mais anos que viva, por mais gente que tenha encontrado.
Foram muitas as vezes em que me pus de barriga para o ar, na cama, reflectindo sobre qual seria a minha reacção se Rita entrasse a qualquer momento. Imaginava que alguém premia a campainha da porta a avisar que acontecera uma tragédia. Via-a cortada em pedaços, pernas para um lado, coração para o outro, unhas arrancadas, seios decepados, enquanto Emanuel acordava e desatava a ladrar desvairadamente como se estivesse perante uma cena de terror, aninhando-se-me junto ao corpo em busca de protecção.
O sangue subia-me à cabeça e, sem me conter, eu gritava:
Basta Auxiliadora!, basta! Perdoa-me, Rita, pela tua saúde…”.
Tentava afastar a imagem insuportável do crime, mas não era capaz. Seria possível que Auxiliadora e Rita me desafiassem de forma tão brutal? Eu procurava acalmar Emanuel, mas em vez de sossegar, o cão punha-se a uivar de uma maneira que me deixava os cabelos em pé.
Acabei por afastar Rita das minhas preocupações quotidianas, habituando-me a tolerar o seu vazio. Se ela partira, paciência. Não podia obrigá-la a fazer parte do meu mundo. Era inútil alimentar expectativas sobre alguém que eu criara durante anos e que se sumira de um momento para o outro.
Resolvi o assunto, pensando em pessoas e situações diferentes, empenhando-me nas aulas, procurando sinais, estudando conexões entre acontecimentos e sensibilidades.
Um dia, o telefone tocou. Era Rita. Tinham passado seis anos sobre o seu desaparecimento. Fiquei incapaz de dizer palavra, como se a língua se me tivesse desarticulado de um instante para o outro. Era uma situação que se repetia quando alguém que eu amava muito me surpreendia. Tornava-me imbecil, inerte, quase cadáver. Rita sabia-o. Por isso se pôs a falar até que eu recuperasse o senso.
Conversou durante uns bons minutos, sem nunca dizer onde se encontrava. Perguntei, insistentemente, embora gaguejando, mas ela recusou dar-me quaisquer pistas sobre o seu paradeiro.
Rita estava, como sempre, segura de si mesma. Falava como uma estranha, ainda que, ao mesmo tempo, fosse Rita, a mesma Rita que eu recolhera à porta de casa anos atrás e que me levantara os dedinhos da mão para dizer que tinha quatro anos de idade.
Quis saber se eu estava bem, se comia, se me distraía. Tinha saudades de Emanuel.
Senti um arrepio. Recorri a todos os argumentos que me vieram à cabeça na tentativa de a fazer regressar. Em vão. Só consegui a promessa de que me havia de ir telefonando. Procurei saber como podia ao menos voltar a vê-la por uns breves instantes, minutos, talvez segundos, mas ela esquivou-se, desculpou-se, dizendo que refizera a vida noutro lado e que não valia a pena eu alimentar esperanças.
Pouco antes de ela desligar, tive o pressentimento de que se encontrava em França. Era uma suspeita baseada nos ruídos de fundo do telefone. Uma paisagem sonora daquelas só podia ser parisiense. O barulho suave dos motores, as conversas roucas nos cafés, o eco freneticamente pausado dos fins de tarde.
Em criança, Rita passava bastante tempo a meu lado, brincando com os bonecos que tinha espalhados por todo o quarto ou com o computador, carregando em botões, fazendo somas arbitrárias, respondendo à voz monocórdica do aparelho.
Não posso fazer isto”, dizia, enquanto se punha a mirar o relógio de pulso que eu lhe oferecera dias antes. “Estou muito bonita”, acrescentava, por entre sons menos perceptíveis. “É bom…”, afirmava, sem que eu soubesse a que se referia.
Punha a mão esquerda na testa e procurava acertar em qualquer operação aritmética que eu não vislumbrava.
Abanando a cauda, Emanuel vagueava pela sala, ansioso por entretê-la.
De repente, há algo que me sacode, que me chama à realidade, e fico com a impressão de ter ouvido bater à porta. Uns toques de dedos. Mas deve ter sido equívoco meu. Quando a ambulância chegar, hão-de tocar à campainha do prédio. Ou será que encontraram a entrada principal aberta, subiram e bateram à minha porta na tentativa de recuperarem do atraso? Espero que toquem de novo. Não me darei ao trabalho de ir ver quem é. Deve ter sido ilusão. E foi mesmo. Não voltaram a bater.
Estava eu a dizer que Emanuel vagueava pela casa, abanando a cauda, que Rita se levantava do seu lugar e dizia que lhe apetecia comer gelatina. Era doida por gelatina. Uma vez, na festa de aniversário de um vizinho, atacou literalmente uma gelatina do tamanho de uma pizza, metendo grandes colheradas à boca, perante o divertimento dos convidados. Ficou muito corada quando percebeu que todos a observavam. Senti-me como se estivesse no lugar dela. Senti-me em cacos no seu pequeno corpo. De coração desfeito.
Com um olho em Emanuel, outro em mim, Rita desligava o computador, abria um pacote de bolachas e punha-se a devorá-las desalmadamente. Eu dizia-lhe que não devia abusar de bolachas e ela obedecia de imediato, olhando-me de forma entendedora, como se se tivesse dado conta de algo importante. Apesar da sua pouca idade, preocupava-se em não engordar.
A seguir, informava-me de que ia fazer os trabalhos de casa. Munia-se de uma das minhas agendas e desatava a somar números, em voz alta:
Dois mais três igual a dez!, cinco mais quatro igual a seis!…”, e por aí fora. Depois, anunciava que estava cansada, dizia que já fizera o que a professora ordenara e punha-se a andar à roda no meio da sala, deixando Emanuel agitado e nervoso.
Certa vez, o cão deu-lhe uma dentada no rabo, fazendo-a chorar. Tentei dominar o animal, sem sucesso. Era domingo à tarde. Rita precisava de alguém que estivesse mesmo com ela. Precisava de mim, do meu carinho, do meu calor. Pediu-me a chupeta que, aos seis anos de idade, teimava em não abandonar. Dei-lha. E fomos rebolar entre gargalhadas sobre o tapete do seu quarto.




9


No início do seu segundo ano de universidade, por alturas do mês de Novembro, num dia em que estava sozinha em casa, Rute pegou numa faca e espetou-a na perna direita, na zona acima do joelho. A lâmina não entrou à primeira tentativa. Ela cravou-a várias vezes, até sentir que tinha atingido o osso.
Rute contou-me esta história a rir, enquanto saboreava um rebuçado sentada no chão junto à mesa da sala de estar da minha casa.
Pelo que me disse, não sentiu dor, nem aflição. Lembra-se de ter agarrado a faca maquinalmente e de a ter enterrado na carne por mais do que uma vez. Só tomou consciência do que tinha feito quando viu que o sangue lhe jorrava desalmadamente até aos pés. A primeira coisa que lhe veio à mente foi que não morreria daquilo. Até porque ao fim de poucos minutos se pôs a vedar o sangue com um lenço enquanto não a levavam para o hospital.
O seu desejo estava realizado. Espetara a faca na perna, cumprira a sua função. O resto decorreria com normalidade. A cada um competia os seus actos. O dela, naquele dia, tinha sido espetar uma faca na perna. Faltava-lhe pouco para completar dezanove anos quando o fez. Lembrava-se como se tivesse acontecido no dia em que me contou o episódio.
Rute considerava-se dona e senhora dos seus atributos. Queria uma marca de domínio sobre o seu corpo, por isso se cortara daquela maneira, embora nunca lhe tivesse ocorrido que ficaria com uma cicatriz para o resto da vida. Só percebeu isso mais tarde. Golpeou a perna pensando que depois não se notaria. Ou nem pensou nisso. Apenas agiu, sem ponderar as consequências.
Quando enfiou a lâmina no músculo foi para ver a agressividade na ponta da lâmina, foi para ver a fealdade, para observar a emoção com olhos de ver e demonstrar a si mesma que era capaz de ir além de um comportamento previsível. Para Rute, o importante era ver. Ver que era feia (se não se via bela, não podia ser bela…), ver que ousara um gesto fora do comum, mesmo que fosse necessário provocar a realidade para demonstrar a si mesma que era capaz de lidar com situações extremas. A vulgaridade aterrava-a. Desejava tudo menos ser mais uma nas contas do quotidiano, mais uma peça, mais um grão de areia.
Rute olhava para o sangue que brotava da sua perna e não era capaz de pensar em mais nada. Era como se tivesse a mente bloqueada, como se lhe tivessem desactivado os neurónios e ela não fosse capaz de articular o raciocínio mais elementar.
Anos depois, arrependeu-se do que fez. Mas só se arrependeu porque passou a ter que responder a algumas perguntas, ou passou a ter que se esquivar delas. Por vezes, quando se encontrava de conversa com alguém, se estava de saia e dobrava as pernas, acontecia a cicatriz saltar à vista e a pergunta tornava-se inevitável:
Que é isso aí?...”
Rute sentia-se inibida na resposta, porque não sabia explicar o que lhe acontecera. Lembrava-se de lhe ter apetecido enfiar a faca na perna, mas não se lembrava dos motivos que estavam por detrás de tal gesto. Ou melhor, lembrava-se, mas não lhe apetecia estar com explicações. Por isso, não sabia como satisfazer a curiosidade alheia. Queria contar tudo, mas não era capaz.
Também não queria parecer anormal, autista, indiferente ao seu próprio corpo. Nem queria dar a ideia de que tivesse sido alguém a fazer-lhe a cicatriz. Deste modo, via-se na necessidade de confessar que fora ela a autora do feito. Mas não conseguia esclarecer os motivos. Sorria para tentar vencer o embaraço. E para não provocar intranquilidade à sua volta. Mas quanto mais sorria, mais embaraçoso se tornava o momento.
Desilusão amorosa?”, perguntou-lhe um amigo, certa vez.
Ela replicou com uma enorme gargalhada. Nunca uma desilusão amorosa a faria cometer semelhante acto de desespero. Mas depois de pronunciar a palavra “desespero” arrependeu-se porque no dia em que se auto-mutilara estava longe de se encontrar desesperada.
Eu disse ‘desespero’, mas não era isso que queria dizer”, retorquiu ao amigo. “Não penses que fiz isto por causa de alguma tragédia.”
Mas se não foi desespero, o que foi?”
Não tenho a certeza… Penso que estava com a cabeça fora deste mundo. Devo ter tido uma visão ou qualquer coisa parecida…”.
Não terá sido uma tentativa de aniquilares a tua beleza, uma forma de te convenceres de que a estética não é tudo? Não terás querido deixar uma marca de dor no teu corpo?”
Rute sentiu-se abalroada pelas perguntas. Não sabia como responder, não tinha a certeza, nunca era o momento certo para falar da sua cicatriz, a não ser no dia em que me contou o que fizera, anos depois, tranquilamente, já com mais de cinquenta feitos.
Por isso, das várias perguntas feitas pelo amigo, comentou a última, optando pelo caminho mais simples:
Mas eu nem senti dor no dia em que fiz isto!”
Não sentiste dor, mas uma cicatriz destas é sempre uma marca de dor, mesmo quando não provoca sofrimento imediato”, respondeu o amigo, enquanto lhe acariciava a cicatriz da perna com a ponta do dedo indicador, como se lhe agradasse sentir a ligeira saliência da pele.
Rute ria sob a pressão delicada do seu dedo, certa de que o riso era uma maneira de contornar o que não sabia explicar, uma maneira de ganhar tempo.
É estranho alguém espetar uma faca na perna sem saber os motivos por que o faz”, acrescentou o amigo, motivado pelas hesitações dela.
Também não me digas que é assim tão estranho uma pessoa ter uma cicatriz na perna…”
Não é a cicatriz que é estranha. Esta cicatriz até cria um momento de contraste com a tua beleza, realçando-a. O que é estranho é não saberes dizer porque enfiaste a faca na perna.”
Estava num daqueles dias em que me apetecia fazer qualquer coisa. Quis experimentar o tipo de sensação que provoca uma lâmina a rasgar a carne. E também foi uma maneira de me afirmar.”
Retiraste a faca logo a seguir ou deixaste-a ficar?”
Surpreendida, Rute esteve quase para desistir de falar no assunto, mas ainda adiantou:
Nem te sei responder. Não me lembro. Não me leves a mal, mas agora começo a perceber que nunca pensei bem no que fiz…”
Não achas que estás apenas a desculpar-te por uma coisa para a qual dificilmente se arranja desculpa?”
Só te falta insinuar que andei com alguém que me esfaqueou durante uma briga de ciúmes”, insinuou ela, esmorecendo o sorriso, a ver se lhe travava o ímpeto inquiridor.
Nunca pensaste fazer uma plástica?”, perguntou.
Não! Porque havia de fazer isso? Achas que preciso?”
Claro que não. Mas sempre era uma forma de ficares com a perna perfeita.”
E uma perna é assim tão importante? O resto do corpo não conta?”, argumentou ela, enquanto lhe afastava a mão da cicatriz, com subtileza, como se ele tivesse deixado de merecer o privilégio de lhe tocar.
Vendo bem as coisas”, disse ele “esta tua cicatriz pode ser uma forma de desviares as atenções! Quando o meu dedo desliza na tua cicatriz, não te toco em nenhuma outra zona do corpo. Não será esta ferida uma espécie de segunda vagina de que te serves para confundir quem tem o privilégio de privar contigo?”
Seguiu-se o silêncio dele à espera da reacção dela e a mudez dela à espera de verificar se tinha ouvido bem.
Disseste uma “segunda vagina”?...”, perguntou Rute, por fim, quando já corria o risco de a pergunta dele ficar sem resposta.
Sim, isso mesmo…”, replicou o amigo, ainda hesitante quanto à reacção dela, apesar de saber que Rute nunca se sentia incomodada com uma provocação sexual.
É uma ideia genial!”, comentou ela, deitando-se para trás na cama, ao mesmo tempo que dobrava ambas as pernas e deixava os joelhos a pouca distância do nariz dele. “Esta minha cicatriz, pelos vistos, é fonte de inspiração.”
É frequente comentarem a tua cicatriz?”, quis ele saber, fazendo que Rute se retraísse, momentaneamente, o que não a impediu de estender a mão e entrelaçar os seus dedos nos dele.
O amigo, porém, não olhava para a cicatriz, mas para o rosto dela deitado, o corpo dela deitado, os seios dela deitados, a cintura dela deitada…
Animado com o gesto de ela lhe ter dado a mão, atreveu-se a ir mais longe do que o habitual: levantou uma das pernas e sem lhe dar tempo de esboçar qualquer defesa, sentou-se-lhe em cima, sentindo prontamente o calor das suas ancas, do seu ventre a respirar, das suas coxas macias. Foi o único homem que venceu a barreira que Rute tinha por hábito impor a quem levava para a cama.
Consciente de que não fora a tempo de evitar o avanço de surpresa, Rute preferiu dar a ideia de que o aceitara, acomodando-se melhor ao corpo dele, com um jeito de ancas.
Ele pensou que aquele era o seu dia, pensou que depois de tantos meses a conversar e conviver com Rute teria finalmente a oportunidade por que tanto esperava. Era impossível que, deixando que ele se apoderasse do seu corpo de uma forma tão evidente, acabasse por não aceitar ser possuída por completo. E na tentativa de ganhar tempo, disse-lhe:
É bom estar em cima de ti. É quase tão bom como te possuir…”
Mas ela manteve o silêncio, como se tivesse perdido a noção do que estava a acontecer. A dada altura, dobrou as duas pernas e desencostou ligeiramente os joelhos, o que aumentou a sensação de conforto da parte dele.
Rute continuava a falar, mas as suas palavras pareciam distantes, quase ausentes. como se não estivesse ali, como se tivesse saltado para um outro tempo e lhe fosse indiferente que ele estivesse em cima dela ou em cima de uma pedra.
Uma ‘segunda vagina’…”, murmurou ela, pensando sozinha.
Entretanto, o amigo tocava-lhe ligeiramente (quase a medo) no ventre, no peito, no pescoço, na face… e ela repetia – “uma segunda vagina…” – enquanto esboçava um sorriso superficial, volátil.
Se a cicatriz é a tua segunda vagina, não faz sentido que me impeças o acesso à primeira”, disse ele, procurando meter-lhe a mão por entre as pernas, um gesto que ela prontamente travou, empurrando-lhe os braços de forma brutal.
Se Rute lhe permitia tanta intimidade, por que razão não havia de consentir que ele lhe metesse a mão entre as pernas? Por que não haviam de fazer amor?
Não voltes a empurrar-me desta maneira!”, disse ele, tentando marcar a sua posição.
E tu não voltes a meter-me a mão entre as pernas!”, reagiu ela, de forma autoritária, como se de repente tivesse acordado de um sonho. “Sai de cima de mim! Sai de cima de mim imediatamente!”, dizia, enquanto o sacudia com movimentos de anca.
Perante uma atitude tão determinada, ele sentiu que devia obedecer-lhe e voltar ao lugar que antes ocupara. Ao recuar, disse, porém:
Mas eu não fiz nada. Se até agora estive em cima de ti, porque não posso continuar? Que mal te fiz eu?”
Meteste-me a mão entre as pernas!”
E isso que mal tem?”
Quem manda no meu corpo sou eu…”
Não deixaste de mandar enquanto estive em cima de ti…”
Estiveste em cima de mim enquanto eu quis e sais de cima de mim quando eu quero”, replicou ela, sentindo que voltara a deter o controlo da situação.
Tudo isto por causa de uma ‘segunda vagina’…”
Foi a ideia mais bonita que tiveste esta noite.”
Mas o que fizeste à tua vagina foi cosê-la, cerzi-la, para impedir que alguém te penetre. Esfaqueaste-a, fizeste-a cicatrizar, recriaste-a no joelho, puseste-a à mostra para que todos vissem o que lhes estava reservado. É por isso que não me deixas fazer amor contigo. Foi esta a forma que encontraste de resolver o teu sexo, aniquilando-o. Falas muito de sexo porque não tens coragem de o praticar. Fazes sexo com palavras e sorrisos! O prazer do teu orgasmo está na boca, está na língua.”
Não tens nada a ver com o meu sexo! O meu sexo é meu e pronto. Cada um tem o sexo que quer e entende. Também nunca te vi fazer outro sexo. Falas, falas, mas na prática é o que se vê.”
Não há nada que eu mais deseje do que ter sexo contigo. Só que não o permites.”
Como posso saber se realmente queres fazer sexo comigo? Muitas vezes, as pessoas dizem coisas diferentes do que pensam e desejam. Quando há pedaço estiveste em cima de mim, tiveste uma ocasião de ouro…”
E quando tentei avançar, repudiaste-me como a um cão!”
Mas Rute insistia que ele não tinha nada que lhe meter a mão entre as pernas. Havia outras formas de sedução. Ela não era uma máquina pronta a satisfazer instintos. Se ele pensava que a ofendia com a sua teoria da ‘segunda vagina’, estava enganado.
Mas ele estava longe de querer ofendê-la. Ressentido e humilhado com a situação que criara, agradeceu e vestiu o casaco, pronto para sair, certo de que ela não recuaria, certo de que eram nulas as suas hipóteses de ser convidado a pernoitar em sua casa.




10


Por vezes, Raimundo zangava-se com Rute – não… nada disso, os dois não se conheciam, não sei onde tenho a cabeça! – Raimundo zangava-se… como se chamava ela? (Lá tenho que voltar atrás e procurar o nome da namorada de Raimundo, é a demora da ambulância que me está a transtornar ) – chamava-se Estela!, chamava-se, e chama-se, Estela. Por vezes, Raimundo zangava-se com Estela.
Não eram bem zangas – porque muitas vezes nem chegavam a trocar palavra – eram mais amuos, ressentimentos. Os dois passavam tempos sem falar, embora como se encontravam só uma vez por semana nem sempre fosse possível perceber se estavam zangados ou não. Creio que eles próprios, muitas vezes, nem o saberiam.
Passeavam no jardim, lado a lado, para a frente e para trás, aos domingos à tarde, pouco ou nada falando, e por isso não faria grande diferença se estivessem aborrecidos, ou não, pelo menos na imagem que passavam para o exterior. E esta, por mais que se queira ignorá-la, tem sempre algum peso. Caso contrário, as pessoas não sairiam à rua. Se saem, é para mostrarem alguma coisa de si. Ou para verem alguma coisa dos outros. É para partilharem. Deste modo, há sempre imagens a passar, para um lado ou para o outro, quer se queira, quer não.
Chegava-se a um ponto em que os amuos já faziam parte do convívio normal entre Estela e Raimundo. Por vezes, decorriam semanas, até meses, em que os dois estavam zangados, sem que tal situação fizesse aparentemente grande diferença. Apercebiam-se disso aos domingos, quando passeavam e depois ia cada um à sua vida, dando a ideia de que nenhum deles voltava a pensar no assunto, embora nem sempre fosse fácil esquecerem os mútuos ressentimentos.
Os silêncios prolongados, espontâneos ou provocados por amuos, davam que pensar a Estela. Ela estava sempre a dizer a si mesma que Raimundo era insuportável e que mais dia menos dia acabaria de vez o relacionamento que tinha com ele. Na prática, contudo, não conseguia passar um domingo sem estar com Raimundo, por mais distante, antipático ou aborrecido que ele se revelasse. Sabia que vivia em contradição, mas não era capaz de se libertar do elo que a prendia.
Raimundo, por seu turno, já se habituara ao feitio de Estela. E procurava ligar o menos possível às suas birras, embora houvesse ocasiões em que isso fosse especialmente difícil, já que o acabrunhamento de Estela acabava por o atormentar de tal forma que mal conseguia respirar.
Raimundo prometia a si mesmo que na semana seguinte já tudo estaria terminado entre ele e Estela, mas o certo é que as semanas iam passando e nada se alterava. A sua ligação a Estela era mais forte do que ele próprio supunha. O facto de ela o acompanhar todos os domingos, desde há anos, significava que Estela compreendia e aceitava a sua maneira de ser, por mais que o negasse. E ele sabia que não existiriam muitas mulheres capazes de aceitar e compreender um homem como ele. Sobretudo um homem que só pensava em dinheiro e só tinha tempo para conviver aos domingos à tarde. A maioria das mulheres queria companhia e diálogo permanentes. E ele não estava para aí virado. Por isso, considerava que Estela, apesar dos amuos, talvez fosse a mulher certa para ele.
Raimundo estava sempre a pensar em dinheiro, sempre a fazer contas, sempre a definir e redefinir estratégias de investimento, sempre a analisar dados mentalmente – fora assim que enriquecera – e esta era a sua maneira de ser e de estar quando se encontrava com Estela, havendo até alturas em que, obviamente, não tinha a noção de quem caminhava a seu lado. Muitas vezes, não lhe dava atenção, nem ouvia o que ela dizia (qualquer comentário tímido sobre alguém que acabara de passar por eles, qualquer ideia titubeante que manifestava, nem que fosse para tentar incentivar Raimundo ao diálogo).
Ao notar que a sua breve tentativa de nada valera, Estela nunca mais abria a boca. Só que Raimundo, geralmente, nem notava que Estela ficava ressentida. E continuava a sua incansável e silenciosa análise de números pela tarde fora.
Quando vinha a si, quando punha os pés no chão, é que tomava consciência de que Estela estava magoada, revoltada. Procurava falar com ela, pacificá-la, mas já era tarde. Estela não queria saber, estava no seu direito de ficar calada, já dera como perdido o passeio de domingo. Agora, só voltariam a ver-se dali a uma semana, mas Estela era bem capaz de continuar amuada por muito mais tempo do que Raimundo julgava razoável. Apareceria no domingo seguinte, como de costume, e encontrar-se-ia com ele, mas o mais certo era continuar ressentida.
Com o tempo, Raimundo habituou-se à maneira de ser de Estela, embora existissem momentos em que a falta de oxigénio era superior às suas forças. Porque Estela, vistas bem as coisas, era uma das raras pessoas (a outra era eu…) com quem Raimundo era capaz de ter alguma comunicação. O facto de sociabilizar pouco só tornava mais premente a sua necessidade de, em determinadas ocasiões, trocar uma ou duas palavras com alguém. Se Estela não estava para aí virada, Raimundo telefonava-me a perguntar se eu queria dar uma volta, se me apetecia passar pelo seu escritório.
Eu aparecia. Ia por ir, sem nada para dizer, aparecia só porque ele me tinha telefonado. Houve um dia, porém, em que fui dar com Raimundo completamente fora de si. Foi uma das ocasiões em que o vi profundamente transtornado. Mal entrei a porta, fez sinal para que me sentasse e explodiu:
Qualquer dia, perco a cabeça e faço uma asneira!”
Ante a minha perplexidade, por falta de hábito de o ver assim desnorteado, ele continuou: “Não imaginas como é estar com uma mulher que passa semanas ou meses sem te dirigir a palavra! Chego a um ponto em que já não sei o meu primeiro nome!! Acreditas? Será possível uma coisa destas? Como posso não me lembrar do meu primeiro nome?”
Mas o que é que ela tem a ver com o facto de não te lembrares do teu primeiro nome?”, perguntei, tudo fazendo para que ele não se apercebesse da minha ironia.
Não é evidente? Não se mete pelos olhos dentro? Se nem a pessoa com quem andas pronuncia o teu primeiro nome, é natural que acabes por o esquecer ao fim de uns tempos! Aqui na empresa é sempre ‘sr. dr. para ali, sr. dr. para aqui’. Ninguém se interessa se o meu nome é Costa, Tavares ou Sebastião. Ou achas que ando por aí a falar comigo próprio e a dizer ‘Raimundo… Raimundo…’ pelos cantos?”
Não estarás demasiado sozinho?”
Tu sabes que sempre fui metido comigo. Nunca fui de sair. Mas estava longe de prever que me pudesse vir a meter numa destas. Maldito o dia em que a conheci!”
Devias estar agradecido por a teres encontrado. Porque não é qualquer pessoa que tem paciência para te aturar!”, argumentei, na certeza de que Raimundo era capaz de aceitar as minhas palavras. Aliás, quanto mais contundentes fossem os termos do diálogo com Raimundo, maior seria a probabilidade de ele os acatar. Era uma das suas características. E então se as palavras, ainda que agrestes, viessem de alguém amigo, como era o meu caso, era mais do que certo terem efeito positivo sobre ele.
Falas assim porque não sabes o que custa lidar com Estela! Tenho a certeza de que ela precisa de tratamento psiquiátrico!”
Para te dizer a verdade, acho que quem precisa de tratamento psiquiátrico és tu!”, repliquei, olhando-o nos olhos.
Ao longo dos muitos anos que a nossa amizade acumulara, nunca me tinha atrevido a ir tão longe numa conversa com ele. Eu sabia, por isso, que aquele era um momento fulcral no nosso relacionamento.
Raimundo devolveu-me o olhar, sem esconder algum espanto pela crueza das minhas palavras, hesitou uns segundos, como se ainda estivesse atarantado pelo que acabara de ouvir e, curvando-se na minha direcção, disse de forma seca e directa:
Tens razão!”
Mas eu percebi que ele só o reconhecera porque não tinha resposta para o meu argumento. Fora apanhado de surpresa e reagira com prontidão, dando-me razão, nem que fosse para me calar, para me impedir de continuar o raciocínio. O conhecimento que eu tinha de Estela e de Raimundo era mais do que suficiente para fundamentar a afirmação que acabara de proferir. Raimundo sabia-o. E não queria ser obrigado a defender-se, sobretudo quando era eu quem estava do outro lado da barricada.
Fora ele o primeiro a referir que Estela precisava de tratamento psiquiátrico. Eu apenas virara o argumento contra ele. E anulara a sua capacidade de reacção, levando-o a pensar sobre a frase que proferira.
Após o desnorte provocado pela minha insinuação, Raimundo caiu em si. Pelo menos deixou de apontar as baterias a Estela, o que já era uma assinalável mudança.
A partir daí, praticamente não voltei a ouvir-lhe a voz. Só nessa altura se lembrou de perguntar se eu queria tomar alguma coisa, mas tive o bom senso de recusar e levantar-me para sair, porque nunca se sabia de que forma Raimundo poderia agir a frio.
Num primeiro momento, Raimundo mostrava-se sempre compreensivo e delicado. Mas depois parecia refazer todo o cenário e lembrar-se de qualquer coisa que o fazia assumir uma posição diferente.
Enquanto nos despedíamos, ainda hesitou e levou a mão à cabeça, como se estivesse a reconsiderar algum aspecto da conversa que acabáramos de ter, mas não lhe dei qualquer oportunidade e esgueirei-me por entre a confusão de vozes que agitava o escritório ao fim do dia.




11


Não sei se Rita me via como pai ou como mãe. Para que a sua educação não se ressentisse de qualquer lacuna, fiz sempre o possível por ser mãe e pai na sua vida, homem e mulher, masculino e feminino, o que me encheu de dor e felicidade, por ter que estar sempre a superar-me, a sair de mim. Era uma grande dor, por vezes (e uma grande felicidade, em outras ocasiões), sair de mim para me encontrar comigo…
Eu passava uma parte do dia sentindo que era mãe de Rita e a outra parte sentindo que era pai. Quando lhe preparava o almoço, era pai; ao jantar, era mãe. Quando a deitava na cama, era pai; quando me dirigia à escola para saber se estava tudo bem, era mãe. E havia dias em que as posições se invertiam: a mãe fazia o almoço, o pai o jantar; a mãe deitava-a e o pai ia à escola.
Quando brincava com ela, eu tinha a obrigação de ser pai e mãe em simultâneo, tinha duas identidades sobrepostas, com breves intervalos de minutos, ou segundos, o que me deixava num tremendo estado de exaustão. Eu adorava Rita, mas confesso que brincar com ela me foi sempre penoso, por nunca ter a certeza de o fazer como homem ou como mulher. Com Rita, procurei agir sempre com base na intuição, mas quando se tratava de brincar eu era um desastre. Rita comandava todos os momentos e eu limitava-me a seguir as suas decisões e opções.
Se eu era mais homem ou mais mulher nesta ou naquela circunstância, também dependia de Rita, muitas vezes. Dependia do estado de espírito dela. Quando Rita chorava, eu era pai, inevitavelmente. Não podia deixar de a abraçar, de acarinhar, de a consolar. Levava-a a contar-me o que se tinha passado, como procedera com a adversidade. Rita já sabia a regra e pronunciava mesmo a palavra “pai” quando se dirigia para mim lavada em lágrimas. Outras vezes, observava-me com uns olhos suficientemente poderosos para atravessarem uma muralha de aço e chamava-me “mãe”, pedindo para a ajudar nos trabalhos escolares que a professora mandara fazer em casa.
Em vez de me ajudar a compreender a minha própria condição, a presença de Rita contribuiu para aumentar o meu sofrimento, a minha dualidade. Não teve culpa disso, mas foi o que aconteceu. Aumentar a minha ambiguidade constituiu a sua principal função.
Rita foi uma verdadeira filha para mim. E continua a sê-lo. Tive sempre a preocupação de não lhe faltar com nada. E tenho a certeza de que não lhe faltei com o que quer que fosse, embora a sua fuga de casa aos dezasseis anos possa dar a entender o contrário. Possivelmente, Rita suspeitou de alguma coisa, possivelmente entreviu que havia algo em mim que não coincidia com os padrões da sociedade, possivelmente adivinhou que a sua presença na minha vida aumentava o meu drama interior, o meu dilaceramento.
Se Rita achasse que podia contribuir para clarificar a minha situação, penso que não se teria ido embora tão cedo e sem nada me dizer. Rita partiu para permitir que eu me confrontasse abertamente com a minha realidade, para que a solucionasse, para que a amenizasse. Estando ela perto, eu nunca deixaria de me dividir porque as rotinas do dia a dia me exigiam que fosse uma coisa e outra – mulher e homem – a fim de tentar suprir a ausência dos verdadeiros pais dela. Foi uma postura que assumi. Ninguém me obrigou a isso. O meu amor por ela foi sempre livre e descomprometido. Eu amava Rita acima de tudo, acima de todas as hipóteses, acima de todas as vivências e contradições.
É verdade que não consegui a unificação das partes em mim, a resolução do binómio que me consumia, mas esse era um desafio que me dizia exclusivamente respeito. O sentido dos outros é abrirem-nos caminhos e o nosso dever é segui-los, trilhá-los. A infelicidade é ficar a meio, não atingir a meta, não aceitar a herança.
Creio que Rita foi a única pessoa que soube conviver com a minha ambiguidade sexual. Pelo menos foi a única que a compreendeu. Fê-lo até aos dezasseis anos, mas depois, cansou-se, desiludiu-se… afastou-se. Ou quis mais. Muito provavelmente, Rita quis mais. Quis mais de mim e quis mais dela.
Não pode haver uma só explicação para a sua fuga. Coloco várias hipóteses, exactamente por não ter a certeza acerca de nenhuma delas.
Não terá sido só para me dar espaço que ela fugiu, não terá sido só para que eu me confrontasse com a minha divisão. Rita deve ter querido também um pai que fosse mais pai e uma mãe que fosse mais mãe. Eu era só parcialmente pai e parcialmente mãe. Era só parcialmente “alguma coisa”. Não era ninguém de corpo inteiro, o que contribuía para que estivesse em permanente conflito comigo.
Rita deixou-me para ir em busca de alguém. Se calhar, para ir em busca dos verdadeiros pais. Não é impossível que tenha tido alguma informação sobre o seu paradeiro, decidindo partir para se juntar a eles, ou para simplesmente os rever, reconhecer. Se é que ela tinha pais. Nem isto sei.
Durante os doze anos que viveu comigo nunca me disse o que quer que seja sobre o assunto. Nos primeiros dias, quando a recolhi em casa, com apenas quatro anos de idade, ela não me soube dizer, não tinha palavras, e eu também não a quis forçar. Respeitei a sua condição e aceitei-a.
Mais tarde, nunca me interessou voltar ao caso, para não correr o risco de ela se lembrar dos pais e desejar voltar para a sua companhia. Como nunca tomou a iniciativa de me falar deles, foi sempre o silêncio a comandar a nossa postura.
Rita sabia que saindo de casa não voltaria a ter a atenção e o carinho que eu lhe dispensara durante doze anos, mas preferiu correr o risco de procurar os modelos que coincidiam com o que via na escola e na sociedade. Preferiu, sabe-se lá, correr o risco de ir à procura dos pais, mesmo sem ter qualquer informação sobre eles.
Essa possibilidade explicava a sua recusa em revelar-me o nome do país ou da cidade em que se encontrava. Eu desconfio, sempre desconfiei, que ela andava muito, e continua a andar, de um lado para o outro, sinal de que não desistiu de procurar quem lhe deu a vida.
Rita tinha a certeza de que eu nunca suportaria o embate de saber que ela decidira ir ao encontro dos seus verdadeiros pais porque isto me deixaria com a convicção de que tinha falhado a minha missão de a educar, seria a minha condenação como mãe e pai de adopção.
Ela estava sempre nervosa quando falava comigo ao telefone. Estava nervosa como alguém que procura esconder algo, que sente insegurança sobre o que vai dizer nos minutos a seguir, que acha que o chão onde tem os pés pode desaparecer a qualquer instante. Eu era esse chão, como se pode depreender. Os telefonemas que Rita me fazia não queriam dizer outra coisa.
No tempo em que eu vivia com Rita, quando não estava com ela, não sabia para onde me virar, nem sequer atinava com o que pensar. Tudo me afligia, até o restolhar das árvores nas tardes de vento ou um simples estalido de madeira em algum canto da casa. Tinha dificuldade em concentrar-me, em afastar a ideia de que se lhe acontecesse alguma coisa a responsabilidade seria minha. Sentia a responsabilidade porque receava – receei sempre – que os pais, um dia, aparecessem a pedir-me contas.
Mas não era só a questão da responsabilidade. Eu já não era capaz de viver sem Rita, por isso não admitia a possibilidade de a perder. Só de imaginar essa hipótese sentia-me endoidecer.
Todas as vezes que ela saía de casa, eu procurava combinar uma hora exacta para o seu regresso. Não o fazia por desconfiar dela, mas para evitar que o meu coração rebentasse com a agonia de desconhecer a hora precisa em que voltaria.
Se combinássemos que ela regressaria às dezanove horas e por qualquer motivo insignificante regressasse dez minutos depois da hora combinada, essa pequena diferença de tempo era suficiente para me pôr os nervos em franja, para me deixar num estado de histeria, quase apoplexia. Começava logo a imaginar para quem telefonaria se ela se atrasasse mais uns minutos… E quando ela entrava a porta, apetecia-me gritar, gritar, por a ter de volta, por a ver, por a poder tocar de novo.
Se Rita não estava comigo, tudo me afligia. Sentia que o tempo passava sem eu poder dispor da sua companhia e sentia que isso era injusto porque o tempo de vida comum que nos restava não era por aí além.
A minha idade pesava. Rita passou a ser como um braço na minha vida, como uma perna sem a qual eu não tinha condições para ir longe. Rita era a minha boca, as minhas mãos, a minha pele. Como poderia eu não ser mãe? Como poderia não ser pai, quando ela se punha a medir forças comigo, socando-me, empurrando-me, desafiando-me?
Como a solidão sempre foi o pano de fundo dos meus dias, Rita também se tornou para mim a porta do mundo. Com ela a meu lado, eu via tudo numa perspectiva nova e obrigava-me a uma série de coisas que sem ela não faria. De alguma maneira, Rita até justificava a minha ambiguidade: como eu tinha a tarefa de a educar, competia-me substituir o pai e a mãe, competia-me ampará-la de todas as formas. Por isso, a duplicidade, no meu caso, chegava a ser um dever moral. Ninguém tinha o direito de me condenar por isso, embora me fosse difícil admitir que a tolerância fosse uma das vocações da sociedade em que vivia.
A questão da minha identidade sexual, contudo, não se limitou a Rita. Foi alimentada pela nossa vida em comum, mas transvazou sempre a intimidade do lar. Neste aspecto, o que me valeu, mais do que a duvidosa tolerância social, foi que, de uma forma ou de outra, as pessoas estavam habituadas aos conflitos nas suas próprias vidas, razão pela qual acabaram por me aceitar. Toda a gente, pelo menos uma vez na vida, já se tinha confrontado com algum fantasma sexual.
Comigo, a diferença era que eu me confrontava todos os dias com essa realidade. Toda a vida, desde que me lembro de ter consciência sexual, me senti mulher e homem ao mesmo tempo. Quando me sentia homem sentia-o de maneira que me apetecia ser mulher e quando me sentia mulher sentia-o de maneira que me apetecia ser homem. Estava sempre em colisão comigo, em combate, em luta. Muitas vezes pensei se todos os seres humanos não se debateriam com o mesmo, se esta luta não seria uma coisa banal nas sociedades, se no fundo todas as mulheres e homens não viveriam de forma idêntica.
Pensava nos meus amigos e amigas e procurava adivinhar como lidariam intimamente com as suas vidas sexuais. Cheguei a trocar opiniões com algumas pessoas sobre o assunto e o que consegui obter das de maior confiança foi que talvez eu fosse homossexual. Mas eu discordava. O meu problema, tanto quanto eu o conhecia, não estava em saber se eu era homossexual ou não. O meu problema era precisamente o de não ser capaz de viver só com uma dimensão do humano. Para mim, ser homem era ser pouco, e ser mulher era ser pouco, igualmente. O meu desejo era ser homem e ser mulher ao mesmo tempo, mas sê-lo de uma maneira em que não houvesse conflito. O meu problema, no fundo, era a ausência de um terceiro sexo. Porque não havia comportamento sexual para uma tal dimensão. Deste modo, havia sempre em mim qualquer coisa que falhava. Eu não queria optar por um sexo ou por outro. Queria os dois. Como poderia um pénis fazer-me sentir mulher e como poderia uma vagina fazer-me sentir homem? Este era o meu drama. Não havia um órgão sexual para as pessoas que eram simultaneamente homem e mulher.
Nunca me pareceu que fosse razoável esclarecer a minha ambiguidade, anulando o sexo, esquecendo-o, pondo-o de parte. Quem marginaliza o sexo perde a parte mais importante da vida, a parte mais empolgante. Foi por nunca o querer fazer que acabei por me confrontar com o dilema da minha identidade sexual. Não fora pelo sexo e eu teria sido a pessoa mais feliz do mundo.
Foi este simples dilema – que, de tão pequeno, se tornou monstruoso – que condicionou toda a minha vida.
Eu não sabia se a atracção que sentia por Rute era a atracção de um homem ou de uma mulher. Por mais voltas que desse à cabeça, não tinha elementos para me definir. Eu podia gostar de Rute como mulher ou como homem. Era importante para mim saber em que condições amava ou não amava alguém. Mas eu não me definia. Sabia que gostava de Rute, apenas. E por não ser capaz de ir mais longe do que isso conformava-me com a expectativa de a ter a meu lado na hora de partir, para que talvez nessa ocasião derradeira eu pudesse ficar com uma ideia clara sobre a minha natureza. Talvez Rute tivesse a arte (só me restava ter esperança na arte) de me levar a um caminho de lucidez. Talvez Rute tivesse a arte de me unir.
Na escola, durante os anos que leccionei, chamavam-me sempre Lis. Nunca professor ou professora. Parece que adivinhavam. Eu era o único membro da classe docente que não merecia o tratamento de “sutôr” ou de “sutôra”.
O meu maior tormento na escola era quando precisava de ir aos lavabos. Em lugares públicos, nunca os frequentava, mas no meu local de trabalho era praticamente impossível evitá-los. A forma que encontrei para contornar a dificuldade foi esperar sempre por uma ocasião em que as casas de banho estivessem desocupadas. Só as frequentava durante as horas de aula e usava sempre as dos alunos. Deixava-os na sala entretidos com qualquer coisa para redigirem ou analisarem e esgueirava-me sem ruído e sem dar nas vistas.
Havia dias em que exteriormente eu parecia mais homem e outros dias em que parecia mais mulher. Na escola, habituaram-se à minha imagem andrógina. Na rua, as multidões passavam-me ao lado. Haveria quem me considerasse mulher e quem me considerasse homem. E devo confessar que essa imagem dúbia me satisfazia interiormente. Quando não se tratava de sexo, sempre gostei que me confundissem. Era uma forma de não me conhecerem, era a protecção mais eficaz que eu podia encontrar.
A indumentária que trajava era geralmente neutra. Andava quase sempre de calças, com sapatos de tacão médio sem atacadores, ou de ténis, camisas largas com botões à frente.
Só havia uma pessoa junto da qual eu não tinha problemas de identidade. Essa pessoa era Raimundo. Junto dele, eu sentia-me homem, inevitavelmente. Não conseguia estar com ele de outra maneira. Mas creio que ele não tinha a certeza de como se sentia em relação a mim. Esta pode ser a explicação para as reservas que sempre manteve comigo, apesar da nossa amizade de longa data. É verdade que eu tinha alguns anos a mais do que ele, mas a sua postura era claramente de suspeita. A suspeita era o seu método.
Só uma vez ou duas pus a hipótese de como seria se eu fosse mulher junto de Raimundo e a verdade é que essa possibilidade me perturbou de tal forma que nunca mais me atrevi a colocá-la. O destino de Estela era mais do que suficiente para me demover. Com Raimundo, só me restava ser homem.
Certo dia, ele perguntou-me porque motivo nunca me casara, e para não estar com grandes explicações, limitei-me a responder-lhe que nunca encontrara a pessoa certa. Claro que não lhe coloquei a pergunta inversa porque já sabia o motivo pelo qual ele não se casara…
Penso que Raimundo desconfiava do meu drama. Como poderia ser de outra maneira ao fim de tantos anos de convívio? Mas ele seria a última pessoa no mundo com quem eu admitiria falar sobre o assunto. Se o fizesse, Raimundo pôr-se-ia logo a contabilizar e concluiria que ser mulher e homem ao mesmo tempo acabava por constituir um dispêndio incomportável. Para ele, seria uma despesa a dobrar… Para mim, era uma questão de monstruosidade. Ser mulher e homem simultaneamente era uma anomalia. Eu era um monstro, uma excepção, um caso à parte. Ninguém se identificava comigo e eu não me identificava com ninguém. Assim se fazia a minha solidão. Uma solidão completa, que nem através do sexo consegui superar. Na rua, olhavam-me e a sensação que eu tinha era a de que seria inútil dirigirem-me a palavra. Claro que ninguém o fazia, mas ainda que o fizessem, eu sentir-me-ia sempre só, sem aquela protecção elementar que uma certa forma de sintonia íntima provoca em seres da mesma espécie.
Havia, no entanto, um aspecto curioso: junto de Raimundo, nunca me senti monstro, nunca me senti diferente da massa dos cidadãos, nunca me senti à margem. Talvez porque na sua companhia eu assumia apenas uma das minhas facetas, a de homem.
Toda a gente me fazia sentir inapelavelmente monstro. Por isso, acabei por desistir de ir à igreja, a concertos, a museus, ao cinema, a exposições.
Depois de conhecer Rute, nunca mais tive dúvidas de que ficar em casa era a atitude mais sensata e… desejada. Rute fazia-me esquecer tudo e isso era o melhor que me podia acontecer. Rute bastava-me. Só por si, ela superava toda a arte, todas as ocorrências, todas as dúvidas, todos os conhecimentos, todas as reflexões. Quem tinha Rute não precisava de mexer um dedo. Era suficiente olhá-la e usufruir do seu poder de sedução e comunicação. Não que ela me fizesse esquecer a minha condição monstruosa, mas tinha a arte de a suavizar, de a tornar mais amena, mais aceitável.
Com Rita, fui um monstro completo e insano. Não a raptei, não a subtraí à família de forma premeditada, mas a verdade é que nunca dei um passo para a devolver aos seus. Quem encontra alguma coisa, uma carteira com documentos ou dinheiro, tem o dever de a entregar a quem de direito ou a quem a possa devolver ao seu dono. Com Rita, eu simplesmente nada fizera para resolver a situação.
Senti-me monstro durante muitos anos. Que outro nome se pode dar a alguém com quem as pessoas não se identificam, alguém de quem fogem, alguém que receiam sem saber porquê? Procurei proceder de forma oposta à de um monstro, mas sei que o fiz sempre em vão. Aliás, quanto mais procurava não ser monstro, mais o era, ou mais sentia que o era. A minha monstruosidade era tal que, ao pé de Raimundo, eu tinha a impressão de estar, muitas vezes, ao lado de um anjo. Para quem não me conhecesse, eu era praticamente impossível de imaginar. Esta era a grande e verdadeira aberração que me caracterizava.




12


Rute não se sentia à vontade com as suas pernas. Por isso, andava geralmente de calças. Só uma ou duas vezes a vi de saia. Sempre pensei que preferia usar calças para ocultar a cicatriz que herdara dos tempos de juventude. Uma vez, falei-lhe nisso e ela não hesitou em responder-me que tinha uma má relação com as suas pernas. Nada tinha a ver com a cicatriz, que até funcionava, por vezes, como um elemento catalisador. Confessou-me que as suas pernas a incomodavam de tal forma que, em casa, costumava sentar-se no sofá e estendê-las sobre a mesa baixa da sala de estar onde as massajava, a ver se aprendia a gostar mais delas. Além de tudo, sentia que já não eram as mesmas de há trinta anos atrás.
Eu achava aquilo uma loucura, porque sabia que Rute continuava a ter o par de pernas mais desejado das redondezas. Dizia-o, mas ela não ficava satisfeita. Das suas pernas, tinha a mesma opinião que sobre ela mesma:
São horríveis! Só um cego as pode apreciar”, afirmava.
Além disso, considerava que aos cinquenta anos de idade, as suas pernas já não tinham a maleabilidade e o poder de reacção de outros tempos.
E que direi eu das minhas?!”, alvitrava eu. “Verá como aos oitenta terá saudades das suas pernas aos cinquenta”.
Rute comparava as suas pernas uma com a outra ali mesmo na minha frente num dos raros dias em que não viera de calças. Na sua opinião, em nada se assemelhavam. Dava a ideia de que pertenciam a corpos diferentes.
Está a ver?”, apontava.
Seria da idade? Da cicatriz? Da aproximação da velhice? A perna esquerda parecia-lhe mais perra, menos ágil, menos desenvolta. A direita prestava mais atenção aos detalhes do andamento, talvez por um efeito perverso da cicatriz. Era preciso dar mais trabalho à esquerda. Para que as duas pudessem levar uma vida equilibrada, para que vivessem irmanadas num mesmo objectivo.
Quando me falou da sua vida depois dos cinquenta, Rute teve a preocupação de sublinhar que se habituara a pensar nos outros, só nos outros. Para ela, o outro era o objecto de uma causa, era a causa em si. E nada mais havia que valesse a pena. As suas pernas davam-lhe que pensar, mas nunca por mais de cinco minutos. De qualquer modo, era com elas que andava e tinha acesso aos outros, ao desempenho da sua profissão.
Ai de mim se não fossem as minhas pernas”, dizia, como se para se desculpar da preocupação que me manifestara relativamente a elas.
No fundo, a acção junto dos outros justificava a sua vida. Cada um vivia por si, mas como Rute se considerava absolutamente insignificante – e feia – dedicara todo o seu tempo aos que a rodeavam.
Desde há muitos anos, desde que se convencera em definitivo da sua aparência repulsiva, abdicara por completo da sua própria existência. E fizera-o sem sombra de mágoa ou ressentimento. O seu sorriso permanente superava todos os instantes, todos os eventuais constrangimentos ou situações difíceis. Ela vivia para as dificuldades, para os problemas. Quando não os tinha, inventava-os e resolvia-os.
Ao contrário do que acontecia comigo, Rute nunca parava em casa, a não ser para mudar de roupa, ou para dormir. Andava sempre a correr. Como se houvesse qualquer coisa ou alguém a persegui-la.
Peguei no telefone para voltar a ligar para o hospital a fim de saber alguma coisa sobre a atenção que tinham dado ao meu pedido, mas hesitei, receando que o gesto de marcar alguns números no aparelho fosse suficiente para me distrair e baralhar. Acontecia-me muitas vezes. Estava a fazer uma coisa e, se me ocorria outra, procurava resolver as duas ao mesmo tempo, para não me esquecer de nenhuma, só que depois já não sabia a quantas andava, misturava tudo e acabava por deixar sempre alguma coisa para trás.
Para não perder o fio à meada, decidi esperar mais algum tempo pela ambulância, decidi ter paciência. Pela forma como me sentia, era pouco provável que a minha saúde corresse algum risco. O simples gesto de ter estendido a mão para o telefone foi suficiente para me desorientar. Pensando em Rute, só via Auxiliadora na minha frente. Voltei atrás, para tentar lembrar-me onde me encontrava e pareceu-me que nada fazia sentido. Ouvi tiros – eu, que nunca andei na guerra – e vi reflexos de água no tecto da casa, sobre riscos, palavras desconchavadas, sílabas fora do sítio. Confesso que tive medo. Senti-me fraquejar e pus a hipótese de ter piorado de um momento para o outro. Mas logo a seguir percebi que afinal tudo não passava de uma distorção passageira dos sentidos, provavelmente derivada do movimento brusco da mão em direcção ao telefone. Olhei de novo e não tive quaisquer dificuldades em observar o que se me apresentava diante dos olhos. As coisas tinham voltado ao lugar, tinham recuperado a sua lógica e eu reencontrara o meu nexo.
Para passar o tempo, voltei ao meu divertimento preferido, que era fazer corridas de carros sobre a cama. A mão esquerda seguia num sentido e a direita no oposto, a ver qual delas atingia a meta em primeiro lugar. Com a boca, fartava-me de fazer barulho de motores em alta velocidade e manobras perigosas na ultrapassagem das dobras mais salientes do lençol. Ao fim de uns minutos, senti que o cansaço se apoderava das minhas articulações e músculos. O pulso doía-me. A ambulância não chegava. E os meus carros já não tinham combustível para contornar a montanha íngreme que se elevava na passagem do lençol para o cobertor. Eu já tinha bastante menos poder físico que uma criança. Estava a consumir-me, a negar-me aos poucos, a esvair-me.
Para evitar que a fraqueza e a velhice a dominassem, Rute procurava ocupar-se com algo que a prendesse ao presente, que não a obrigasse a analisar o que deixara para trás. Até os seus momentos de maior silêncio e concentração eram devotados aos outros. Quando se debruçava sobre um dos seus doentes tentando descobrir que tipo de maleita o apoquentava era de si mesma e da sua beleza que Rute continuava a fugir. E fugindo de si mesma, ficava com a sensação de que tinha mais vida pela frente.
A beleza de Rute foi sempre uma dor de cabeça para muita gente, incluindo para ela. Este não era um dos seus temas preferidos de conversa, embora não se recusasse a falar sobre que assunto fosse. Mas a sua beleza era tão grande, tão invulgar, tão descomunal, que não era de admirar que Rute se sentisse incomodada ao falar de si própria. No seu lugar, qualquer um sentiria o mesmo. A sua beleza era ainda mais estranha porque, ao fim e ao cabo, fora sempre um equívoco.
Quando Rute passou a fronteira dos quarenta, não lhe restaram dúvidas de que a sua fenomenal aparência em nada contribuíra para a realizar profissionalmente. Se fosse bonita, pensava ela, teria casado e conseguido um bom emprego no hospital local ou no ministério da Saúde. Como assim não acontecera, estava mais que provado que era feia, feia da cabeça aos pés. Ninguém a convenceria do contrário. E quanto mais vezes lhe dissessem que era bonita, mais ela se convenceria do oposto.
Terminara o curso de Medicina e passara a dedicar todo o seu tempo aos outros, pobres e ricos, conhecidos e desconhecidos. Se alguém fazia comentários sobre a sua beleza, nem ouvia.
Na juventude, habituara-se a aceitar os convites dos pretendentes, na esperança de, mais tarde ou mais cedo, encontrar quem reconhecesse a sua fealdade e se ligasse a ela exactamente por aquilo que era e não por aquilo que aparentava. Rute queria que alguém reconhecesse que gostava dela por ser quem era e não por ser quem parecia. Queria que alguém a olhasse e não dissesse que ela era bonita. Mas todos os que a abordavam pensavam exactamente o contrário, pensavam que ela gostaria que lhe reconhecessem a beleza. Era o que faziam. Com resultados catastróficos.
Inicialmente, alguns pareciam capazes de a compreender, mas, depois, acabavam por derrapar e confessar a atracção pelo seu físico. Rute não admitia que isso pudesse determinar uma relação. Reagia de tal maneira que eles acabavam por se afastar. Criou aversão à sua imagem e à das pessoas que conheceu de perto. Retirou de casa todos os espelhos para não se confrontar com o reflexo de si mesma, para não ter que discutir com um pedaço de vidro se o seu aspecto era mais assim ou mais assado, para não esclarecer dúvidas acerca da sua aparência.
Preferia viver sem dramas, sem questões de maior a apoquentarem-lhe a alma. A beleza fora a grande tragédia da sua vida na altura da entrada para a adultez e isso bastara-lhe. Quando lhe vinham lembranças à mente, afastava-as com rapidez e eficácia. E para não ser levada por alguma tentação avançava para a casa de outro doente.
Não valia a pena recordar. Para Rute, recordar era um acto de fraqueza. Era sinal de que, no presente, não havia nada para pensar nem viver. E, vendo bem, não havia, realmente. Só que, se hoje não havia nada que valesse a pena viver, isso só poderia significar que antes não houvera nada que valesse a pena recordar. Era tudo banal e transitório.
Rute falava muito, mas falava sempre de coisas à sua volta, de situações acabadas de ocorrer, de pessoas que via ou de ideias que tinha. Se ao longo dos anos me contou a sua vida foi porque eu insistia em condicionar as nossas conversas e porque ela, no fundo, era incapaz de não aceitar um desafio. Por iniciativa dela, nunca me teria contado uma vírgula do seu passado.
Rute decidira dedicar-se aos outros porque os outros eram banais, transitórios, mortais? Com certeza. E, além de tudo, não a faziam pensar nela mesma. Visitava doentes, de livre vontade, sem cobrar um tostão. Trabalhava noite e dia.
Desde há anos que exercia a profissão de médica, por conta própria, atendendo todos os que necessitavam dos seus serviços, como se aquele fosse o único sentido que a vida lhe tivesse reservado. Quando lhe perguntavam o custo da deslocação ou da consulta, limitava-se a sorrir, sugerindo que aceitaria o que lhe dessem. Um dia, deram-lhe um pacote de rebuçados e ela ficou tão feliz como se lhe tivessem dado um contentor de moedas.
O que lhe davam eram mais do que suficiente do que necessitava para o dia a dia.
Não percebo como vivo com tão pouco dinheiro”, disse-me ela, certa vez, como se a modéstia dos seus dias se devesse a um milagre divino e não à arte com que geria a sua dedicação aos outros.




13


Raimundo chorou uma vez na vida, quando a banca lhe recusou crédito para a aquisição de um conjunto de prédios urbanos degradados, cujo preço de mercado era especialmente favorável ao comprador. Na altura, ele não dispunha de liquidez financeira para concretizar a operação. Na banca, bombardearam-no com perguntas, escalpelizaram a sua contabilidade e demonstraram que não estava em condições de contrair o empréstimo.
Compreenda a nossa posição…”, disse-lhe o administrador, na hora de lhe comunicar a decisão.
Raimundo olhou-o no instante em que terminava a frase e não conseguiu mais do que repetir o que o outro dissera:
Compreenda a nossa posição…”.
Vendo bem as coisas, a posição do banco era compreensível de um ponto de vista tradicional. Só que, numa perspectiva mais ampla, Raimundo achava que era fundamental o banco perceber que nenhuma das partes devia perder aquela oportunidade. O conjunto de prédios em questão, uma vez recuperado, passaria a ter um valor de mercado bastante superior ao da aquisição, o que permitiria a Raimundo realizar invejáveis mais-valias.
Este é um desafio decisivo para o meu futuro”, dizia Raimundo a um administrador visivelmente céptico.
Apesar da recusa, porém, Raimundo não perdeu a esperança. Voltou ao banco uma quantidade de vezes, procurando inverter a situação a seu favor. O negócio era-lhe tão favorável que lhe custava a aceitar que o seu banco de sempre não se dispusesse a financiar-lhe a operação. Além do mais, a recuperação de vários edifícios degradados seria um ganho para a cidade e para muita gente que não tinha posses para adquirir novas habitações ou escritórios.
Pareceu-lhe injusto que a banca não tivesse critérios para compreender que uma boa oportunidade para ele seria também uma boa oportunidade para quem confiasse na sua capacidade de gestão.
Se era verdade que se tratava de uma operação de risco – o banco considerava que a sua capacidade de endividamento tinha atingido o limite – não era menos verdade, também, que ele dispunha de um sólido capital de confiança junto da instituição. Era impensável, para ele, que esse capital de confiança não se traduzisse em números.
No que respeitava à sua situação financeira, Raimundo estava convencido de que a aquisição de uma quantidade de prédios que ele recuperaria e posteriormente venderia era uma operação decisiva para o restabelecimento da sua tesouraria. O importante era obter o empréstimo para a compra dos prédios e para as respectivas obras de recuperação.
O banco, contudo, e apesar da sua insistência, manteve a recusa. Ao fim de algumas reuniões com técnicos e directores, a resposta negativa acabou por chegar, seca e sucinta, definitiva, pelo correio.
A carta deixou Raimundo mergulhado num ataque de fúria que estrebuchava de espuma pelos cantos da boca. Sentia-se ofendido. Sobretudo depois de todo o empenho que colocara nas negociações. Aquela recusa era uma completa humilhação. Raimundo tinha o pressentimento de que o objectivo de quem lhe negava o crédito era rebaixá-lo, martirizá-lo, um sentimento que o destroçava.
Incapaz de se conter, logo após a leitura da carta que acabara de receber do administrador com quem dias antes estivera reunido, deu vários toques no tampo da secretária com a ponta do dedo indicador, um gesto que era o sinal maior da sua revolta e que significava:
Se o apanho, juro que não lhe deixo um osso no lugar!”
Era o que lhe apetecia fazer e ele sentia-se capaz de concretizar a ameaça, caso o bancário lhe aparecesse no escritório naquele preciso instante. Raimundo atirar-se-ia a ele de unhas afiadas, atacá-lo-ia como um leão enraivecido.
Por vezes, sonhava que cometia uma loucura, desfazia alguém aos bocados, arrancava vísceras, cortava cabeças e corria para a rua com duas ou três levantadas na mão, para que toda a gente visse o resultado da sua proeza. Isto independentemente de as vítimas lhe terem feito alguma coisa, ou não.
Para o enfurecer, bastava não lhe fazerem a vontade. À noite, Raimundo fervilhava em sonhos de vingança. E quanto mais tinha consciência de que só matava em sonhos – e que por isso ninguém o poderia condenar – mais devastador era o seu ímpeto de destruição.
Não se tratava de “matar” por razão nenhuma, mas sim de “matar cruelmente” por razão nenhuma. Fazia diferença. Raimundo detestava ver sangue. Por isso, talvez sentisse necessidade de exercitar a inconsciência com cenários em que havia muito sangue, sempre sangue, quanto mais sangue melhor. Não se atreveria a cometer um crime em estado de vigília. Nem seria capaz de dar uma bofetada em alguém. Era completamente inofensivo, nem que fosse para não perder a oportunidade de ser livre e continuar a ganhar dinheiro por muitos e longos anos. Por isso, não me preocupei quando ele um dia me falou nos seus sonhos violentos.
Os crimes que Raimundo praticava a dormir eram o seu único devaneio, a sua única ficção. Nunca seria julgado por eles, mantinham-no ocupado durante o sono e contribuíam para o aliviar da pressão de todos os dias. O sono era o mundo das suas vinganças secretas. A morte, mesmo que apenas sonhada, era um caminho para devolver sentido à sua realidade apagada e triste.
Raimundo preparava-se mentalmente para o crime antes de adormecer. Sabia que quanto melhor se concentrasse num objectivo maiores seriam as suas hipóteses de o alcançar, ainda que em estado de inconsciência ou, conforme acontecia muitas vezes, de semiconsciência, que era o que maior prazer lhe dava. Pensava neste e naquele, num concorrente ou num vizinho, nos filhos deles e nas mulheres, nos negócios que tinham ou que ambicionavam ter, cogitava sobre a melhor maneira de os tramar, de os aniquilar, e depois deixava o resto entregue ao sonho. E os seus sonhos eram quase sempre implacáveis, muito mais implacáveis do que se na verdade matasse alguém. No dia a dia, na realidade palpável e imediata, Raimundo não tinha coragem de puxar o gatilho de uma arma, nem sequer de arranhar a face de um desconhecido. Era durante o sono que a sua crueldade se manifestava em todo o esplendor. Matar a dormir era uma forma de se limpar por dentro, de se libertar dos traumas e angústias que o apoquentavam. Os seus sonhos tornavam-se tão realistas que, frequentemente, ao acordar de manhã, a primeira coisa que fazia era verificar se tinha sangue nas mãos. Era um sobressalto acordar assim, mas ele não se importava dos sustos que apanhava porque estes o faziam levantar mais depressa da cama, despertando-o, tornando-o mais célere nas respostas que se via na obrigação de dar a todo o momento.
Raimundo estava convencido de que cometer crimes a dormir era, além do mais, uma forma de nunca os vir a cometer na verdade. A ficção do crime servia para a sua vingança e, ao mesmo tempo, acabava por constituir uma terapia. Para ele, só a ficção da crueldade valia a pena. O resto era perda de tempo.
Depois de matar alguém a dormir sinto que tenho menos um problema para me chatear”, disse-me ele num dia raro em que abordou o assunto e parecendo completamente seguro de que eliminava mesmo pessoas. E ainda havia o aspecto de ele considerar que só venceria o trauma de não poder ver sangue se as mortes fossem cruéis, determinantemente cruéis.
Raimundo sabia que ninguém, nem sequer Estela, fazia a mais pequena ideia sobre quanta revolta e poder de vingança acumulava dentro de si. E fazia-o na certeza de que se comportaria com o maior civismo na eventualidade de alguém em nome do banco o visitar no momento em que terminara a leitura da carta que confirmava a recusa do tão almejado empréstimo para a compra dos imóveis, alguém do banco ou alguém que ele já tivesse matado enquanto dormia. Estas eram, aliás, as únicas pessoas que na realidade tratava com deferência e cordialidade, como se tivesse remorsos de lhes ter tirado a vida durante o sono. Tentava compensar o crime com a cortesia do trato. O que não o impedia de, na primeira oportunidade, adormecer a pensar afincadamente nas mais diversas formas de eliminar novamente as pessoas em questão.
Matar a dormir tinha ainda a vantagem de Raimundo poder sacrificar uma vítima mais do que uma vez. A dormir, a pessoa morria, mas no dia seguinte recuperava a vida, os gestos, as falas, o andar. Deste modo, Raimundo tinha a possibilidade de fazer voltar à carga o seu instinto assassino.
A partir do dia em que recebeu a resposta negativa do banco, Raimundo teve a certeza de que dali em diante detestaria todos os empregados bancários que conhecia e com os quais se relacionara profissionalmente nos últimos anos, teve a certeza de que intimamente os trataria com sobranceria e desprezo, teve a certeza de que veria um execrável empregado bancário em toda a gente que lhe surgisse pela frente e passou a odiar toda a alma viva que lhe fizesse lembrar uma instituição de crédito.
Se lhe parecesse que alguém na rua tinha as características ou os tiques de quem trabalhava num banco a primeira coisa que pensava era a forma como tiraria a vida a essa pessoa naquela mesma noite. Registava mentalmente os seus dados físicos para que mais tarde pudesse ser exacto e eficaz na forma de matar.
Quando tinha um sonho verdadeiramente feroz, Raimundo começava pelos olhos. Arrancava as órbitas e, depois, seguia-se a boca, à qual arrancava a língua, e por aí adiante. Tudo dependia, também, da reacção da vítima. Tinha várias opções: se a vítima cedia à sua vontade, ia-a destruindo a partir dos olhos, progressiva e metodicamente. Se se confrontava com uma reacção desesperada, procurava desnorteá-la, machadando-lhe a cabeça, decepando-lhe as pernas, quebrando-lhe os joelhos. Atacava sempre de forma imprevisível, com vista a aumentar o efeito de choque. Os sonhos de Raimundo eram tão precisos e rigorosos que, por vezes, ele chegava a duvidar se se tratavam mesmo de sonhos. Mas a hipótese de o não serem revelava-se de tal maneira perturbadora que nem chegava a tentar averiguar o que realmente se passava.
Os crimes de Raimundo só aconteciam em sonhos, só podiam acontecer em sonhos, conforme tive o ensejo de lhe garantir no dia em que me tocou no assunto. Eram tão malvados que ninguém seria capaz de alguma vez os concretizar. Nem sequer Raimundo.
Para ter a certeza de que ninguém se apercebia da fúria que o atacava no momento em que digeria o primeiro fracasso bancário do seu percurso de investidor, Raimundo foi trancar a porta do gabinete e quando vinha em direcção à janela, aproximou-se da secretária, levantou o auscultador do telefone e poisou-o, levantou-o e poisou-o, levantou-o e poisou-o repetindo o gesto mais de uma dúzia de vezes. A sua revolta hesitava sobre se deveria telefonar ao administrador do banco ou se deveria conformar-se com a recusa do empréstimo.
Enquanto não se decidia, insultava os bancos – todos os bancos – em surdina, entre dentes, insultava um a um os bancários que conhecia, pronunciando as sílabas dos seus nomes, de forma martelada, como se obedecendo a um estranho código; erguia-se e sentava-se; pronunciava palavrões com as narinas; dava pulinhos nas pontas dos pés parecendo um bailarino em exercício momentos antes de subir ao palco ou parecendo que esmagava todos os bancários do planeta.
Como medida preventiva, não fosse dar-se o caso de sofrer um colapso cardíaco, Raimundo dirigiu-se ao armário que tinha junto à mesa de trabalho, abriu uma pequena embalagem de medicamentos e engoliu dois comprimidos. Enquanto engolia, pensava no seu coração e na forma como aguentava os imprevistos do dia a dia. Depois, pensou que, se morresse, ninguém apareceria no seu funeral. E se alguém aparecesse, fá-lo-ia a pensar no seu dinheiro e não para se despedir dele. Mas Raimundo também sabia que não existiam motivos para que alguém se compadecesse dele no momento da sua morte. Em vida, não quisera saber de ninguém e aqueles por quem um dia se interessara acabaram por se afastar com o passar dos anos.
O tempo matava tudo, até o interesse que os seres humanos a dada altura despertavam. Com o decorrer do tempo, as pessoas cresciam, adoeciam, mudavam de sítio, casavam, envelheciam, morriam, alterando os sentimentos, os relacionamentos mais sólidos.
As pessoas que o rodeavam eram constrangidas e falsas. Se mostravam simpatia, faziam-no por formalidade.
Por mais que tentasse distrair o espírito, Raimundo acabava por voltar ao assunto do banco. Não conseguia aceitar a ideia de que a instituição com a qual sempre trabalhara estivesse a recusar-lhe um pedido de empréstimo.
Sei muito bem o que eles querem!”, disse para si próprio num ligeiro murmúrio, à falta de outro interlocutor, enquanto fixava um ponto invisível na parede. “Se acham que sou tolo, eu dou-lhes o tolo…”. Raimundo garantia a si mesmo que só pretendiam extorquir-lhe uma comissão sobre o empréstimo. Se desse o seu consentimento à falcatrua, não tinha dúvidas de que o caso se resolveria. Mal encaminhado estaria o banco se o julgasse desprevenido. Não haviam de se consolar, porém, pensava consigo próprio, enquanto arrastava os pés no soalho à procura de uma alternativa. Dez por cento de comissão? Nem se atrevessem. Nem dez, nem dois, nem um por cento! Não obtivera o empréstimo, mas também não daria um tostão a ganhar a ninguém. Ao fim e ao cabo, quem lucrava era ele.
Mas este pensamento, por mais legítimo que fosse, não o impedia de enfrentar a dura realidade que era a incompreensão do banco. Claro que podia recorrer a outra instituição financeira, mas a verdade é que depois de ter passado o que passou não lhe apetecia ir bater a outras portas. Mendigar não era a sua profissão.
Imaginou-se a pedinchar crédito, deixou-se cair sobre a poltrona que ficava diante da secretária, cobriu o rosto com as mãos e desatou a chorar como uma criança que não esquece a mágoa, a agressão, a ofensa. Foi aqui que chorou, já depois de ter descarregado toda a sua fúria em sonhos calculados de morte.
Queria ter alguém com quem desabafar naquela altura, queria estar com alguém que tivesse pena dele, mas ao mesmo tempo não queria ver vivalma porque era incapaz de chorar diante de gente. Raimundo só gostaria que tivessem pena dele, mas sabia que isso era impossível. E indignava-se por não ter a oportunidade de se sentir mais humano, mais frágil, como acontecia sempre que arrastava os pés pela casa ou pelo escritório.
Ninguém se apiedava dele porque era rico. A piedade tem tudo a ver com a falta de dinheiro. Geralmente, sente-se piedade de um pobre que não tem onde cair morto e Raimundo era tudo menos pobre.
Chorou lágrimas finas e silenciosas, chorou facas líquidas projectadas nas paredes brancas que o encurralavam. Fê-lo, sabendo que era a última vez que chorava. Não que o prometesse a si próprio. Apenas sabia que depois daquelas lágrimas não lhe restariam mais para derramar. Para Raimundo, as lágrimas corriam para secar e com as lágrimas secavam as pessoas.
O desgosto de Raimundo era tal que nem sequer lhe apetecia continuar a trabalhar para não alimentar a cobiça dos bancos. Apetecia-lhe desistir de tudo, fechar-se em casa, não ver ninguém e ficar para ali à espera de que a morte o viesse buscar.
Mas, ao mesmo tempo, havia qualquer coisa que o impelia em outra direcção, que o incentivava a prosseguir, nem que fosse para se vingar das instituições de crédito, demonstrando que podia continuar a crescer sem ter de recorrer ao financiamento de terceiros.
Não teve pressa em acabar de chorar. Deixou correr tudo o que havia para correr. Chorou até sentir que estava seco, garantindo a si próprio que nunca mais passaria pelo vexame de um banco lhe recusar crédito.
Este foi um dos episódios da sua vida profissional que Raimundo me contou e que julgo ter sido determinante na definição do seu percurso. Quando mo relatou, anos mais tarde, parecia ainda estar a viver o acontecimento, parecia ainda ter necessidade de desabafar. Nunca o tinha visto possuído por tanto rancor.
No banco, haviam-no flagelado com perguntas e dúvidas de toda a espécie para, no fim, insistirem em discordar da sua estratégia e lhe recusarem o empréstimo.
Na altura, Raimundo chegou a pensar que o mundo era como era porque a sociedade em geral obedecia aos constrangidos ditames financeiros dos bancos. E não teve dúvidas de que a banca poderia ter muito mais sucesso e peso se tivesse meios de contabilizar as emoções dos seus clientes. Ao menos não precisaria de fazer lavagens de dinheiro e recorrer a operações menos lícitas. A honestidade não era incompatível com a riqueza. Um número não devia ser apenas um símbolo de uma equação racional, mas também o símbolo de uma equação nervosa, capaz de enriquecer e solidificar toda e qualquer transacção financeira. Raimundo não tinha dúvidas de que o segredo de tudo estava na “equação nervosa”. O sucesso e o insucesso. Quando matava gente a dormir efectuava uma equação nervosa. E tanto assim era que no outro dia de manhã, ao despertar de um daqueles sonhos que ninguém hesitaria em considerar de horrível se sentia descontraído e leve como uma andorinha.
Quando as lágrimas estavam praticamente no fim e ele se preparava para dizer a si mesmo que aquelas seriam as últimas, o telefone tocou. Porém, ele não atendeu, deixando que a campainha insistente parecesse o eco da revolta que carregava dentro de si. Uma revolta hirta e fria, uma revolta só dele, que levaria para o túmulo, como se martelando ainda as sílabas do nome do administrador que se havia recusado a confiar nele (e, por arrasto, o nome de todos os empregados bancários existentes no planeta; e, por maior arrasto, o nome de todos os que se cruzavam com ele e que tinham cara de ser, ou de ter sido, empregados bancários).
O administrador do seu banco merecia a pior morte. Havia de preparar o caso numa das próximas noites quando não tivesse ninguém mais odioso a quem tramar. Não lhe restavam dúvidas de que a noite em que mataria o reles director de crédito havia de ser inesquecível e repousante. Raimundo não se sentia pior do que o comum dos cidadãos. Ele próprio mo disse uma vez, receoso do que eu pudesse pensar:
Posso ser um assassino em potência”, explicou. “Mas deixo de sê-lo a partir do momento em que assumo que o sou apenas em potência. Aniquilo a minha potência ao reconhecer o que sou”.
Raimundo tinha aquela forma de se explicar não explicando, enrolando palavras que se contradiziam ou que nada acrescentavam…
Apesar de tudo o que arquitectou para se vingar do banco, sabia que dali em diante se limitaria a mudar de forma radical o seu relacionamento com as instituições de crédito, independentemente das vénias que faria aos bancários que com ele se cruzassem. Tinha a certeza de que enriqueceria mais depressa sem os bancos e sem a submissão aos seus métodos de trabalho. Quando o contrariavam, ia aos píncaros, mas sabia que aquilo só lhe fazia bem porque estimulava o seu raciocínio e o obrigava a encontrar novos caminhos que eram geralmente melhores do que os inicialmente pensados.
A partir daquele dia, ordenaria o encerramento de todas as suas contas (dele e da empresa) no banco em questão, o que significaria uma perda para a instituição com que desde sempre trabalhara.
De ora em diante, Raimundo seria o seu próprio financiador, seria o seu próprio banco. Era uma questão de começar aos poucos, de ir gerindo os recursos de acordo com um novo entendimento do processo financeiro. Um entendimento que assentava nas virtualidades do racional e do emocional. Poria ambas as virtualidades ao seu próprio serviço. Esqueceria o negócio dos imóveis degradados, mas empenhar-se-ia doravante em aplicar os seus investimentos com rigor e eficácia, ora de forma cerebral e implacável ora de forma hesitante e emotiva, para que a sua racionalidade e implacabilidade fossem ainda mais convincentes. O importante era nunca perder de vista o objectivo do negócio. Por vezes, o sucesso da caça estava na demonstração de um espírito de incerteza e divagação que conduzia a presa aos braços do atirador. A recusa do banco tinha acabado por conduzi-lo a um novo caminho de negócios, um caminho solitário, diferente do que ele projectara, e que se viria a revelar bastante mais produtivo do que alguma vez imaginara.




14


Não me admiraria se Rute aparecesse cá em casa ao mesmo tempo que a ambulância. Estranho de tal forma o seu afastamento que tendo a relacioná-lo com o atraso dos serviços de emergência. Rute está sempre tão junto de mim que nos dias em que não me visita sinto que a sua presença é ainda mais forte, mais avassaladora. Esta sensação, porém, não substitui a pessoa.
Como Rute fala pelos cotovelos, quando estou só, fico com a impressão de ouvir o eco das suas palavras. E o eco é bastante mais do que a palavra, porque a estende, amplifica, aumenta os contornos.
Conheci Rute quando, certo dia, um dos meus vizinhos lhe pediu ajuda para me tratar de uma gripe invulgarmente prolongada. De então para cá, a amizade cresceu e, ainda hoje, quando não tem outros doentes para ver, é frequente Rute deslocar-se a minha casa a propósito disto e daquilo, ou a propósito de nada:
Passei para saber como estava”, costuma dizer, com voz arejada, longe de adivinhar a profunda alegria que a sua presença me causa.
Muitas vezes, nem se demora. Entra e sai, como se apenas precisasse de me ver, como se quisesse certificar-se de que ainda estou por cá, de que ainda resisto.
Inicialmente, Rute visitava-me uma ou duas vezes por mês. Depois, passou a visitar-me todas as semanas e, mais tarde, praticamente todos os dias – e até mais do que uma vez no mesmo dia – por não poder dispensar os momentos, conforme ela mesma assumiu, em que me fala das coisas mais improváveis. Fá-lo por prazer, pelo puro prazer de contar e de manter a mente ocupada.
A nossa diferença de idades é superior a três décadas. E em três décadas, há milhões de coisas que afastam e aproximam. Por isso, nunca teríamos tempo para pôr em dia as nossas vidas, mesmo que o tentássemos. Mas partilhamos muita coisa. Falamos de todas as maneiras, sem inibições.
Quando Rute não vem, como tem acontecido ultimamente, sinto-me chorar por dentro, tal a necessidade que tenho dela. Chorar por dentro dói mais do que todas as outras formas de chorar. É um choro abafado que nasce na raiz das células e que nos inunda até ao mais ínfimo recanto. Chorar por dentro é como ir morrendo em pedaços maiores.
Hoje, Rute não veio, mas contenho a dor porque a ambulância pode chegar a qualquer momento e não admito apresentar-me com ares de fraqueza, nem de pieguice, a quem quer que seja, nem que me encontre a poucos segundos de morrer. Não quero que me adivinhem, nem que me pressintam.
Há outros dias em que a ausência de Rute se transforma numa dor física, concreta e material, uma dor que me invade e que sou incapaz de controlar. É como se fôssemos da mesma matéria e eu não pudesse estar longe dela.
Às vezes, também a lembrança de Rita, que não sei onde está, me destroça. Dou comigo frequentemente a recear que ela já nem se recorde de mim. Sei que isso é totalmente improvável, mas acumulo receios, desconfianças fundas. Pode acontecer tanta coisa a uma jovem que toma a vida nas suas próprias mãos.
Quando suspiro mais fundo, procuro fazer que não me oiçam no andar de baixo. Não quero que saibam da minha dor e da minha comoção. Não quero que pensem que enlouqueci com a idade e que ponham a hipótese de me entregar a um hospício. Sabe-se lá as suspeitas que um suspiro, um suspiro mais cavado, mais sonoro, pode gerar num prédio urbano.
Suspiro porque me vou embora. E nem suspiro de tristeza. Suspiro de emoção. Suspiro por ter concluído as minhas tarefas. Suspiro porque sei que Rita está viva, está algures fazendo o percurso da sua estafeta. Suspiro por tanta coisa que não sei explicar, que não recordo, mas que palpita em mim como se tivesse acabado de acontecer ou estivesse prestes a repetir-se com uma intensidade redobrada.
São poucas as coisas que actualmente me interessam. Uma é o ruído dos passos de Rute subindo os degraus da escada do prédio onde moro, outra é o toque do telefone, altura em que ponho sempre a hipótese de ser Rita a dar notícias, mesmo quando se trata de alguém a tentar recolher dados para um qualquer inquérito comercial.
Sempre apreciei que Rute e Rita se metessem comigo, se intrometessem na minha vida. De contrário, nada faria sentido para mim. Sempre apreciei que me provocassem, que me incomodassem, que se fizessem sentir vivas nos meus dias. Sem elas, eu teria sido outra pessoa. Provavelmente, já não estaria por cá.
Foi entre visitas curtas, entre idas e vindas, entre risos e horas somadas de conversa que fui conhecendo Rute. Para além disso, há muita coisa que se sabe através de um olhar, de uma hesitação na voz, de um rosto mais baço ou mais ofuscante. Há muita coisa que se sabe através de um sorriso, daqueles sorrisos nervosos cheios de amargura estridente. Pelo odor da pele, quando se aproxima para me saudar, chego a adivinhar os dias em que Rute toma duche antes de sair de casa e os dias em que apenas se apressa a pôr qualquer peça de roupa sobre o corpo.
Geralmente, pressinto quando ela me vem visitar (nos últimos dias não pressinto nada). Tem a ver com a cor dos dias, com a intensidade da luz cinzenta, embora o cinzento não tenha intensidades dignas de registo. Não sei explicar. O certo é que daí a pouco a ouço subir as escadas do prédio onde vivo, até ao primeiro andar, com passos suaves, delicados, cuidadosos e ponho-me logo a adivinhar muito do que se passou na sua vida pelo som e pelo ritmo do seu andar. Se sobe devagar, é porque anda a remoer alguma coisa do passado que acha nunca ter resolvido adequadamente; se sobe depressa, é porque tem alguns doentes à espera, mas passou pela minha zona e quis entrar para me ver.
Ultimamente, porém, não tenho tido sinais de Rute. Não a tenho ouvido subir as escadas do prédio nem depressa nem devagar. Não tenho forma de a adivinhar. Sinto-me no meio de uma perdição que me tolhe por completo. E é essa perdição que faz explodir em mim a visão mais ofuscante de Rute.
Um dia, ela contou-me que ajudava as pessoas a morrerem felizes. Contou-mo com um brilho nos olhos, como se dizer-me aquilo fosse um momento de especial significado na sua vida. Contou-mo como se tivesse esperado anos até arranjar coragem para partilhar o seu segredo com alguém.
Por que não hei-de fazê-los felizes no momento da partida?”, perguntava, entusiasmada com a certeza de que eu dificilmente reprovaria a sua atitude.
Num primeiro momento, quando as palavras ainda causavam um impacto de ondas agitadas nos meus ouvidos, não tive a certeza de perceber os termos que ela proferira, pensei que fosse confusão minha e esperei para ouvir o resto.
Só os faço mais felizes na hora de morrer”, continuou ela. “Espero o tempo que for preciso até chegar a altura de partirem e então ponho-me a dizer as coisas bonitas que me vêm à cabeça. Sem esforço, as palavras saltam, tropeçam umas nas outras e eu só me preocupo em ordená-las, moderá-las”.
Naquele dia, no preciso momento em que me contava algo de tão íntimo, Rute falava como se mal pudesse parar para respirar, como se quisesse certificar-se de que eu percebia tudo o que dizia e que, além disso, aprovava o seu comportamento, embora não lhe restassem dúvidas de que não poderia ser outra a minha posição. Nos intervalos da conversa, olhava-me nos olhos, numa clara tentativa de adivinhar os meus pensamentos.
Trouxera-me à cama um copo de leite e tinha-se sentado na beira do colchão, como fazia sempre que pretendia controlar melhor os meus gestos. A minha reacção foi não esboçar qualquer gesto. Não me atrevi, não quis influenciar o seu relato.
Acho que é preferível partirem felizes do que aterrorizados e revoltados!”, acrescentou, algo aturdida com o meu silêncio.
Apetecia-me fazer-lhe perguntas, saber mais pormenores, revolver a conversa para deslindar melhor o que ouvia, mas receava que uma intervenção minha lhe fizesse perder o rumo da conversa.
Ela continuava a não hesitar em relação a mim, parecendo segura de que eu não me intrometeria no seu raciocínio. A sua preocupação era explicar, fazer-me perceber. Naquele instante, eu não era Lis. Era muito mais. Era muitas mulheres e muitos homens ao mesmo tempo.
Como era médica, ninguém estranhava que Rute quisesse ficar junto aos doentes para os acompanhar nos derradeiros instantes de vida, ninguém punha em causa as suas intenções. Não havia motivos para isso. Rute limitava-se a garantir felicidade aos mortos, nacos de consolo às famílias desesperadas…
Em muitos casos, ela tinha a preocupação de organizar a morte com antecedência, dependendo a urgência dos seus preparativos do estado de saúde do doente. Rute sabia quem morreria dentro de pouco tempo, calculava quem resistiria, e aproveitava as suas visitas de rotina para recolher informação sobre o passado de cada um. Deste modo, não lhe era difícil saber qual a pessoa já falecida que o moribundo mais amara, por quem se tinha deixado marcar especialmente (regra geral, um filho, a mãe, o marido…).
Esse era um aspecto essencial para Rute. Na sua maneira de ver, só era possível morrer bem, morrer em paz, na companhia de quem mais se amava. Por isso, Rute procurava encarnar a pessoa que era mais querida do moribundo, procurava encher de esperança o último suspiro de mães, crianças, idosos. Preferia mulheres, confessava-me, porque com elas se sentia mais à vontade, mas não virava a cara a ninguém. Chegou a vestir-se de homem, com uma barba postiça que tivera o cuidado de arranjar no dia anterior, só para ter a certeza de que a mãe de duas gémeas de seis meses chegava ao paraíso convencida de ter morrido na companhia do marido.
Depois de a mulher ter expirado, quando Rute despiu as roupas de homem e a verdade tomou conta dela nas suas vestes femininas, chorou que se fartou, chorou de desgosto por não ter feito nada pelas duas órfãs que uma das tias embalava na sala ao lado, enquanto a mãe morria abraçada a uma estranha que pretendia fazer-se passar por seu marido.
Rute fazia um esforço tremendo para simular felicidade no momento em que alguém morria, para não correr o risco de o defunto chegar ao outro mundo mais desconsolado do que fora em vida. Se ela soçobrasse, deitaria tudo a perder. Por mais que lhe doesse o papel que fazia, sentia-se obrigada a desempenhar a sua tarefa com alegria. Havia alturas em que ria muito, ria quase despropositadamente, para que não restassem dúvidas de que a morte era um momento crucial de felicidade que permitia o reencontro com os entes queridos, a encruzilhada fundamental na vida de qualquer humano. E nenhum moribundo resistia ao seu riso.
Eu limitava a ouvi-la, descobri-la, compreendê-la, tentar compreendê-la. No fundo, Rute era a actriz da morte. A actriz de um só espectador, com o qual fazia tudo para o ajudar a desligar o interruptor da vida.
De todas as histórias que me contou, houve uma em que a vi claramente recear que eu considerasse abusiva a sua atitude. Junto ao leito de um homem com pouco mais de quarenta anos de idade, que padecia de cancro intestinal, Rute começou por prepará-lo, dizendo:
Deixe-se ir… deixe-se ir ao encontro da felicidade, não tenha medo, eu levo-o pela mão, estou aqui para o ajudar, feche os olhos, não se aflija, os seus filhos estão bem entregues, estão preparados para a sua partida, já lhes deu tudo, fez muito por eles, sacrificou-se como ninguém, agora é tempo de pensar em si, é tempo de descansar…, sossegue, dê paz à sua consciência, a sua alma quer tranquilidade, a sua alma quer regressar”.
E, depois, mudando completamente de tom, com uma voz pausada e grave, como se de repente tivesse sido tomada por outro corpo, Rute moderou o sorriso como o da foto da mulher que o doente tinha há anos sobre a mesa-de-cabeceira, prendeu um lenço rapidamente à nuca, uniu as mãos e garantiu ao homem ser ela a sua legítima esposa (falecida duas década antes):
Vem querido, vem ter comigo, vem beijar-me e abraçar-me, que saudades tinha do teu corpo junto ao meu. Zelei todos estes anos por ti. Trataste muito bem o Casimiro e o Guilherme, fizeste dois filhos lindos que amo acima de todas as coisas. Estão dois homens bonitos, corpulentos, educados e regrados. Por eles se vê a generosidade do pai que soubeste ser. Mas agora está na hora de seres generoso contigo. E também comigo. Acabou-se o teu tempo na terra. Agora, é a minha vez de te ter, de te sentir a meu lado, de te absorver a alma. Os nossos filhos precisam de viver por eles, precisam de caminhar sozinhos. Não deves tornar-te um peso nas suas vidas. Tudo tem os seus limites. Não tenhas pena de partir. Só podes sentir alegria, porque sabes que vens ter comigo. Guardei-te aqui no céu um cantinho. Fiz-te a cama de lavado, incensei o quarto e esperei por ti. E agora chegou o momento. Foi Deus quem me ordenou que te viesse buscar. Deus compadeceu-se de ti. Não te aflijas. E achou que já era tempo de nos reunirmos no seu reino divino”, ofegava ela, transformada, transtornada, transmutada na mulher do moribundo, tornada outra, uma estranha dela mesma sob os lençóis do doente.
E após um compasso de espera, Rute disse-me sem pestanejar:
Não sei como foi possível acontecer aquilo, não me achava capaz de fazer o que fiz. Nunca contei isto a ninguém. Peço que não leve a mal o que vai ouvir, mas preciso de desabafar. Só espero que tenha a frontalidade de me dizer se sentir que perde a consideração por mim”, concluiu com um ligeiro estremecimento na voz.
Vendo, porém, que não me arrancava palavra, deu o passo em frente, disse o que nunca sonhara dizer, o que nunca se achara capaz de revelar nem em segredo de confessionário: “Chegou uma altura em que me perdi”, explicou. “E quando dei por mim, tinha na mão uma massa débil, murcha, desencantada, que excitei com toda a energia da minha alma. Era como se as minhas mãos tivessem adquirido um movimento próprio”.
Rute parecia ter sido abandonada pelas forças da narrativa. Estava tão cansada como o moribundo depois do último prazer terreno.
Tive que desviar os olhos dos dela. Não aguentei. Precisei de reflectir. Não perdi a consideração por Rute, mas espantou-me tomar conhecimento do que ela me contava.
Só fiz aquilo para que ele tivesse a certeza de que eu era a sua esposa”, acrescentou ela, querendo deixar claro que, na sua opinião, a felicidade de um moribundo estava acima dos códigos que os humanos engendram.
A sua pretensão era que o homem se sentisse desejado naquele momento, se sentisse bem recebido, se sentisse em casa, numa nova casa, para lá do muro da vida, para lá do último suspiro. Se ela conseguisse iludi-lo, o doente não teria problemas em passar a fronteira, não teria receios, nem sofreria com a despedida dos filhos.
Quando reencontrou os meus olhos, Rute sentiu confiança para continuar o seu relato e disse-me que, depois do prazer que deu ao moribundo, se aninhou contra ele, deitou a cabeça no seu peito e prosseguiu a torrente de palavras por entre as quais a sua alma levantaria voo para a eternidade: “Estás a ver-me, querido? Gostaste? Estás a reconhecer-me? Acreditas agora que sou a Maria Alberta, a tua mulher?”
E, virando-se para mim, explicou que, à medida que falava, à medida que Maria Alberta enchia o quarto do incenso que transbordava do seu corpo, o homem assentia com a cabeça, sorria levemente, aflorava movimentos de lábios ressequidos, sem no entanto conseguir travar a companheira: “Quero-te forte e satisfeito”, dizia Rute… – dizia Maria Alberta – diziam as duas ao mesmo tempo. “Agora que estás consolado, vou mostrar-te as belezas do paraíso. Não te arrependerás de vir comigo. Desprende-te, não penses no que fica para trás, o que passou lá vai, agora tens-me junto de ti para sempre, não voltaremos a separar-nos”.
Rute disse-me que, extasiado pelo que lhe acontecia, o homem recuperou forças e tentou erguer-se na cama, a fim de observar melhor a sua Maria Alberta. E apesar da debilidade em que se encontrava, conseguiu balbuciar por entre a saliva escassa que se lhe colara aos lábios: “És a Maria Alberta, és a minha querida Maria Alberta…”, deixando-se cair, de novo, sobre o colchão, sem peso, enquanto Rute não parava de o acarinhar sob os lençóis, com movimentos de mão em todas as direcções, afagando-o, aquecendo-lhe as carnes esqueléticas.
Depois, explicou que a morte de uma mulher era geralmente mais tranquila do que a de um homem. Por isso, ela preferia acompanhar mulheres, que eram ternas, se abraçavam a ela, respondiam às suas palavras doces, lhe davam beijos e seguiam viagem convencidas de estarem abraçadas à mãe.
Quando morria uma mulher, Rute chegava a cantar melodias suaves, embalando-a, ajudando-a a convencer-se de que estava às portas do céu, onde os anjos ocupavam o tempo entoando cânticos de salvação. Eles eram mais exigentes, mais concretos, queriam provas…
Depois de tudo o que fiquei a saber sobre a vida de Rute e sobre a forma como encarava os últimos instantes de vida de uma pessoa, percebi que, para ela, a morte era o momento em que as almas se salvavam, ou não. Se partiam tranquilas, chegavam ao céu. Se partiam em desespero, não encontravam sossego. O que ela fizera ao marido de Maria Alberta fora tentar escancarar-lhe as portas do reino de Deus.
Pouco mais lhe fizera do que fazia a todos os outros moribundos. Na sua opinião, o importante era que as pessoas não morressem sós. Se tinham prazer físico, ou não, isso era o que menos contava.
Rute ia-se deixando cair em generalidades, acabando por defender que a morte feliz, a morte acompanhada, contribuía para a pacificação da alma, ao passo que a morte solitária era uma forma de morrer duas vezes (morrer porque se chegava ao fim e morrer porque não se tinha ninguém ao lado).
A presença de Rute junto aos leitos de morte era a sua forma de amar, a sua forma de maior amor, a sua forma de dar – só dar – sem discussão; a sua forma de acompanhar até ao último instante gente que ela pouco conhecia, gente de quem gostava, gente a quem prestava assistência, gente que nunca vira na sua frente, gente sem esperança e sem condição.
Rute sofria nesses momentos, como ela própria me dizia, mas achava que estava vocacionada para encaminhar almas para a eternidade. Sofria, mas também se sentia feliz pelo papel que desempenhava à cabeceira dos doentes. Acompanhar na morte era a sua forma de realização. Contava histórias à pessoa que estava prestes a partir, ria-se com ela, tentava fazê-la esquecer os maus momentos, incentivava-a a libertar-se, aconselhava-a sobre como proceder para garantir uma viagem tranquila, metia-se na cama com ela, abraçava-a, beijava-a.
Não devia haver quem não quisesse morrer com Rute à ilharga, imaginava eu. Quem morria com ela morria certamente feliz. Alguma vez um moribundo recusaria sentir o calor de Rute por baixo dos lençóis?! Com certeza que não. Morrer com Rute ao lado, calculo, é morrer com esperança, é morrer pensando que a outra vida nos reserva de presente para toda a eternidade a mais bela mulher do mundo. Morrer na companhia de Rute é encontrar na morte a felicidade suprema que nos faltou em vida.
O desafio de Rute era levar as pessoas a enfrentarem o fim de braços abertos, a desejarem-no, a compreenderem que não se trata de um termo… mas de um princípio. Há quem lhe chame eternidade, há quem lhe chame “possibilidade de eternidade” (digo possibilidade porque a eternidade não é uma garantia, é uma hipótese, dependendo de a pessoa ser capaz de a alcançar, de a construir, de dar um contributo para a sua concretização). Quanto mais gente for capaz de colaborar na construção da eternidade, maior será o seu alcance. Tudo depende dos humanos. Da sua inteligência, da sua capacidade de descoberta.
Por vezes, desconfio de que Rute anda à espera que chegue o meu dia de partir. Por isso, me visita com tanta assiduidade. Às vezes, penso que ela me visita por amor, outras vezes, desconfio que o faz apenas na expectativa de me poder acompanhar nos derradeiros minutos.
Bastante para lá dos oitenta anos de idade, encontro-me na bicha de espera para o dia em que hei-de partir, de preferência com Rute a meu lado. Não tenho dúvidas de que Rute o sabe. E eu também o sei. Até porque ela, há algum tempo, teve a preocupação de me fazer perguntas sobre a minha mãe, enquanto observava distraidamente a foto que tenho sobre um dos móveis da sala de espera. Sei que se está a preparar para representar a minha mãe quando chegar o meu fim (durante uns tempos, hesitou entre mãe e pai). E sei, também, que hei-de fingir acreditar na sua representação, nem que seja para que ela se sinta útil, para que mantenha a ilusão de que o seu gesto é importante na recta final da minha estafeta. Ou, então, hei-de mesmo acreditar piamente que estou a morrer com a minha mãe ao lado, sorrindo-me e beijando-me como quando era criança, uma mãe não exactamente parecida com Rute, mas de qualquer modo, a minha mãe, o grande amor da minha vida, debruçada como um anjo sobre os lençóis da minha infância.
Rute nega veementemente que me visite tantas vezes por estar à espera do dia da minha partida. E para o comprovar já chegou a insinuar que não se importa de desaparecer por uns tempos.
Pedi-lhe encarecidamente que não o fizesse. Deixei de poder imaginar a minha vida sem as visitas de Rute. Até porque a sua presença é uma das formas que tenho de me ir preparando para a última viagem.
Mas ela desapareceu, realmente, o que me leva a concluir que pode ter levado por diante a sua intenção de provar que é apenas minha amiga e que não me visita com outro objectivo. Não tenho dúvidas de que agiu para me fazer sentir a sua falta.




15


Mesmo quando passeava com Estela aos domingos, Raimundo só pensava em dinheiro, só fazia contas mentalmente, só congeminava estratégias para levar à prática no dia seguinte.
Quando estava com ele, Estela tentava dizer alguma coisa, fazer um comentário, a ver se captava a sua atenção, mas só obtinha uns ligeiros murmúrios, uns “uhhs…”, uma espécie de grunhidos, umas sílabas arrastadas que nada adiantavam e que não se sabia que significado podiam ter.
Enquanto caminhava ao lado de Estela, Raimundo chegava ao ponto de ocupar o espírito com o registo cirúrgico do preço do chocolate que tinha por hábito oferecer-lhe. Nunca o confessaria a quem quer que fosse – só mo referira uma vez – para que não tivessem prova da sua sovinice, mas fazia-o com um impiedoso, quase doentio, espírito de minúcia, como se o seu futuro dependesse daquela ínfima quantia. Nas suas mãos, o ínfimo atingia proporções incalculáveis. A soma dos ínfimos acabava por constituir a explicação da sua prodigiosa fortuna pessoal.
Com o passar dos anos, Estela habituara-se ao estilo dele, habituara-se à infelicidade de estar com alguém que não tinha em conta a sua existência, a não ser quando lhe oferecia um chocolate aos domingos à tarde.
Muitas vezes, ela preferia que ele nada lhe desse, que esquecesse o chocolate, mas que ao menos lhe dissesse alguma coisa, que ao menos lhe dirigisse uma palavra de carinho e compreensão.
Raimundo, porém, parecia longe de adivinhar os desejos de Estela. Para ele, o chocolate que lhe oferecia era a prova bastante dos sentimentos que nutria por ela. Por que havia Estela de querer mais do que um chocolate? Que poderia ela ambicionar mais? Um chocolate era quase uma prova simbólica, mas era uma prova. E uma prova doce. Para gostar de alguém não era necessário estar “sempre aos beijos” e “sempre a falar de amor”, dizia-me ele. Gostar era uma coisa que havia dentro de cada um e que valia por si.
Ele desconfiava que Estela era infeliz, mas recusava-se a ponderar a hipótese de essa situação se dever ao relacionamento que ambos mantinham. Para Raimundo, Estela era infeliz porque, à semelhança de quase toda a gente, tinha sido educada no sonho e não na realidade, tinha sido educada no delírio das convenções e não na crueldade do dia a dia. Ao tornar-se adulta, percebera que nada era como lhe haviam ensinado em criança e então caíra naquela tristeza, naquele desalento que Raimundo não tinha meios para combater. A tristeza de Estela era a tristeza de toda a gente. Contra isso nada a fazer. Raimundo achava que os passeios que dava com Estela, aos domingos, já eram uma grande ajuda, um assinalável contributo para desanuviar o torpor que ela carregava na alma.
É que ele também não era feliz. Não fora a labuta quotidiana pelo dinheiro e Raimundo não saberia o que fazer à vida. A tristeza era um estado de alma, era uma opção, uma vocação. A tristeza corria nas veias e esfarelava o coração, desarticulando-lhe os músculos, emperrando-lhe as entradas e saídas da sensibilidade. Por isso, Raimundo entendia que ajudar Estela era uma tarefa impossível. Ela é que tinha de fazer alguma coisa por si. Não estar sempre em casa, nem estar sempre à espera dos telefonemas dele, dele, dele. Ela é que tinha de reagir. Tal como Raimundo elegera o dinheiro a causa da sua vida, Estela devia fazer o mesmo, devia arranjar uma causa, por singela que fosse.
Em outros tempos, ele incentivara-a a isso, mas Estela nunca dera o passo decisivo. Foi como se tivesse ficado na expectativa de que ele operasse o milagre. Só que Raimundo não gostava que ficassem à espera dele para coisa nenhuma. Por isso, nunca lhe deu o que ela queria, nunca prestou atenção à angústia que ela carregava nos ossos.
Raimundo tinha muita coisa a seu cargo, não dispunha de tempo para se deter e preocupar com os humores de Estela. Ao fim de uns anos de trabalho, e em virtude do sucesso dos seus métodos, tornou-se proprietário de um sem número de imóveis cujo aluguer lhe proporcionava invejáveis níveis de rendimento, comprava e vendia acções com perícia e sentido de oportunidade, fazia parte dos conselhos de administração de diversas empresas, possuía restaurantes nas melhores zonas do país. Tudo pelo prazer que lhe dava acumular dinheiro, dinheiro, mais dinheiro. Raimundo punha o dinheiro acima das pessoas, porque o dinheiro lhe obedecia, ao passo que as pessoas, por mais submissas que se mostrassem, tinham sempre um elevado grau de imprevisibilidade.
As suas responsabilidades eram tais que não se podia dar ao luxo de ficar dependente da disposição de Estela, ou de quem quer que fosse. A sua vida era de uma disciplina férrea, obedecia a critérios e planos, seguia uma direcção sem inflexões. De outra forma, não teria conseguido atingir os seus objectivos. E, agora que os atingira, não podia alterar a estratégia que o conduzira ao êxito.
Raimundo não gostava de ser rico pelo conforto que o dinheiro proporcionava, mas sim pelo prazer que lhe dava a posse do dinheiro. Só isto. Não lhe interessava o que o dinheiro podia comprar, interessava-lhe o dinheiro em si mesmo, como nos interessa uma pessoa ou um animal de estimação. Se o investia era porque sabia que só deste modo podia ganhar mais e mais dinheiro, mais e mais pessoas, mais e mais animais de estimação. Se assim não fora, guardá-lo-ia até ao último tostão. O prazer maior da vida de Raimundo estava no odor do dinheiro. Era a sua única excitação, uma espécie de forma concreta e definida que o motivava para os negócios e o animava nas agruras do quotidiano.
Com o decorrer dos anos, Raimundo acabou por aceitar tudo, quase tudo, mesmo aquilo que em tempos remotos considerava acima de todas as tolerâncias. As desilusões eram como a chuva: por mais que tentássemos abrigar-nos, éramos sempre atingidos, sempre atravessados pelo veneno das gotas. Raimundo cedeu em tudo, menos no dinheiro.
O dia em que tinha de pagar impostos era o pior do ano para ele. Logo de manhã, ainda na cama, doía-lhe o corpo todo, sentia náuseas e falta de ar só de pensar no contabilista e na repartição de Finanças. Apetecia-lhe fugir, esquecer projectos, abandonar tudo. Porém, o chefe da contabilidade não parava de lhe ligar para casa, a lembrar-lhe que precisava da sua assinatura para liquidar a quantia em dívida ao Estado. Raimundo dizia que sim, garantia que em breve estaria no escritório, mas na verdade procurava demorar-se o mais possível, arrastando exageradamente os pés ou encontrando os mais diversos pretextos, como uma camisa mal passada ou um par de calças com uma cor que não lhe agradava, na esperança de que acontecesse alguma coisa, algum milagre… até à hora de o cheque dar entrada nos cofres públicos. Mas havia um momento do dia, havia um ponto, havia uma passagem de minuto em que Raimundo percebia que não tinha hipóteses de fugir à situação. E avançava para o escritório, contrariado, quase se insultando a si mesmo por não ter meios de escapar a um tal pagamento. Considerava-se estúpido só por não ser capaz de contornar a liquidação dos impostos. Se não fosse estúpido, pensava consigo mesmo, conseguiria imaginar uma alternativa.
Vergado à realidade dos impostos, Raimundo deixou de sentir interesse pelo que quer que fosse, desde que a sua riqueza continuasse intocável. Fez-se apático, meditabundo, quezilento. Excepto quando o dinheiro vinha à baila. O dinheiro tomou conta da sua vida. Tornou-se um vício, o seu vício exclusivo. Tudo o que fazia, mesmo sem premeditação, acabava sempre por desembocar em análises ou operações financeiras, o que significava, dinheiro, sempre dinheiro.
A organização da sociedade, para Raimundo, era responsável por esse fenómeno. Porque tudo na sociedade estava orientado para os negócios e para o dinheiro. Ele limitava-se a reagir de acordo com a tendência geral. Queriam dinheiro? Preocupavam-se com dinheiro? Só pensavam em dinheiro? Ele mostraria como proceder, ele exemplificaria o modo de acumular riqueza, ele enfrentaria as adversidades. Fá-lo-ia sozinho, sem ajudas, sem partilhas, sem lamentos.
A sua missão no mundo era essa demonstração de independência absoluta. Não precisava de ninguém. O dinheiro era o seu único amigo. O dinheiro libertava-lhe o coração, prolongava-lhe a vida. O dinheiro seduzia, tudo comprava. Um dia, se fosse possível, gostaria mesmo de comprar a sua própria imortalidade, nem que fosse para demonstrar às gerações futuras quão capaz era de desprezar tudo menos o dinheiro.
O dinheiro não envelhecia, não adoecia, não chateava, não traía, não fugia, não dizia hoje uma coisa e amanhã outra, não era ciumento, não comia, não bebia, não dormia, não enganava. Era o que era. Um valor simbólico, um valor taxado, sem tirar nem pôr, nada de confusões nem de meias tintas. Nem o perturbavam as oscilações a que o valor da moeda estava sujeito porque a moeda, para Raimundo, não valia pelo que comprava, valia por si mesma.
O dinheiro estava acima dos sentimentos, da bondade, do ódio. Era a única coisa que dava sentido a uma existência sem sentido. O dinheiro era a mola dos dias, a força da acção, o motivo para não desistir. Era um valor, como a família, o amor, o bem. Um valor quantificável, por isso, fundamental.
Raimundo não percebia por que havia gente que tinha uma ideia negativa do dinheiro, que criticava o consumismo e o investimento, quando era mais do que evidente que o consumismo e o investimento eram a alma da sociedade, as suas molas propulsoras. Sem consumismo e sem investimento, os cidadãos morreriam de tédio, o dinheiro não faria sentido. Uma sociedade sem dinheiro estaria condenada à doença e à desintegração porque a riqueza não circularia, seria um sangue morto. O dinheiro fora a mais importante invenção do Homem. Mais importante do que o fogo, a roda, os transportes, a exploração espacial.
Raimundo também achava que eu acabava por pactuar com os críticos de um mercado em desenvolvimento porque vivia para uma actividade sem me preocupar com os proventos dela resultantes. Bastava-me ter o suficiente para viver e isto fazia-lhe uma enorme confusão. Na sua forma de encarar as coisas, o meu desinteresse pelo dinheiro – o único factor de felicidade ao nosso alcance – era uma aversão camuflada que eu nutria pelo mercado e pelas suas regras. Só não o assumia abertamente para evitar que a minha atitude parecesse radical ou extemporânea.
Nem te preparas para os imprevistos!”, disse-me ele, certa vez, quase se indignando com a minha indiferença perante o seu argumento. “Rita cresceu e viveu contigo durante anos e nunca puseste uns cobres de parte para alguma urgência, algum contratempo”, insistiu Raimundo, certo de que eu não tinha resposta para a sua argumentação.
Mas não foi por isso que ela deixou de ter uma educação como a das outras crianças”, repliquei. “Se saiu de casa tão cedo foi porque quis. Nunca lhe faltou nada”.
Eu sei…, eu sei…”, retorquiu ele. “E não é segredo para ti que o investimento na educação me parece um desperdício, um verdadeiro disparate. Mas já que aceitaste a rapariga em casa devias ter agido de outra forma! Eu, ao menos, sou coerente: recuso-me a ter filhos para não gastar dinheiro com eles.”
Raimundo não deixava de ter alguma razão, mas eu não lhe dava grande réplica, porque até me sabia bem vê-lo falar daquela maneira, com tanto à vontade, o que não era frequente nele. No fundo, eu sentia que as suas críticas eram vagas e sofriam de alguma falta de senso porque jamais me surgira um imprevisto que eu não tivesse sido capaz de solucionar de forma atempada e adequada. Mas Raimundo nunca aceitara, nem compreendera, que eu levasse uma vida sem ambições. Leccionar bastara-me e ele entendia que eu fizera a pior opção. O ensino sobrevivia na cauda da sociedade.
Andas a perder o teu tempo”, dizia-me, sempre que me via com menor entusiasmo, como se tivesse a intenção de aumentar o peso que eu sentia na alma. “Com a prática da vida é que aprendemos. Atiram os miúdos aos milhares para as escolas, fecham-nos numa sala e esperam que aprendam alguma coisa? Não faz sentido. Depois, os jovens querem emprego, chegam às empresas e pouco mais sabem do que assinar o nome. E isto para quê? Para dar de comer aos milhares de professores que de outra forma não teriam com que se ocupar e sobreviver. Já pensaste no dinheiro que se gasta com toda essa gente que não sabe fazer mais nada? Para que serve um professor? Para orientar jovens estudantes? Mas quem orienta os jovens são os pais, familiares, amigos, vizinhos, conhecidos, colegas, artistas, gestores, mendigos, transeuntes, desportistas, cientistas! Os professores são uma lacuna no sistema, são os responsáveis pelas distorções e aberrações do mundo em que vivemos. Os primeiros e únicos responsáveis. Porque introduzem a artificialidade na aprendizagem, porque manietam, porque condicionam o crescimento”.
Sempre que o ensino vinha à baila, Raimundo falava mil vezes mais do que o normal. Parecia uma pessoa diferente, comunicativa, expansiva. E fazia-o sem receio de me ofender porque sabia que eu lhe dava espaço para expor as suas ideias, embora não concordasse com a maioria delas. Se eu mostrasse ressentimento, ele diria que a sua crítica era dirigida à classe docente em geral e não a mim em particular, que eu até desempenhava as minhas funções com dignidade. Por isso, não me dava ao trabalho de lhe responder. Ao fim de um tempo, já nem o ouvia.
Olha para Estela”, dizia ele. “Para que lhe serviram os estudos? Esteve sempre em casa. Ofereceram-lhe vários empregos, mas ela achou que não tinha jeito para as tarefas que lhe propunham. Foi uma vida desaproveitada. No fundo, nunca se percebeu o que ela queria, muito menos o que pretende hoje. Ainda está a tempo de fazer alguma coisa, mas não se resolve. É uma eterna indecisa. E depois olham-me como se a culpa pela sua situação fosse minha. Era o que faltava! Achas isto bem, Lis? Achas justo?”, insistia ele, acentuando as palavras, como se eu não estivesse a ouvi-lo, ou como se tivesse alguma coisa a ver com o que se passava entre ele e Estela.
Mas eu ouvia-o. Só não tinha paciência para alimentar o diálogo. Por isso, acabava por concordar com ele, dizendo que não, que não achava justo…




16


Raimundo passava meses sem me bater à porta, apesar de as nossas casas não distarem muito uma da outra. E quando o fazia nunca se percebia a razão da sua iniciativa. O tempo em que estivera emigrado naturalmente contribuíra para nos habituar a esse distanciamento. Quando nos víamos, era geralmente eu que o procurava. Ou então encontrávamo-nos casualmente na rua ou em algum outro lugar público. Mas também me parecia que ele evitava visitar-me para não correr o risco de dar de caras com Rute. Eu tinha a impressão de que não lhe agradava a minha proximidade com uma mulher tão bela e atraente. Era estranho que ele nunca fizesse referência a Rute, sabendo da amizade que me unia a ela. Podia fazer alguma pergunta por simples curiosidade: “Que tal é ela? Como a conheceste?”, ou qualquer coisa do género. Seria uma conversa normal entre pessoas que confiavam uma na outra, e nós confiávamos.
O seu silêncio sobre Rute era um dos motivos por que me parecia que ele não era capaz de suportar a beleza, sobretudo quando ela ultrapassava os limites do bom senso. E era mais do que certo Raimundo considerar que eu devia ter a mesma postura.
Não me restavam dúvidas de que ele não aprovava o meu relacionamento com Rute, nem que fosse pela diferença de idades que nos separava. Lá no mais íntimo dele, devia achar que alguém na minha situação não tinha o direito de conviver proximamente com uma pessoa tão deslumbrante.
O dia em que chamei a ambulância, contudo, foi um daqueles em que Raimundo, inusitadamente, me procurou em casa. Ouvi uns passos arrastados subindo as escadas do prédio e percebi logo que não se tratava de Rute. Aquela cadência de pés, quase resfolegando sobre os degraus, só podia ser de Raimundo.
Talvez tenha pressentido alguma coisa, talvez tenha adivinhado que eu não estava bem, talvez tenha receado que pudesse partir a qualquer instante. Mas nunca me pareceu que Raimundo pudesse ter pressentimentos. Na sua alma, só havia espaço para o dinheiro. Como podia ter adivinhado o que se passava comigo? Como podia sequer ter imaginado que eu não estava bem?
Apesar da amizade que nos une, não sei porque não tive a ideia de o contactar no momento em que me senti mal. Na ausência de Rute, podia ter-lhe pedido ajuda. Se não o fiz, provavelmente, foi porque nunca pensei que Raimundo tivesse disponibilidade para vir a minha casa numa terça-feira ao início da tarde. Na minha cabeça, ele estava sempre envolvido em grandes e complexos negócios, razão pela qual não me ocorreu que dispusesse de uma brecha de tempo para me socorrer. Também é possível que não me tivesse lembrado dele por guardar algum ressentimento pela forma brusca e deselegante como muitas vezes me tratava. É verdade que eu acabara por me habituar aos seus modos intempestivos, mas também não era menos verdade que havia ocasiões em que sentia mágoa pela sua forma de proceder.
Quando me apercebi dos seus pés arrastados nas escadas, pus-me a pensar nos motivos que podiam justificar a sua visita. Não encontrei nenhuns. E apressei-me a esticar o lençol, não fosse ele desconfiar das correrias de automóveis com que me andava a distrair. Considerá-las-ia uma patetice. Um sinal de desordem mental.
Pela forma como entrou e se sentou, concluí que aparecera só por aparecer. Foi a única vez que me visitou num dia de semana, em horas de expediente. Era estranho que naquele momento não se encontrasse embrenhado em negócios que lhe pudessem render avultados lucros. Apesar de já ter mais de sessenta anos de idade, Raimundo não desistia de trabalhar nos seus projectos e de acumular riqueza, ao ponto de eu me ter habituado a dizer-lhe, na brincadeira, que o haviam de enterrar num caixão de ouro.
A demora da ambulância deixara-me num tal estado de amolecimento que ao ver Raimundo não tive coragem de lhe dizer o que se passava comigo. Se a ambulância chegasse numa altura em que ele estivesse em minha casa eu podia sempre dizer-lhe que a tinha requisitado para me deslocar a uma consulta de rotina. De qualquer modo, não adiantaria informá-lo de que eu não estava bem de saúde. Se o fizesse, o mais certo era ele não ligar e parodiar com os meus exageros.
Passei por aqui para ver como estavas… – explicou Raimundo, sem que eu abrisse a boca.
Os nossos encontros, quando não se falava de ensino, eram sempre vazios e infrutíferos porque nenhum de nós precisava do outro para o que quer que fosse. Quem nos visse havia de ficar com a ideia de que era um sacrifício estarmos juntos. Como se, em nome de um qualquer credo, fôssemos obrigados a conviver, a rezar em silêncio, numa espécie de penitência descrente e depressiva.
Muitas vezes, nem nos apetecia estar juntos. Mas, por algum motivo, havia momentos em que, por maiores que fossem as diferenças que nos separavam, outra coisa não fazia sentido.
Não querendo nada um do outro, só pretendíamos estar sentados na companhia de alguém que para ele podia ser eu e para mim podia ser ele. Só pretendíamos estar algures, sem palavras, sem comentários, como nos desenhos humorísticos em que a imagem fala por si.
Sempre que nos encontrávamos, tornava-se evidente que eu era absolutamente inútil para Raimundo e ele igualmente para mim. A nossa amizade em nada contribuía para melhorar as vidas que levávamos.
Raimundo nunca se interessara pela docência, actividade à qual eu dedicara todo o meu percurso profissional. Para mim, ensinar era uma profissão singular, a mais nobre de todas as profissões, porque era através do ensino que o saber evoluía e se perpetuava. O ensino era a passagem de testemunho em vida, era a transmissão de conhecimentos, era o caminho para lá de nós mesmos.
Para Raimundo, contudo, o ensino não acrescentava cifrões ao dia-a-dia, não agitava as bolsas financeiras, não motivava grandes decisões nas empresas. Era uma completa perda de tempo.
Ele ainda chegara a sugerir que eu enveredasse por outras formas de ensinar, que pusesse de lado os programas oficiais, que criasse a minha própria maneira de transmitir conhecimentos, que levasse os alunos para as empresas a fim de que pudessem conhecer a realidade, e eu não discordava dele, só que também não podia alhear-me por completo das orientações da tutela. Na minha óptica, o ensino era uma questão de prudência. Dando ao outro o que sabíamos, devíamos perseguir o equilíbrio para evitar a indiferença, mas também as catástrofes emocionais.
O ensino absorvera-me durante toda a vida. Ao longo dos anos, eu acabara por adquirir a minha própria forma de encarar a realidade. Hoje, eu já não sabia viver fora das fronteiras ilimitadas do outro. Tudo acontecia no meu exterior. Eu não contava. E se, muitas vezes, falava de mim, como faço nestas páginas, se pensava em mim, era para melhor entender os que me rodeavam. Nunca me coloquei no centro dos meus próprios interesses.
O ensino era a maneira mais óbvia de aumentar o que nos rodeava. Fazendo-o, eu tinha mais possibilidades em todas as áreas, mesmo no que respeitava à educação de Rita. Mais: aumentando a realidade, eu podia perceber melhor esse acrescento que lhe transmitia. E percebendo melhor o acrescento, ficava em condições privilegiadas para entender o resto. O ensino tornava a realidade elástica.
Não era o ensino em si que me seduzia, mas o poder que através dele eu exercia sobre os outros, sobre a realidade, influenciando-a em maior ou menor grau.
Há muita gente que se dedica à docência por inércia, por necessitar de emprego, por encarar a escola como um lugar de afirmação. Eu fi-lo para ter mais campo de vida, mais espaço, mais terreno. O ensino é uma questão de conquista, de descoberta.
A minha vida com Rita fez que eu me dedicasse a ela de tal forma que, a dado passo, não via mais nada à minha frente. Só ela, ela e ela, Rita e Rita, de noite e de dia, a todos os instantes, o que comia, quando dormia, como vestia, o que sentia, se via isto e aquilo. Não admira que me tenha ressentido tanto da sua partida. Quando dei por mim, eu já fazia parte de Rita, já era a própria Rita, confundia-me com ela, quase assumia o seu próprio destino.
Raimundo diz que foi um exagero da minha parte, mas fi-lo com a consciência de que era o melhor que estava ao meu alcance.
Poder-se-á pensar que Rita terá saído de casa aos dezasseis anos por não suportar os meus níveis de entrega à causa da sua vida, por querer fazer o seu caminho sem me ter sempre ao lado, mas creio que esta é uma interpretação abusiva, porque a verdade é que sempre dei todo o espaço a Rita, toda a liberdade. Havia uma forte ligação entre nós, mas isso nunca a impediu de experimentar e viver o que quis e bem lhe apeteceu. Não faz parte da minha natureza servir de obstáculo a alguém, seja para o que for. Para não ser empecilho, muitas foram as vezes em que preferi sofrer em silêncio e a sós.
Não me admiro que Raimundo tenha dificuldade em compreender o relacionamento entre educador e educando porque nunca viveu nada de semelhante. Nesta matéria, as suas opiniões são absolutamente duvidosas. Há muitos anos que Raimundo e eu temos posições claras sobre as nossas maneiras de viver. Discutimos sobre isso uma ou outra vez. E fazemo-lo sempre de forma inequívoca. Seguimos rumos diametralmente opostos, mas nem assim deixámos de ser amigos. O que sempre nos uniu foi a diferença abissal que nos separava. Quando estávamos juntos, se um dizia alguma coisa, o outro depressa se preocupava em deixar claro que não lhe apetecia, que não estava nos seus dias. A não ser que a conversa incidisse no ensino.
Não havia nada de especial entre nós. Apenas uma amizade antiga, que teimava em sobreviver. Éramos íntimos, mas profundamente estranhos um ao outro.
Raimundo estava mais magro. Parecia definhar, perder corpo. Nas raríssimas vezes em que me visitava, porém, nunca se esquecia de ir ao frigorífico. Era como se viesse a minha casa para matar a fome.
No dia em que me visitou pouco depois de eu ter telefonado a pedir uma ambulância, pediu-me licença para se servir pouco depois de ter entrado, escandindo as sílabas com o ar de quem tem a cabeça completamente vazia, ou completamente ocupada com algo que me era de todo alheio.
Voltou da cozinha com dois iogurtes líquidos na mão, mas ante o meu gesto de recusa, acabou por ficar com ambos, um em cada mão, pondo-se a ingeri-los alternadamente numa tentativa de misturar os sabores.
Depois, sentou-se na minha frente e pôs-se a olhar para coisa nenhuma, como se eu não estivesse ali, como se nada acrescentasse aos seus pensamentos, como se não contasse, como se eu fosse Estela e ele já me tivesse dado o chocolate do costume.
Às vezes, fazia um ou outro comentário desconexo, reflectindo em voz alta qualquer coisa inofensiva como “pois é…”, “vê-se…”, “uhm…”, comentários aos quais eu não dava resposta, limitando-me, de forma pontual, a breves acenos de cabeça.
Concluídos os iogurtes, levantou-se, num claro sinal de que se preparava para sair. Despedimo-nos com um ”até um dia destes” e ele desapareceu, deixando-me ainda na dúvida sobre as razões que o teriam levado a procurar-me.
Raimundo regressou a casa, provavelmente amaldiçoando o tempo que perdera, o tempo em que nada ganhara, enquanto, por minha parte, eu amaldiçoava a demora da ambulância.
Fui espreitar à janela. A rua estava cinzenta e vazia, só com alguns carros estacionados à sombra do prédio onde eu residia.
Sentei-me na cama, por ter voltado a sentir um aperto no coração. Não sei bem se senti mesmo um aperto, ou se foi impressão minha. Talvez uma vertigem. Há alturas na vida em que não há certezas de nada. Eu estava num desses dias. Qualquer vibração me aturdia, confundia, obrigando-me a pensar intensamente antes de reagir ou de fazer um julgamento. Pelo sim, pelo não, deixei-me estar em sossego, de olhos fixos em nada, procurando não pensar para não ajuizar. Por mais que me esforçasse, contudo, não conseguia evitar a ideia de que aquele podia ser o momento da minha morte, da minha partida.
E se o fosse? Se aquela fosse a altura de eu me ir, não haveria vivalma do meu círculo de conhecimentos para tomar a iniciativa de responsabilizar os serviços de emergência médica pelo atraso em me socorrerem. Eu deixara partir Raimundo sem lhe falar do meu estado de saúde. Se eu partisse naquele instante, não me preocupava que alguém fosse, ou não, punido por desmazelo ou incúria. Só me entristecia não ter Auxiliadora ao pé de mim. Disse Auxiliadora… mas na verdade pretendia dizer Rute. Depois de tudo o que Rute me contara sobre o que fazia para tornar as pessoas felizes no momento em que morriam, eu não admitia a hipótese de sucumbir na sua ausência, não prescindia do direito à minha felicidade derradeira. Era fundamental eu resistir até que Rute me visitasse.
No momento exacto em que pensava nisso, senti um suor frio por todo o corpo (desta vez não tive dúvidas) senti-me gelar, como se as mãos de Auxiliadora – quero mesmo dizer Auxiliadora – me puxassem das profundezas da terra.
Não te deixes ir”, dizia para comigo, “não te deixes ir…, esta não é a tua hora”, e enquanto o afirmava, dirigia o meu pensamento para Rute e para as suas mãos com dedos delgados deslizando-me sobre o corpo. Vi-a com nitidez na minha frente. Senti o seu odor fresco invadir-me e receei já não ser capaz de distinguir se Rute estava na verdade junto de mim ou se eu apenas me deixara levar pela doce ilusão da sua presença. De uma forma ou de outra, eu só tinha de me entregar nas suas mãos e seguir as suas instruções.
De repente, cedi, perdi a noção das coisas, deixei escapar o que me rodeava. Desfaleci.
Imagino que devo ter estado uns tempos sem dar acordo de mim – durante quanto tempo? – com o corpo atravessado na cama porque, ao acordar, reparei que o cinzento do dia desaparecera e o sol entrava radioso pela minha janela. Surpreendentemente, sentia-me bastante melhor. Estava como se nada se tivesse passado.
Os ponteiros do relógio tinham-se deslocado cerca de trinta minutos, tempo suficiente para as nuvens se afastarem e deixarem o dia clarear, como se estivesse a amanhecer. Agora, eu já não sabia se devia continuar à espera da ambulância ou se devia esquecê-la.




17


Devem achar que falo demasiado de mim, mas esta é a forma que tenho de compensar o abandono a que me votaram. Além de que prometi que nada do que me diz respeito ficará por contar. E o certo é que, ao falar de mim, não é de mim que falo, mas de outros. Por não ter uma identidade definida, sinto que sou menos eu. E se sou menos eu, sou mais outros, sou mais os seus desencantos, as suas dores, as suas ilusões.
Esta forma de ser outro é de um enorme poder sexual. Porque nunca nos satisfazemos. Queremos sempre mais, queremos sempre ser mais outros. Não ter identidade é não ter órgão sexual exactamente definido, mas é também sentir que o órgão sexual acontece em todos os momentos e se expande por todo o corpo. Não conheço nada verdadeiramente importante para além do sexo. Um sexo que nada tem a ver com órgão genital.
A importância que dou ao sexo não significa que eu o tenha praticado de forma excessiva. Quando os outros o praticam, sei, com certeza, que o fazem por mim. É um prazer aumentado para todos. Um prazer sem lugar e ao qual procuro também retirar a componente temporal. Deste modo, nunca estou só. E faço que os outros também nunca o estejam.
Dou o que sou, dou o que me pertence. Sou carne viva. Sou mamilos, joelhos e rins. Sempre o fui. Como um selo impossível de descolar. É uma condição, a minha condição. Com mulheres e com homens, sou mamilos, joelhos e rins, essencialmente. É como se visse com os mamilos, como se compreendesse com os joelhos, como se conquistasse com os rins. Como se os mamilos, os joelhos e os rins fossem mais do que são. Como se representassem uma espécie de identidade superior pela qual me oriento. Sinto com os mamilos, penso com os joelhos, revelo-me com os rins. É esta a minha plenitude, a minha forma de não limitar os outros em mim.
Nada me provoca mais prazer do que me lamberem os mamilos, os joelhos e os rins. O segredo está em sugarem-me, lamberem-me. Os mamilos são o meu eixo, os joelhos são a minha vertigem, os rins são a minha rendição.
Por que não dizê-lo? Nada me eleva mais, nada me define tão correctamente. Os mamilos tornam-me melhor pessoa, os joelhos reforçam a minha crença, os rins fazem-me ver mais longe. Os mamilos, os joelhos e os rins são as minhas fontes de vida. Pode parecer desprovido de nexo dizê-lo, mas esta é a minha convicção mais arreigada.
Muitas vezes, fui para a cama com mulheres e com homens e só partilhei os mamilos, os joelhos e os rins. Não admitia que possuíssem outras partes de mim. Além de tudo, partilhar apenas os mamilos, os joelhos e os rins era uma forma de evitar confusões, perguntas, dúvidas maiores, hesitações, receios. E de ambos os lados o prazer era tamanho que eu não sentia necessidade de partilhar mais nada. Para quê? O que é um órgão genital? Um mero elemento reprodutor? Ora, como eu não queria reproduzir, nem reproduzir-me, explorava o resto do corpo, sobretudo os mamilos, os joelhos e os rins. Era como se eu fosse apenas essas três partes do corpo.
Fui para a cama com algumas pessoas que tinham o hábito de se meter entre as minhas pernas, fazendo movimentos lúbricos contra o meu sexo escondido, isto enquanto me chupavam os mamilos. Os seus gestos excitavam-me mais do que se me despissem por completo e me possuíssem. Depois, voltavam-me de costas para cima e deslizavam a língua sobre os meus rins e nádegas, fazendo-me endoidecer. Eu pulava, dizia coisas descabidas, ria-me, gritava, quase me extinguia em prazer.
Não interessava quem me lambia. Não interessava se era homem ou mulher. O importante era que houvesse uma língua! O que contava era apenas os meus rins e a língua de alguém. Não há nada melhor do que uma língua desacorrentada sobre o corpo.
Muita gente pode não apreciar este tipo de prática sexual, mas essa atitude só é explicável por uma visão deturpada, manietada, complexada, do desejo que há em nós.
A seguir aos rins, a língua voltava a subir pelas costas, até às omoplatas, enquanto a pessoa me voltava de barriga para cima, outra vez, descendo a toda a velocidade pelo meu ventre até aos joelhos, que lambia denodadamente, em círculos, fazendo-me ver galáxias para lá do tecto do meu quarto, ensandecendo-me hora após hora, ao ponto de eu pedir, por tudo, por favor, que não me fizesse mais aquilo, mais não, mais não!, era insuportável. Lamberem-me os joelhos em movimentos levados ao extremo da eficácia era um prazer torturante superior a todas as minhas capacidades de resistência.
Foi assim que vivi durante anos. Buscando prazer e mais prazer, independentemente de ideias preconcebidas ou de críticas que me pudessem dirigir. Ao longo do tempo, fui percebendo que tanto maior seria o meu prazer quanto menos eu ligasse à ideia que as pessoas tinham de mim. Quanto menos eu me importasse com a minha imagem, tanto maior seria o espaço de manobra que eu teria para explorar as mais diversas formas de gozo, nos mais variados sítios e momentos.
O ensino foi, para mim, no início, um tormento. Por mais de uma vez, pensei mudar de actividade. Todavia, acabei por encontrar nele um gozo imenso, o maior gozo possível. Talvez tenha sido esta a minha única arte: transformar tudo em gozo, em prazer! E do prazer arrancar cada vez mais prazer. Encontrar prazer nos momentos mais imprevisíveis, nos desfechos mais impensáveis, nas situações mais improváveis. Sempre o prazer, o prazer dos outros. Porque são eles, os outros, que dão sentido ao que experimentamos e vivemos.
O que há de interessante na minha existência são os prazeres desconhecidos que vou desvendando. Só posso alcançar a verdadeira criatividade no prazer e através do prazer. Tudo isto, porém, com sofrimento, um sofrimento que se deve aos outros. São os outros que nos dão prazer, mas também são os outros que nos provocam dor. São os outros que, em nós, misturam o prazer e a dor.
Sofri muito com o desaparecimento de Rita. Mas o que sofri conduziu-me a outras formas de ver e de sentir que me proporcionaram prazeres novos que eu não teria alcançado se Rita não tivesse saído de casa. Foram as situações novas que me permitiram prazeres e sofrimentos nunca antes vividos.
Raimundo não percebe a importância do ensino porque não imagina o prazer que o outro nos concede. Se Raimundo não tem prazer com Estela, não o tem com mais ninguém. Não me admiraria que fosse mesmo incapaz de se masturbar só para não perder esses breves minutos com algo que não lhe proporcione lucro imediato.
Para Raimundo, só o dinheiro satisfaz. Ou nada pode dar tanto prazer como o dinheiro. Todos os prazeres são menores ao pé do prazer do dinheiro.
Mas o ensino provoca um prazer superior ao de mil orgasmos e ao de mil milhões de moedas. Porque no ensino se pode ter esses mil orgasmos, mil orgasmos que são os dos outros, mas dos quais podemos perfeitamente apropriar-nos. No fundo, é tão simples: na escola, eu ia ao ponto de sentir o orgasmo dos meus alunos. Eram orgasmos jovens e cheios de ilusão, repletos de esperança, por isso mais saborosos e vibrantes.
Se não fosse o ensino, eu nunca teria percebido a importância que os mamilos, os joelhos e os rins podem ter na satisfação sexual.
Foi através dos meus alunos que perdi preconceitos e, em consequência disso, criei condições para desfrutar os prazeres das partes do corpo às quais habitualmente pouco se liga. Para me apropriar dos orgasmos de alguém não precisava de ter sexo com eles. Era tudo uma questão de sensibilidade, de olhares, de cumplicidades. Por exemplo, eu sabia quando os meus alunos iam aos lavabos e sabia, muitas vezes, o que lá se dispunham a fazer. Nessas alturas, sentia que os seus actos passavam pelo meu corpo, músculos, pele e células. Sentia que me tomavam, que me possuíam. E sentia que o inverso também sucedia. Era um processo incontornável.
Quando atingi a adultez, passei a resolver tudo num ápice e a desvalorizar o que é secundário, convencendo-me de ter atingido o âmago das coisas, o que me fez esquecer a superfície dos gestos. Mas foi na superfície que mais facilmente partilhei. A profundidade foi, muitas vezes, um engano. Porque se não fui capaz de atingir a minha intimidade completa, como havia de pretender alcançar a dos outros? Tive muitas desilusões, muitos equívocos, muitos fracassos.
O desentendimento começou quando procurei ir além da superfície, além do ligeiro, do suave. Procurando ir mais fundo, perdi-me. E só os outros me restaram. Depois, foi difícil reencontrar-me, reencontrar o caminho de volta à minha natureza. Penso, de resto, que nunca o consegui.
Na adolescência, tinha um amigo que por vezes dormia em minha casa. Passávamos a noite a conversar, estirados sobre o tapete da sala de estar, e quando já não sabíamos de que falar, entretínhamo-nos a brincar com os mamilos um do outro. Ele beliscava os meus e eu beliscava os dele. Apertávamo-los, apalpávamo-los, contornávamo-los, acariciávamo-los, espremíamo-los, puxávamo-los, por entre gemidos e respirações intensas. Quando dávamos por nós, era quase manhã por entre as persianas das janelas. Suspirávamos fundo com a descoberta daquele prazer novo, mas não atinávamos em ir mais longe, não nos ocorria a possibilidade de avançarmos para outras partes do corpo. Se nos sentíamos livres para conquistar os mamilos, porque não sentíamos o mesmo relativamente a outras partes do corpo? Tal só podia significar que os mamilos eram quanto nos bastava para sermos felizes naquele momento, naquela noite.
A vida acabou por nos separar. Estive muitos anos sem ver o meu amigo dos mamilos e tive saudades dele com frequência. Eu sentia que tínhamos ficado unidos. E pressentia que ele também pensava em mim e nos momentos nocturnos em que nos havíamos descoberto.
Quando nos reencontrámos, já depois dos quarenta, cada um com a sua vida organizada, falámos de muita coisa, menos das nossas saborosas recordações. Ele ainda me levou a dar um passeio por uma zona descampada à beira-mar, pensando, talvez, que podíamos voltar a ter oportunidade de conviver intimamente, mas procedi sempre como se de nada me lembrasse, como se nada se passasse dentro de mim, como se nada me apetecesse naquele instante a não ser estar com ele, descontraidamente, tranquilamente, sem memórias antigas. E creio que o fiz com tamanha convicção que, na verdade, não me dei conta de nada enquanto estivemos juntos. Só meses depois me apercebi de que ele me terá levado para o tal sítio ermo na esperança de reviver a nossa doce experiência de crianças. Terá sonhado que eu lhe deixaria meter a mão por baixo da roupa a fim de que ele me acariciasse os seios e que eu lhe pagasse na mesma moeda.
Quando me apercebi das suas intenções ao levar-me a um lugar isolado ainda pus a hipótese, uns dias depois, de voltar atrás, de voltar a procurá-lo, e propor que fôssemos passear outra vez por onde ninguém nos pusesse a vista em cima, mas acabei por não concretizar a ideia. Não tive a certeza de que esse fosse realmente o meu desejo. Uma coisa é ser adolescente, outra é ter mais de quarenta anos. O que se faz numa altura não se faz noutra. Com o decorrer do tempo, o próprio desejo altera o seu sentido, o seu significado, a sua orientação. E mesmo que eu quisesse apertar os mamilos do meu amigo tantos anos depois, não o faria nem que fosse para não cair no ridículo.
Na maturidade, ou se vai mais longe, ou se não vai. Eu não tive coragem de ceder mais prazeres ao amigo que me havia ajudado a descobrir os mamilos.
A descoberta dos rins só veio a acontecer com outras pessoas. Sobretudo com mulheres, por estranho que possa parecer. Aos homens, eu preferia dar os mamilos, talvez em virtude da agradável memória que guardava da adolescência.
A última descoberta foram os joelhos. Já tinha mais de cinquenta anos quando fui para a cama com alguém que decidiu lamber-me dos pés à cabeça, concentrando nos meus joelhos as suas maiores e melhores atenções. Foram momentos inesquecíveis e que a partir daí procurei reviver o maior número possível de vezes. Nos joelhos, no prazer de me lamberem os joelhos, encontrei um gozo espiritual fora do comum, quase um êxtase, o que me levava a interrogar se seria com o objectivo de matar o prazer incomparável de entregar os joelhos a uma língua devoradora que muitos crentes se ajoelhavam perante o seu Deus numa postura em tudo oposta àquela que eu considerava genuína e libertadora. Os crentes sacrificavam os joelhos em busca da santificação, enquanto eu os cedia aos outros para que os explorassem e conquistassem.




18


Se Rute aparecesse agora, talvez se oferecesse para fazer café. Ela é a única a bebê-lo. Eu apenas saboreio os restos da chávena que habitualmente fica esquecida sobre a mesa depois de ela se ir embora. Sei que devo prescindir do café, mas não resisto e bebo as últimas gotas da chávena arrefecida que ela aí deixou há dias. Para mim, são gotas tão escaldantes como carícias.
Se Rute viesse agora a minha casa, eu já não me preocuparia com o meu estado de saúde, nem me importaria com a demora da ambulância. Não por ela ser médica, mas por ela ser Rute.
Bem vistas as coisas, Rute é o meu orgasmo, o único orgasmo que ainda posso ter. Já lá vai o tempo dos orgasmos secretos que os meus alunos me proporcionavam. Rute é um orgasmo só de se olhar para ela. É uma forma completa de prazer, é um todo harmonioso que me enche de paz e rebeldia. Os orgasmos mentais que me provoca são orgasmos de águas calmas e translúcidas, águas bravas e misteriosas.
Quando Rute chega, senta-se na minha cama e desata a falar sobre os seus doentes, os casos mais complexos, situações de morte e de vida, dúvidas da ciência, congressos da especialidade. Depois, levanta-se, vai fazer café e, quando volta, parece outra pessoa: põe-se a falar de sexo, sexo, sexo. É como se o café lhe desse a volta ao miolo. Por isso me delicio a saborear as gotas que costuma deixar no fundo da sua chávena. Talvez os restos do seu café consigam igualmente incendiar-me.
Quando entramos no sexo, nunca mais de lá saímos. Mesmo se algum dos seus doentes volta a ser tema de conversa, o que fazemos é falar de sexo e das propostas que alguns descaradamente lhe apresentam.
Só quero que morram felizes… Não levo a mal o que me pedem”, diz.
Em certo sentido, falar de sexo, para ela, é uma forma de o concretizar, é quase tão bom como fazê-lo. Além do mais, é uma oportunidade para obter dados sobre uma situação que ela nunca chegará a experimentar.
Falar de sexo deixa Rute de cabeça perdida. Ela ri muito e, por vezes, chora até às lágrimas, com coisas simples que lhe conto, experiências banais, momentos suaves.
Adoro puxar-lhe pela língua. E faço-o na tentativa de reviver muitos dos bons momentos sexuais que vivi ao longo dos anos. Rute ri abertamente quando se toca em questões íntimas. As suas gargalhadas, sonoras e francas, são expressões de puro prazer. Quando a vejo rir até mais não poder, conjecturo sobre quantos homens não terão vivido momentos semelhantes junto dela e sobre quantos, ao vê-la rir tão aberta e despreocupadamente, não terão caído na tentação de imaginar que a penetravam, desfrutando do prazer dos seus lábios, dos seus músculos, dos seus movimentos lúbricos, do seu calor.
Ninguém podia impedi-los de tal liberdade. Nem ela mesma. Desde que estivesse com alguém, dispondo-se a conversar sobre os mais variados temas, ficava completamente à mercê da imaginação alheia. A beleza de Rute era tal que ninguém merecia ser repreendido ou condenado por se dar ao direito de ter com ela momentos imaginários de luxúria e aventura carnal. Com Rute, o sexo era especulativo, mas nem por isso deixava de proporcionar um prazer extraordinário. Ela própria me revelou que muitos dos seus amigos lho confidenciaram. E eu acredito piamente no que me diz.
Apesar da idade que tenho, os prazeres do sexo não me são indiferentes. Bem pelo contrário. Hoje, o sexo tem bastante mais importância para mim do que em outros tempos. E tem-no porque compreendo melhor o papel que desempenhou, e desempenha, na minha vida.
Na juventude, deixava-me guiar pelos impulsos. Hoje, deixo-me guiar pela sabedoria. São dois mundos distintos. Quando se obedece a um impulso não se sente, não se aprende, não se saboreia. Por outro lado, quando se pratica um acto com a noção do seu alcance e consequências, ganha-se inteligência, conquista-se saber. O sexo é a minha ciência, a compreensão das coisas que me dizem respeito e com as quais me relaciono, de forma directa ou indirecta.
Quando Rute me fala dos homens que conheceu e do sexo imaginário que eles confessam praticar com ela, é como se eu me sinta fazer parte de uma orgia, com pernas e braços e bocas e cabelos e pescoços e costas e seios enovelados num só beijo, o beijo que me apetece trocar com Rute na hora do último adeus.
O sexo imaginário que aprendi com ela acabou por ser uma experiência fulminante. Porque, sendo imaginário, permite ultrapassar eventuais inibições. Só na imaginação o sexo não tem limites. É superior a tudo o que alguma vez se possa sentir. Por isso, defendo que o sexo especulativo está acima de tudo e de todos. Porque nos permite atingir as mais elevadas formas de conhecimento.
Muitas vezes, deliciada com o que os homens lhe contavam, Rute dizia não acreditar em algumas coisas que ouvia, mas dizia-o apenas para que eles reforçassem as suas histórias, para que as enfeitassem melhor, para que as repetissem até à exaustão, o que eles faziam com inenarrável prazer, pois repetindo o que tinham vivido imaginariamente era como se vivessem de novo a experiência.
Rute vibrava nesses momentos, entregando-se à conversa na tentativa de a aprofundar o mais possível, como se desejasse uma penetração real e plena. Pedia pormenores, fazia perguntas, esclarecia dúvidas, sempre com o deleite estampado no rosto, sempre inteira e livremente luminosa, dando a ideia de saborear um orgasmo feito de palavras, ecos, risos, murmúrios.
O prazer que Rute e os amigos sentiam ao falarem de sexo era um prazer mútuo, tacitamente partilhado, intencionalmente vivido.
Fazendo sexo imaginário, Rute e os amigos tinham ainda uma outra vantagem: podiam desfrutar de quantos orgasmos lhes apetecessem, sem correrem o risco de se esgotarem fisicamente. Para os homens, havia a vantagem suplementar de não terem de manter a erecção durante mais tempo do que eram capazes ou de não terem de passar pelo embaraço de uma ejaculação precipitada.
A partir de certa altura, a minha vida tornou-se tão desprovida de interesse, que só as conversas com Rute, sobretudo as sexuais, me animavam. Pode até ter sido por isso que, nos últimos anos, nunca cheguei a considerar seriamente a hipótese de me suicidar. Se não tivesse conhecido Rute, creio que a minha vida teria sido mais curta.
O meu estado de debilidade física, hoje, é tão adiantado que nem consigo levantar as duas pernas ao mesmo tempo! E até já me custa simular com os dedos corridas de automóveis por entre as dobras da roupa da cama. Por isso, não me podem condenar por gostar tanto das conversas com Rute.
Há uns tempos, pus a hipótese de ela conversar tão frequente e prolongadamente comigo apenas com a intenção de dar o seu contributo para que eu tivesse uma morte perfeita. Porque nada melhor do que o sexo para nos criar a ilusão de que somos uma ilha rodeada por um mar de rosas.
Rute adivinha-o e procura envolver-me desse odor mágico sempre que vem a minha casa, para que eu possa levar para a cova alguma coisa de valioso, inesquecível. Creio que também o faz para evitar que eu sinta ciúmes dos homens de que me fala. Ao colocar-me no mesmo patamar de outros amigos seus acaba por me lisonjear. Porque já não tenho idade para sonhar com Rute, embora o faça todos os dias, em todos os momentos, sem restrições nem remorsos. E a verdade é que não me ressinto das outras amizades de Rute. Provavelmente pela forma como ela me trata, como me fala, como me provoca.
Os homens que convivem com Rute acabam, inevitavelmente, por se cansar, saturar, desiludir, ao perceberem que ela não vai além de conversas sobre sexo. Por melhores que estas sejam, por mais prazer que proporcionem, torna-se difícil para eles viver toda uma vida sem sexo verdadeiro e palpável. Isto, porém, está longe de acontecer comigo. Quanto mais platónica é a minha relação com Rute mais intensa é a minha realização física e mental.
Dificilmente algum homem perceberia a forma que Rute encontrou de atingir prazer. Era demasiado etérea, demasiado nebulosa, demasiado esquiva. Rute optou pela solidão do sexo ilimitado. Na sua opinião, alguém que não fosse capaz de se unir a ela espiritualmente através de um sexo mentalmente construído também não seria capaz de outras coisas.
Quando Rute tinha cerca de trinta anos, um dos seus melhores amigos chegou a dizer-lhe, depois de terem estado horas na cama a conversar, sem que nenhum deles tivesse tido oportunidade de tocar no outro:
Não aguento, Rute, por favor, despe-te!, vamos fazer amor. Isto é uma loucura…”, mas ela não se comoveu e defendeu-se, com frieza:
Se não tenho necessidade de praticar sexo, porque razão hás-de tê-la?” O amigo deu-se ao trabalho de explicar que os homens eram diferentes, que não se controlavam com a mesma facilidade que as mulheres e pediu que ao menos Rute tentasse compreender isso, sublinhando que, para ela, nem seria um sacrifício, pois havia de adorar a experiência.
Se gostas de conversar sobre sexo”, insistia o homem, “com certeza que gostarás de o praticar. Gostarás ainda mais, tenho a certeza. O sexo é a melhor coisa do mundo!”
Mas Rute replicou que ele dizia isso porque estava desesperado e não conseguia controlar os seus instintos.
Os humanos são diferentes dos animais”, defendeu ela. “Temos o dever de superar as nossas tendências primárias, para que, um dia, sejamos capazes de viver o sexo a um nível superior. Começo a desconfiar de que o sexo é o grande problema da humanidade. Já imaginaste como o nosso dia a dia seria completamente outro se as pessoas aceitassem fazer sexo apenas imaginariamente? Não assistiríamos a violações, nem agressões, nem desentendimentos.”
O amigo contrapôs que, se fossem proibidas de fazer sexo, as pessoas tornar-se-iam mais violentas e o número de violações subiria em flecha porque o nível de frustração de cada um seria enorme.
Para Rute, porém, não se tratava de proibir o que quer que fosse. Fazer sexo imaginariamente seria uma opção livre de todos.
Como resposta, ouviu que a sua ideia era um perfeito delírio!
Os homens não têm a mínima capacidade de controlar o instinto” reagiu ela, levando o amigo a replicar que o controlo do instinto era uma tolice. Por que se haveria de fazê-lo se os instintos eram bons e saudáveis? Para quê reprimir ainda mais a nossa vida, que era já tão castigada? Para quê mais opressão?
Rute disse que ele interpretava tudo no sentido negativo. Para ela, o sexo concreto rebaixava-nos e amarfanhava-nos, ao passo que o sexo imaginário nos elevava e distinguia.
Por não concordar com os homens que tentavam conquistá-la e seduzi-la, sobretudo por não se identificar com a linearidade dos seus raciocínios, Rute preferia ficar reduzida ao espaço que a alma ocupava no seu corpo. Eles afastavam-se e ela respirava fundo. Com mais de cinquenta anos, não tinha mudado uma vírgula na sua forma de encarar a relação afectiva com os outros.
Quando se sentia demasiado só, ou quando simplesmente lhe apetecia, ou quando achava que eu tinha saudades dela, vinha bater-me à porta e contava-me a sua última experiência, o seu último fracasso.
Cada vez mais me convenço de que fazer sexo é uma completa inutilidade”, dizia ela, com o olhar brilhante na minha direcção.
Para ter a certeza de que não me faltava à verdade e que estava segura da sua posição, cheguei a sugerir-lhe por mais do que uma vez que abrisse uma excepção e tentasse fazer sexo de facto, nem que fosse para dispor de um termo de comparação com o sexo falado que tanto defendia.
Não me diga que vai chegar aos sessenta sem saber o que é o sexo…”, comentava eu, tentando chamá-la à razão. Mas Rute achava que eu estava a provocá-la e desatava a rir com a minha insinuação, como se eu apenas procurasse convencê-la a fazer amor comigo, proporcionando-lhe a oportunidade de praticar sexo concreto com alguém que não correspondia exactamente aos padrões sexuais instituídos.
Risada atrás de risada, acabávamos por nos perder nos labirintos coloridos das ideias que trocávamos, engalfinhávamo-nos em argumentos, discutíamos entre frases ternas e carícias amigas e nunca mais recuperávamos o cerne do diálogo. Mas não nos aborrecíamos por isso. O que mais prezávamos era o prazer que a nossa liberdade nos permitia. Sabíamos que não nos restava muito mais tempo de convívio, mas sabíamos que todos os momentos que nos esperavam seriam vividos com entrega total.




19


Vou escrevendo estas páginas aos saltos, aos soluços, como quem regista num livro de ponto a matéria ensinada nas aulas. Na verdade, não escrevo um livro, de forma organizada e metódica. Tomo notas, conforme o apetite de cada momento, conforme a disponibilidade de cada hora e de cada dia. Por isso, a demora da ambulância acaba por me dar jeito.
Quando me senti mal há pouco mais de uma hora atrás, quando me apercebi de um esticão no peito que parecia levar-me o coração para a outra margem, estava precisamente a terminar uma frase mais trabalhosa. Mas não acredito que esse tenha sido o motivo da minha indisposição. As frases não atacam o coração de forma tão drástica e cortante. Moem, por vezes, mas depois libertam.
Não entro em angústias com a minha tarefa de escrever sobre os anos que vivi. Um pouco hoje, um tanto amanhã, vou marcando o tempo por aí fora. Não tenho momentos brancos. Quando me surgem dúvidas, não hesito, não desespero. Simplesmente avanço. Sempre foi esta a minha maneira de proceder. Avanço como um barco para o alto mar, independentemente das condições do tempo. O que importa é chegar a algum lado, alcançar a dimensão que se procura. Por vezes, chego bem, chego forte, com o barco inteiro; outras vezes, aporto aos bocados, com a embarcação desconjuntada. O importante, contudo, é chegar. Chegar sempre.
Quando escrevo, não ouço, não vejo, não cheiro, não nada. Não preciso de música, não preciso de ambiente, não preciso de natureza. Deixo-me tomar pelo que conto e o que conto torna-se tudo em mim. O que me rodeia torna-se outro mundo, a cujos critérios o meu comportamento passa a obedecer.
Se estou envolvido com Rute, se escrevo sobre ela e depois tenho de passar a escrever sobre Raimundo, ressinto-me e sinto que a mão não se adapta facilmente à mudança. Por vezes, tenho de parar, abrir um saco de café, meter o nariz lá dentro e cheirar… (é o que faço quando Rute não me deixa fundos de chávena), respirar… para desanuviar e preparar a minha entrada em outro tempo, outra existência.
Se tenho de passar a escrever sobre mim, ainda pior. Ou ainda mais difícil. Porque a minha parte neste livro exige tudo, exige o que nunca pensei contar, exige a maior profundidade sobre o que sou, por eu ser como sou.
Ninguém me perdoará se este livro tiver fragilidades no que se me refere. Depois de tantos anos a ensinar, aprender, explorar linguagens desconhecidas, desvendar campos de reflexão, ninguém me perdoará se eu vacilar algures. Nem eu me perdoaria.
Sei muito bem o que me espera depois deste livro, ou melhor, deste registo. A solidão é o meu destino. Sempre o foi, sempre o será, antes e depois deste monte de páginas. Se dei, e dou, tanta importância ao sexo foi precisamente para combater a solidão que me devorava. Todas as vezes que estive intimamente com alguém senti que o meu corpo se metamorfoseava, se evaporava, se elevava a uma dimensão sem medida. Era como deixar de respirar, como deixar de pensar.
O sexo abala-nos, projecta-nos, esvazia-nos e, ao fazê-lo, leva-nos a renascer, fortalecendo-nos na morte. É esta a razão porque uma das primeiras funções da velhice é acabar com o sexo, pelo menos com o sexo físico, para que a morte possa efectuar em nós o seu trabalho de construção progressiva. O que devemos fazer, se não quisermos deixar-nos vencer, é projectar no outro a nossa vida, o nosso sexo, para que ele possa continuar por nós a corrente de prazer. Só isso, afinal, a corrente de prazer, prazer em corrida, prazer em estafeta.
Foi por saber que o sexo é essencial na luta contra a solidão que Rute, apesar de não o praticar, não se inibe de falar nele a todo o momento. O sexo é de tal forma poderoso que até o seu exercício em palavras é suficiente para nos aliviar, para nos realizar. É que, ao falarmos no sexo, estamos pelo menos a antecipá-lo. E não há nada melhor do que antecipar um prazer. No caso de Rute, ela antecipa-o em permanência. E antecipa-o com tal convicção que acaba por nunca ter necessidade de o realizar.
Rute é uma mulher bela que se acha feia e se dedica completamente aos outros, enquanto Raimundo é apenas um homem rico que só pensa em dinheiro. Ambos têm sexos definidos (o que facilita a análise, a descrição e a compreensão das suas personalidades), sabem quem são, de uma forma ou de outra, gostam mais ou menos de si mesmos, o que me ajuda a penetrar no íntimo de cada um e descrevê-los de uma maneira honesta. Nestas páginas, compete-me contar tudo o que sei sobre Rute e Raimundo e sobre o modo como eles acabaram por ter as vidas que tiveram.
Sobre mim, todavia, tenho o dever de ir mais longe. Tenho de me conhecer na íntegra e, como tal, tenho de me revelar na íntegra. Eu sou o meu grande desafio nesta narrativa. Rute e Raimundo são o meu outro desafio, o meu desafio dos outros. E a minha capacidade de os contar dependerá sobretudo da minha capacidade de os conhecer. Posso conhecê-los mais ou conhecê-los menos. Ninguém me avaliará pelo volume de conhecimento que eu tiver deles, mas avaliar-me-ão pelo volume de conhecimento que eu tiver de mim.
Neste livro, a exposição da minha vida sexual é a forma que encontro para conhecer o que me diz respeito e, ao mesmo tempo, para nada deixar por contar. Não posso ter preconceitos, não posso vergar a convenções, não posso hesitar entre os vários caminhos. O meu é o da liberdade. Sei que haverá quem considere que eu não devia abordar este ou aquele assunto por esta ou aquela perspectiva, em virtude de haver regras a cumprir, códigos a respeitar, mas a minha tarefa é contar, simplesmente contar. Sei que me olharão de lado, que duvidarão das minhas intenções, que tentarão desclassificar o que escrevo. Contudo, não me deixarei intimidar, não alterarei uma vírgula ao projecto que abracei.
Quem se habitua a um rosto como o meu habitua-se a tudo. Durante anos, tive de sair à rua com o rosto que tenho, com a expressão que me caracteriza, com a pele que me envolve. Muitas vezes, andei de óculos escuros, para fugir à realidade. Não era um problema de perfeição ou de beleza porque esta até pode ser bastante nociva, como o caso de Rute exemplifica à saciedade. O meu problema era de convicção. Sempre fui hesitante. E todas as vezes que segui em frente, todas as vezes que procurei transmitir segurança, fi-lo precisamente para combater a hesitação que me esboroava.
Eu devia descrever aqui em pormenor a minha aparência e os contornos da minha face, devia descrever muita coisa, para agradar aos teóricos, aos encartados, aos puristas.
Para além de dizer, como já disse, que o meu rosto é oval, uma sombra oval, e que as minhas orelhas sobressaem por entre farripas compridas e longas de cabelo, devia dizer ainda se o nariz é adunco ou achatado, se os lábios são grossos ou finos, se o queixo é saliente ou retraído, se as pernas são longas ou curtas. Mas não me apetece ir por aí, não me apetece ir por onde vai a maioria, não me apetece seguir a cartilha.
O meu rosto é o meu rosto. Ninguém tem nada a ver com as suas linhas, os seus contornos, os seus momentos claros e escuros. O rosto de alguém reflecte bastante a sua maneira de ser e, como tal, eu devia esmiuçar o meu até ao limite, para que me conhecessem o melhor possível. Contudo, se essa fosse a minha escolha, os leitores continuariam a não ter uma ideia exacta de mim, porque a minha descrição não alcançaria as zonas onde se formam as linhas da dúvida, da mágoa, da expectativa, do sonho, do desencanto, da revolta. Um rosto é um poço sem fundo e, como tal, não vale a pena tentar dá-lo a conhecer no papel.
Estive há pouco a escrever sobre Rute, antes já estivera a escrever sobre mim, por isso, agora, devo dispensar alguma atenção a Raimundo. Pretendo escrever sobre Raimundo, mas Raimundo está tão distante, está tão frio, está tão desinteressante, que nem sei o que pensar dele. Há dias que não me dá notícias, mas também há dias que não o contacto, há semanas que não folheio as páginas que sobre ele escrevi. É como se tivesse deixado de fazer parte deste livro, como se tivesse emigrado de novo.
Não me apetece nada voltar para junto de Raimundo e contar o que tenho para contar. O dinheiro, que ele tanto ama – e, como tal, tanto despreza – irrita-me a um nível tão profundo que só o facto de eu abordar o tema me provoca náuseas.
Estranha não deixa de ser, também, esta minha aversão ao dinheiro. Se calhar, há qualquer coisa que ainda não descortinei por trás da minha postura. Talvez seja o medo de que um dia o dinheiro me venha a faltar. Ou talvez seja a lembrança dos tempos de infância em que o dinheiro faltou à minha família.
Minha mãe chorava por não ter posses para me vestir com roupas que ela considerava importantes para a minha afirmação social e ainda hoje sinto essa humilhação, que era a humilhação da minha mãe, mas que por isso mesmo é uma humilhação ainda mais minha do que se fosse realmente minha. Para um filho, não há pior humilhação do que a humilhação de um pai e para um pai não há pior humilhação do que a humilhação de um filho. O dinheiro é a causa das maiores humilhações. E é amado ou odiado conforme a dimensão das humilhações sofridas ou temidas.
Rita não era minha filha, mas procurei sempre evitar que ela passasse por situações vexatórias, como ir para a escola menos bem vestida do que as outras crianças. No fundo, creio que todos os pais, todos os adultos procedem e sentem desta maneira. Ninguém gosta de ver uma criança em posição de inferioridade perante as restantes. Sobretudo porque uma criança não tem hipóteses de defesa.
Muitas vezes, Rita fazia-me perguntas sobre a nossa situação financeira, na tentativa de identificar o patamar social em que vivíamos, e eu não sabia que resposta lhe dar. Se dissesse que pertencíamos à classe dos ricos ou dos pobres, estaria a faltar à verdade. Procurava transmitir-lhe a ideia de que a riqueza não era tão importante como isso, que era um exagero desnecessário, mas também não queria que ela pensasse que corríamos riscos de, um dia, cair numa situação de penúria, por isso acabava por a tranquilizar, dizendo que nos integrávamos na classe dos remediados. De qualquer maneira, a sua pergunta incomodava-me, porque me obrigava a ordenar ideias sobre um assunto que sinceramente me desagradava. Além de que falar-lhe em “remediados” não deixava de ser uma forma de nos tabelar.
Não só não gosto de falar de dinheiro, como não gosto de pensar nele. Por isso, falar de Raimundo, ou pensar nele, me repugna. Estar com ele, todavia, não me provoca a mesma reacção. Quando o vejo em pessoa não o associo ao dinheiro. Vejo-o como um simples homem, como alguém debilitado, o que não deixa de ser paradoxal, tendo em conta a sua monumental capacidade financeira. Mas Raimundo, na minha óptica, é sobretudo uma pessoa fraca. Todo o seu porte aponta nesse sentido. Fisicamente, ele não tem nada o aspecto de endinheirado. Como é forreta, como tudo faz para não gastar o que possui, acaba por ter uma aparência envelhecida e decadente. Quem não o conhecesse poderia pensar que é um simples mendigo. Curiosamente, porém, quando estamos juntos, é esta imagem de despojamento que aprecio nele. Encará-lo, abatido e triste, torna-me mais igual a ele. Se Raimundo não fosse tão obcecado com dinheiro seria provavelmente uma pessoa adorável.
Digo tudo isto assim, digo que Raimundo me repugna, mas sei que, mais minuto menos minuto, depois de estar a escrever sobre ele, acabarei por gostar da experiência, acabarei por gostar de me debruçar sobre o seu egoísmo, a sua avareza, a sua austeridade, porque o verei na minha frente, porque o ouvirei arrastando os pés sobre o soalho, porque me aperceberei do odor da sua roupa. Escreverei sobre Raimundo, nem que seja para sublimar as humilhações da minha mãe que se tornaram minhas. Há em Raimundo algo que me toca de certa maneira, porventura de raspão, algo relacionado comigo, que me reflecte, que espelha qualquer coisa da minha alma mais absurda e primária. Apesar de não o parecer, Raimundo é caloroso e sentimental, mas o desafio que mantém consigo mesmo é precisamente o de não expor a sua intimidade. É isto que alimenta a nossa luta, a que travo com ele. Porque Raimundo pretende esconder a sua sensibilidade e eu pretendo provar que ele é bastante mais do que aquilo que mostra. Para isso, terei que conseguir expô-lo. Com certeza não tanto como faço comigo, mas sem dúvida expô-lo mais do que ele alguma vez admitiria.




20


Enquanto foi emigrante, Raimundo viu-se na obrigação de desmontar a engrenagem de arames, cordas e fios que lhe haviam instalado na mente e socorrer-se de outras engrenagens que foi encontrando, aos poucos, com a paciência do desespero. Novas engrenagens com que se deparava no dia a dia e que, de uma forma ou de outra, ia carregando entre os ombros.
No estrangeiro, a linguagem que Raimundo falava todos os dias era um puzzle inacabado, mas os sons também o eram, os reflexos do movimento, as sugestões que lhe chegavam através das frinchas das portas, os passos na neve, as distâncias incalculáveis, os carros que passavam constantemente, as buzinas, as montras, os passeios vazios, as janelas fechadas sobre a brancura, a compreensão do que havia e não havia, o alcance do que via – entrevia – e não via.
Os cães não ladravam no estrangeiro. Por isso, era estrangeiro. Os cães estavam lá, mas não se viam, nem se ouviam. Eram cães mudos, cães sem existência própria, cães que olhavam os acontecimentos sem esboçar reacção. Os cães estrangeiros estavam de guarda, sempre de guarda, de olho em qualquer coisa, prontos a enfiar o dente.
O céu não tinha cores ao pôr-do-sol. O firmamento estrangeiro era de cinza, permanentemente de cinza, e a noite chegava sem que se desse pelo cair do sol. Passava-se do cinza para o negro, de repente, sem se esperar, sem se notar.
Depois, a noite parecia não acabar. Era tão longa e tão funda que Raimundo não conseguia estar muito tempo na cama, com receio de não voltar à vida. Levantava-se e saía, sem rumo, arrastando os pés, só para se sentir vivo, para se sentir mexer. Procurava algum café aberto na zona onde vivia, pela madrugada fora, entrava, sentava-se e demorava horas vendo passar o tempo, lentamente, passo a passo, milímetro a milímetro, enquanto a empregada do estabelecimento lhe ia servindo cafés atrás uns dos outros.
De vez em quando, entrava e saía alguém, por entre resmungos, esfregando as mãos, olhando em volta sem nada ver, e sentava-se, também, para ficar ali, à beira do abismo, sobre o qual assentavam as curvas do destino.
Raimundo esqueceu o que tinha vivido e começou de novo, a partir do desconhecido. Começou pé aqui, pé ali, passo atrás de passo, contando os minutos que a engrenagem da sua mente permitia articular. Por vezes, os mecanismos rangiam, como se tivessem falta de óleo, quase emperravam, desarticulados, mas ele persistia em sobreviver, teimava, não desistia de conquistar outros lugares.
Foi nas madrugadas que passava nos cafés, sem nada pensar nem dizer, que Raimundo foi esquecendo o que vivera, progressiva e metodicamente, até se tornar outra pessoa, que era ele mesmo, mas já com outra pele, com outra estrutura interior, com outra noção das coisas. Por isso, ele não se admirava que não o reconhecessem, que o ignorassem, que lhe passassem ao lado. Só ele era capaz de ouvir a sua voz, como uma espécie de eco interior, que ia fazendo contas. E não se preocupava com mais nada. Cada passo que dava era um novo país da sua emigração, cada pessoa que conhecia era uma nova língua da sua aprendizagem, cada momento que atravessava era um novo calendário do seu abandono.
Foi com a emigração que aprendeu a viver sozinho. Não havia nada à sua volta. E o que havia não lhe pertencia. Por isso, era como se nada houvesse. Tudo o que via não contava, não pesava, não mexia. Era oco, era ilusão.
Muitas vezes, davam-lhe ordens e ele não entendia os termos daquela língua estranha. Então, punha-se a olhar, a olhar, procurando destrinçar algum sentido nas arestas dos olhos de quem lhe falava. Depois, berravam com ele. Erguiam a voz e insultavam-no. Pelo menos, era o que parecia. E, se não o insultavam, ele sentia-se como se o fizessem. Sentia-se inferiorizado.
Nessas alturas, rezava. Rezava sem saber o que dizia, mas rezava. Já tinha esquecido as orações de criança, esquecera-as no dia em que tomara avião para o estrangeiro, mas ainda conseguia lembrar-se vagamente de uns sons que articulava para não morrer. Se Raimundo não rezasse naquelas ocasiões, desfaleceria, sem que alguém o pudesse socorrer.
Quando não olhava para quem lhe dava ordens, Raimundo reagia conforme calhava, fazia gestos ao acaso, na esperança de satisfazer a vontade de quem lhe dava instruções. Mas logo a seguir ouvia mais insultos, mais berros, mais ordens. E voltava a rezar. Não atinava. Não percebia as ordens que lhe davam, nem as orações que ele mesmo fazia.
Muitas vezes, Raimundo quase cedeu, quase desistiu, quase deixou o estrangeiro, a fim de partir em busca do outro estrangeiro onde havia nascido.
Mas, com o tempo, os dias foram-se compondo. Como se por milagre. Raimundo foi-se aventurando aos poucos por novas esquinas, foi puxando pela cabeça, foi descobrindo novas formas e significados nas sombras brancas da paisagem, que era todos os dias a mesma, mas sempre renovada.
Passou fome, por não perceber o que se passava à sua volta, por não saber onde se comprava alimentos, por não conhecer as estradas, por não fazer ideia de como pedir ajuda, por não ter carro para se deslocar, por não compreender o funcionamento dos transportes públicos. Tinha a sensação de que se dirigisse a palavra a alguém podiam detê-lo, fazer-lhe mal, agredi-lo. Olhava as pessoas e não era capaz de adivinhar o que tinham em mente. A linguagem dos olhos não era a mesma que aprendera em criança. Tinha outra construção, outro brilho, outro fundo para lá das pupilas.
À sua volta, tudo era grande e inacessível. Desde o céu à mais insignificante pedra de caminho ou aos lábios de uma pessoa que passava na rua. Uma mesa grande, um jarro grande, um carro grande, uma criança grande, uma loja grande. Tudo grande e ele tão pequeno arrastando os pés sobre o gelo. Foi nessa altura que se recorda de ter tido a consciência de que não podia deixar de arrastar os pés, muitos anos antes, quando ainda se encontrava na força da vida. Foi o frio, a finura do piso sobre o qual caminhava que o convenceu a nunca deixar de arrastar os pés. E assim foi pela vida fora. Arrastar os pés era a garantia de que não cairia, de que não se desequilibraria, de que não tropeçaria. Ou, se se estatelasse, a queda seria reduzida, seria amortecida pelo arrastamento dos pés.
No estrangeiro, Raimundo aprendeu a gostar da rotina. Para ele, a rotina tornou-se a garantia de uma vida sem sobressaltos, a certeza de que em cada dia não teria menos do que no dia anterior. À medida que foi percebendo as virtualidades da rotina, não foi difícil optar por nunca sair dela. O seu objectivo era poupar dinheiro. Poupar para depois investir na terra onde nascera, para a qual regressaria e que haveria de ser, um dia, o seu segundo país estrangeiro.
Raimundo fazia sempre tudo igual, todos os dias. Assim, era como se o tempo tivesse parado, enquanto ele ia ficando cada vez mais rico. Se nada se alterasse no dia a dia, a sua fortuna não correria riscos. Aumentaria sempre.
Às vezes, preferia não falar a língua do país estrangeiro onde vivia, para não se ver obrigado a dar explicações, para não se ver obrigado a pensar. Limitava-se a fazer, executar, concretizar. Fazer era dar uso às mãos, o que permitia manter a cabeça vazia pelo maior período de tempo possível.
Raimundo achava que o seu corpo não tinha lógica no país onde se encontrava, previa que necessitava de recuperar alguma coisa à sua frente, sentia que as suas mãos não eram suficientes para chegar ao fim da viagem. Era como um sonho em que não se consegue afastar o pesadelo, não se consegue mudar a agulha do comboio, não se consegue saltar para a outra margem. O seu barco estava a abarrotar de dinheiro e não havia maneira de ele dar com o caminho de regresso.
Viveu no estrangeiro durante mais de vinte anos, até se esquecer de tal forma do seu país que acabou por recuperar a memória do passado com a mais absoluta nitidez.
Certa noite, certa madrugada, quando se levantou para não morrer na cama, quando saiu à rua em busca de ar, de movimento, de sons mínimos sobre a pele fina da calçada, teve a nítida sensação de estar de volta ao pais onde nascera, embora soubesse que tal não podia ser verdade. Foi uma visão que teve, uma visão que o penetrou e o transtornou, uma visão que dava a ideia de ser um pais novo, o seu país, e que o não era.
Mas Raimundo não queria saber, não estava em condições de saber. Pôs-se aos gritos no meio da rua, dizendo que estava na sua terra, que aquela era a rua onde tinha nascido, que ali estava a escola onde havia estudado, que mais além ficava a casa da sua namoradinha, e abordava as sombras que passavam como se fossem farrapos de velhos conhecidos, velhos guindastes. As órbitas olhavam-no no escuro e nada diziam, nada acrescentavam. As órbitas eram a sua dor afundada nos pés.
Aflito, sem compreender o que se passava – estava na sua terra, mas também no estrangeiro ao mesmo tempo – Raimundo procurou o café do costume, o café onde costumava passar as madrugadas quando tinha medo de dormir para não morrer e não viu estabelecimento algum. Era a prova de que estava no seu país e não no estrangeiro. Deixou-se cair no meio da rua, sobre o gelo, sobre a lama, sobre o alcatrão esbranquiçado, de braços abertos, dizendo que finalmente tinha regressado à sua terra, que finalmente se livrara do pesadelo estrangeiro, que finalmente tinha enriquecido para sempre.
Deitado na estrada, Raimundo via sacos de água passarem por cima dele, embora não o pisassem, como se ele não estivesse ali, como se a sua existência não fosse reconhecida.
Tempos depois, nunca soube quantas horas depois, alguém o levou em braços para o café que ele habitualmente frequentava. Sentaram-no como um boneco ao balcão, no lugar do costume e ele viu que a empregada já tinha a cafeteira na mão, preparando-se para lhe encher a chávena. A sua expressão era como a de um chamamento, um convite para uma cerimónia cujo alcance não adivinhava.
Debby, a empregada que tinha o nome escrito num pequeno dístico afixado sobre o seio esquerdo do uniforme, acolheu-o com um sorriso maior do que era regra, o que fez que ele acabasse por compreender e aceitar que estava no estrangeiro mas que, ao mesmo tempo, também estava na sua terra. Porque só na sua terra podia haver uma mulher como Debby.
Raimundo olhou e olhou, para ter a certeza de que Debby era mesmo o nome da rapariga, apesar de já o ter lido vezes sem conta. Mas fazia parte da sua rotina confirmar tudo. Naquele dia, porém, era a primeira vez que se atrevia a olhar de forma tão demorada para o seio esquerdo de Debby.
Sentiu-se culpado. Mas Debby olhou-o de forma franca e amiga, levando-o a recompor-se (embora não tivesse feito qualquer esforço para perceber a intenção dela). Raimundo aceitava o que via, apenas, o que via diante dos olhos. Para ele, só existia o olhar e o dinheiro. E o que lhe ficou desse tempo foi mesmo só a claridade de Debby na noite escura de Toronto. O vento cortava os espaços entre os corpos feridos de noite, mas nem assim Debby deixava de ser a mulher do sorriso que o esperava por trás do balcão.
Tempos depois, Raimundo soube que ela partira de vez, quando se deixara adormecer ao volante na viagem de regresso a casa pela madrugada. Debby partira sem ter tido tempo para mais nada, para uma última palavra, um último sorriso.
Só então Raimundo percebeu o que ela lhe andara a querer dizer enquanto vivera e ele nunca entendera; só então captou o sentido dos seus olhares, dos seus silêncios, dos seus pensamentos; só então se deu conta de que alguém que parte, afinal, tem tanta coisa para dizer, para contar, para desejar.
Raimundo sentiu-se ainda mais estrangeiro, mais enregelado, como se tivesse conseguido um lugar no cemitério ao lado de Debby.
Quando me contou isto, Raimundo suspendeu a respiração, fitou-me nos olhos e disse:
Poucos dias antes de voltar, tentei lembrar-me da tua cara, Lis, mas não consegui. Não consegui ver nada. Só me lembrei da forma das tuas orelhas, imagina! O resto era uma névoa branca, como o tempo em que Debby desapareceu da minha vista. Um dia, hei-de voltar à terra onde a conheci. Hei-de lá voltar, um dia”.




21


Desde cedo ouvi dizer que as pessoas deviam apaixonar-se por alguém, deviam envolver-se, entregar-se, partilhar o coração. Quando fiz dezasseis anos, perguntaram-me se “já” me havia acontecido, se “já” me tinha apaixonado. Inicialmente, não detectei o alcance da pergunta, mas depois percebi o que estava em causa. Aquele “já” queria dizer alguma coisa. Queria dizer que era tempo de eu me mexer, de acordar, de mostrar o que valia. Antes que pudessem duvidar das minhas capacidades, decidi resolver o assunto de uma vez por todas. Não havia motivos para me sair mal. Bastava-me comportar como alguém que confia, alguém que conhece o terreno que pisa. Eu não queria correr o risco de constituir excepção. Queria ser como toda a gente. Não admitia ficar de fora. Tinha horror à diferença. Receava que me discriminassem, que me olhassem de lado.
Por isso, e apesar da minha pouca idade, apressei-me a procurar alguém por quem me pudesse apaixonar, dedicando-lhe o fogo indomável do meu coração. Agarrei a primeira pessoa que me veio à cabeça: correspondia aos padrões pelos quais eu ansiava e morava na rua a seguir à minha. Deste modo, podia vê-la quantas vezes me apetecesse. Era só dar uma volta pelas redondezas e esperar que saísse de casa para o trabalho ou que regressasse ao fim do dia. O importante era que, mais tarde ou mais cedo, os meus sentimentos fossem recompensados. Porque eu não queria apaixonar-me a troco de nada.
Mal imaginei – foi mesmo uma questão de imaginar – que o meu coração tinha destinatário, percebi que a minha vida mudara radicalmente. Eu só pensava em Serafim, Serafim, Serafim. Era aflitivo. Mas, ao mesmo tempo, desanuviava-me. Porque, ao pensar nele, tinha a alma sempre cheia de esperança. O meu único objectivo era conquistar Serafim. De resto, o mundo podia desabar que eu não me daria conta dos estragos à minha volta, tal a obsessão em que vivia.
A minha primeira paixão foi uma questão de planeamento puro e simples. Depois de me confrontarem com aquele “já”, percebi que, à semelhança do que acontecia com a maioria dos jovens da minha idade, tinha chegado a hora de incendiar os sentimentos com que a natureza me dotara e não hesitei um momento. Por qualquer motivo, Serafim parecia-me ser a pessoa mais indicada para o efeito. Era vários anos mais velho do que eu, folgazão, voz grossa, sociável, bem parecido, solteiro. Desde os meus dez ou onze anos, quando passava por ele, ouvia geralmente um comentário simpático. E nem me ofendi no dia em que, com inusitado descaramento, se atreveu a beliscar-me uma das nádegas perante vários homens com quem se encontrava. A minha reacção inicial foi de perplexidade, mas não demorei mais do que segundos a dar-me conta de que o seu gesto não passara de uma brincadeira amistosa. Aquele beliscão nunca mais me saiu da ideia. Fiquei sempre com uma especial predilecção por Serafim. Em vez de me causar repulsa, o seu gesto fez nascer em mim a ideia de que eu representava alguma coisa na sua vida, caso contrário ele não teria feito o que fez.
Anos mais tarde, quando me apaixonei por ele, fi-lo com a certeza de que o beliscão que ele me dera fora a maneira de me escolher para algo que eu desconhecia, mas que tudo indicava teria a ver com paixão, com efusão de emoções.
O “já” com que me tinham desafiado era uma forma de me alertarem para algo que me faltava descobrir. Se calhar, eu devia ter-me apaixonado quando Serafim me dera o beliscão nas nádegas. Se calhar, aquele fora o sinal que na altura eu não detectara. Se calhar, Serafim já esperava por mim desde há anos sem que eu me tivesse dado conta do seu interesse.
Foi neste contexto que a minha alma de dezasseis anos se deixou cativar. Passei noites inteiras, à janela, mirando as estrelas com o pensamento em Serafim. Eu não duvidava de que na rua ao lado ele também não pregaria olho só de pensar em mim e no que eu representava para a sua vida.
Nunca lhe tinha dado o mínimo indício sobre os meus sentimentos, nem achava que fosse necessário fazê-lo, porque, de acordo com a minha forma de pensar, Serafim tinha obrigação de ver, de adivinhar, de ler, o que me ia no íntimo. Ao passar por ele na rua, eu não conseguia deixar de corar, pondo a nu o caldeirão da minha sensibilidade. Por isso, era impossível que ele nada detectasse, era impossível que não percebesse o meu turbilhão de sentimentos.
Por vezes, se eu vinha a descer a calçada, ou se me aproximava do café onde Serafim costumava parar ao fim de tarde, os amigos chamavam-lhe a atenção, fazendo sinais para que não deixasse escapar a oportunidade de me ver ou, porventura, de me voltar a beliscar as nádegas. Se os amigos notavam o que se passava comigo, eu não admitia que Serafim não notasse.
Eu sempre ouvira dizer que a paixão era um fogo incontrolável, uma espécie de sorte grande. Por isso, não tive dúvidas de que ao deixar-me laçar, ao deixar-me apanhar pelo destino, estava a dar um passo fundamental.
Contudo, o tempo foi passando e Serafim nunca tomou qualquer iniciativa em relação a mim. Quando eu passava por ele, ou o encontrava junto ao café onde convivia com gente da sua idade, a impressão que me dava era a de que ele, a partir de uma determinada altura, me passara a evitar. Os próprios amigos já não lhe davam cotoveladas, nem diziam piadas quando eu aparecia.
Um dia, enfrentei Serafim. A sua postura de súbita indiferença era um enxovalho que eu não suportava. Achava-me no direito de saber se acontecera alguma coisa, se eu o ofendera, se alguém lhe fizera chegar algum mexerico a meu respeito. Por maiores que fossem os nervos que eu sentia, detive-me a alguns metros de distância da sua roda de amigos, olhei-o nos olhos e aguentei até que ele desse alguma indicação, até que tomasse alguma atitude.
Serafim retribuiu-me o olhar com frieza, corou (desta vez foi ele a corar), contagiando os três amigos que estavam com ele e, sem nada dizer, deu meia volta em direcção a casa.
Nunca pensei que o meu comportamento tivesse o condão de o abalar daquela maneira. Os amigos que se encontravam com ele também pareceram surpreendidos. E eu demorei uns segundos antes de decidir o que fazer. Em vez de prosseguir caminho como se nada fosse, como se o embaraço tivesse tido origem na atitude de Serafim e não na minha, recuei no meio de uma atrapalhação incompreensível e desatei a fugir, sob repentinas gargalhadas de escárnio estridente. Foram gargalhadas que me marcaram durante anos. Só recentemente concluí que se tinham resumido à insignificância de um momento.
A desilusão com a indiferença de Serafim fez que eu abrisse o leque da minha afectividade. Decidi que poderia apaixonar-me por quem quer que fosse, desde que não andasse longe da minha idade. Precisava de encontrar alguém que tivesse condições para me perceber. Tanto me fazia ser rapaz ou rapariga. Seria quem primeiro se dispusesse a corresponder-me. Eu queria era sentir uma vibração atómica dentro de mim e experimentar o respectivo retorno. Nunca tinha sentido o amor de alguém que não fizesse parte da minha família. Não imaginava, por isso, se amar um estranho seria mais ou menos importante, mais ou menos significativo, do que amar o pai ou a mãe.
Apaixonei-me por uma rapariga, lindíssima, com a minha idade, aproximadamente. Logo que tive oportunidade, corri para ela e comuniquei-lhe os meus sentimentos. Ela corou e respondeu, com uma expressão pálida e gélida:
Isso não se diz!”
Fiquei sem reacção, sem ideia sobre como replicar-lhe. A minha segunda paixão voltava a revelar-se um fiasco. Se todas as paixões fossem como as duas que eu já experimentara, estava visto que eu não teria uma vida fácil.
Numa terceira tentativa, apaixonei-me de novo por um rapaz. E tive melhores resultados. Ao menos, não senti que a paixão fosse um sentimento negativo e desaconselhável.
Mas também me rodeei de maiores cuidados antes de pensar como havia de lhe revelar, ou não, os meus sentimentos. Não corri para ele a dizer – “meu querido isto, meu querido aquilo…”.
Punha-me a mirá-lo, à distância, sorrindo…, corando…
Eu não tinha a certeza de ele alcançar o meu íntimo, mas nem por isso desistia de o amar. Só o facto de ele não me repelir, já me encorajava o suficiente.
Passava noites sem dormir, só de pensar nos seus olhos. Sentia-me normal, sentia a loucura da paixão dentro de mim. Adorava não dormir, adorava passar horas em claro à janela olhando para as estrelas e para a distância do firmamento. A noite do céu sempre foi uma das minhas perdições. Sofria por não saber se o meu sentimento era correspondido, mas preferia viver assim do que enfrentar um desgosto. Se um dia soubesse que ele não gostava de mim sofreria muito mais do que se desconhecesse os seus sentimentos a meu respeito.
Não lhe escrevia cartas, nem poemas de amor. Mas imaginava-os. Imaginava-os, apenas. Imaginava até a forma da letra em papel perfumado, a qualidade da ortografia elegante e arredondada. Imaginava os dizeres, as frases, os raciocínios.
Auxiliadora era uma das minhas confidentes nessa altura. Era a única pessoa com quem eu falava sobre as minhas paixões.
Contava-lhe tudo e ela ouvia-me com tal dedicação que a dado passo quase ficava sem respirar. Eu despejava-lhe as minhas ideias, abria-lhe os meus sentimentos, sem pensar nas consequências que os meus desabafos tinham na sua sensibilidade. Pedi-lhe ajuda para descobrir o nome do rapaz por quem me apaixonara. Eu não conseguia tomar a iniciativa de o abordar, de simplesmente lhe perguntar como se chamava. Auxiliadora fez uma cara muito quadrada quando percebeu o que eu pretendia dela, mas não se recusou a satisfazer-me a vontade.
No dia seguinte, disse-me que o rapaz se chamava Edmundo e quando me apressei a perguntar se ele gostava de mim, Auxiliadora encolheu os ombros e virou-me as costas. Mais tarde, acabou por admitir que se esquecera de indagar. Ficou combinado que o faria numa próxima oportunidade.
Mas nunca vim a sabê-lo. Auxiliadora dizia sempre que se esquecia e eu acabava por aceitar a sua fraca memória. Fazia-o tacitamente. Convinha-me não saber a verdade. Eu desconfiava de que ela estava apenas a querer poupar-me a um desapontamento. E a querer poupar-se, também, à humilhação que eu lhe infligia ao estar sempre a falar-lhe de Edmundo.
Nos momentos mais difíceis, quando a ambiguidade nos assaltava com maior determinação, chegámos a passar noites inteiras ao relento, conversando, amparando-nos mutuamente, consolando-nos. Falávamos de Edmundo, de mim, dela, das nossas hipóteses.
É claro que a minha paixão por Edmundo não passou de um amor singelo e platónico. Nunca lhe falei, nunca lhe ouvi a voz. Com o tempo, desapareceu na neblina da memória.
Depois de Edmundo, tive outras paixões. Mas não vou pôr-me aqui a descrevê-las porque as paixões são insensatas e medíocres, uma perda de tempo e um mal para a saúde. O verdadeiro obstáculo ao desenvolvimento do amor são as paixões. Se há tão pouco amor por toda a parte é devido ao excesso de paixão que há no mundo.
Hoje, tenho a certeza de que nunca me apaixonei verdadeiramente. O que fiz sempre foi antecipar-me aos meus próprios sentimentos. Sempre vivi as paixões antes de as sentir na realidade. O que fez que nunca as sentisse na verdade.
Ainda hoje não sei se sei o que é uma paixão. Foi tudo sempre artificial na minha vida. Nunca me ligaram – nem elas, nem eles – o que me levou a desistir de ter esperança num entendimento amoroso.
Actualmente, não tenho saudades de nada nem de ninguém, embora recorde com nostalgia as noites que passava à conversa com Auxiliadora. Passávamos horas olhando o horizonte escuro da planície e especulávamos sobre o que o futuro nos reservava. Tínhamos a certeza de que manteríamos uma firme união pela vida fora, o que não veio a acontecer, porque ela partiu tão antes do tempo. Partiu e sinto que me chama cada vez com maior entusiasmo para junto dela, tal como eu não me canso de reclamar o seu calor intenso na escrita destas páginas.




22


Nos dias em que eu tinha a oportunidade de olhar Rute contra a luz da janela, magra e elegante como se não tivesse idade, como se tivesse catorze, vinte ou trinta anos, sentia um prazer inigualável, um prazer físico e psicológico superior a tudo o que alguma vez experimentara. Era uma prazer maior do que o normal porque a visão do seu corpo contra a luz do dia me dava a sensação de ver a sua alma, de ter o seu espírito nos braços. O espírito de Rute é muito mais perfeito do que o corpo, que já de si é de uma beleza incomparável. Por isso, não admira que eu me sinta nas nuvens quando ela está comigo e também não admira que eu me sinta tão fora de mim por não a ter aqui ao pé.
Por vezes, penso que não resisto à sua ausência. Receio sucumbir ao abandono, ir-me, perder-me, soçobrar, cair no esquecimento, por não estar junto dela, por não a ouvir, por não a vislumbrar. No fundo, foi esse medo que me fez chamar a ambulância. Porque, vendo as coisas de uma forma distanciada, se Rute estivesse cá em casa, provavelmente eu não teria sentido qualquer indisposição física. Acredito que posso ter mesmo fabricado a situação, com o intuito de alguém me socorrer, na esperança de que a notícia pudesse chegar aos ouvidos de Rute. Para minha infelicidade, ninguém se importou com o telefonema que fiz. Nem o hospital se preocupou em garantir a disponibilidade de uma ambulância para me transportar às urgências.
Assim, só me resta pensar em Rute, imaginá-la, reconstruí-la de memória, agarrar-me a pedaços dela, a fragmentos do seu corpo e dos seus risos, o que, só por si, é já uma partida, pelo menos um início de partida.
Com os anos, a imagem que guardo de Rute é a de uma mulher que sorri, que ri, e que não pára de andar de um lado para o outro, como se a minha casa tivesse qualquer coisa que a incendeia, estimula, inquieta.
No meu espaço, Rute move-se com à vontade e confiança desde há muito tempo. Contorna os móveis, fala, argumenta, ri, conta coisas, com a segurança de quem não receia sobressaltos ou armadilhas. Nessas alturas, vendo-a tão livre que me parece despida, não consigo deixar de me lembrar de Ilda, uma amiga que tive e que era precisamente o oposto de Rute: Ilda só queria sexo, sexo na prática, sexo puro e duro, nada de conversas, nem de imaginações, nem de filosofias. Tivemos um namoro de meses e ainda hoje o recordo como uma das experiências mais gratificantes da vida.
Ilda era o oposto de Rute, mas havia em ambas qualquer coisa que me levava a associá-las. Possivelmente, o sexo. Rute fazia-o com a mente e Ilda não se cansava de o fazer com o corpo, deixando sempre claro, porém, que o seu objectivo era dar prazer e não recebê-lo. Ilda fazia muito sexo, mas evitava ter orgasmos. Para ela, ter um orgasmo era ceder, fraquejar, deixar-se cair na tentação do egoísmo.
Era isto que me fazia ligar Ilda a Rute. Ilda fazia sexo recusando o orgasmo, as carícias, a ternura, as palavras doces, ao passo que Rute recusava o sexo directo e palpável. Ambas, no fim de contas, viviam para a rejeição do sexo. Para ambas, o sexo era o outro e não elas mesmas.
Rute sabia que dava prazer falando de sexo e Ilda sabia que o dava, igualmente, praticando-o. Ilda fazia muito sexo, mas exigia que a sua companhia não lhe desse atenção. Impunha-lhe que procedesse como se ela não estivesse ali. Pelo menos, comigo, sempre procedeu desta forma. Fazer sexo com ela era como praticar sexo solitário, com a vantagem de ter sensações mais aprazíveis e libertadoras. Ilda queria apenas que a outra pessoa se realizasse, que tivesse orgasmos e mais orgasmos e com esse objectivo dedicava-se ao corpo da forma mais completa e abnegada. Era capaz de me lamber os joelhos por horas intermináveis. E nem desistia quando eu lhe pedia – por Deus, por todas as almas – que parasse, que já me bastava. O prazer que proporcionava não tinha paralelo. Era um prazer que estava para o físico na mesma proporção que o prazer de estar com Rute estava para o espírito.
Ilda nada queria receber em troca do que fazia porque, na sua opinião, só deste modo o prazer fazia sentido. Num acto sexual, o prazer só devia ter uma direcção. Ilda não se importava que essa direcção lhe fosse sempre alheia. Estava convencida de que esta era a via mais coerente para a felicidade.
Mas Ilda alegava também que evitava o orgasmo para que nunca chegassem a dominá-la. Na sua perspectiva, o sexo era uma oportunidade de poder e ela não estava disposta a fazer qualquer cedência nesse campo. Era na dádiva do prazer que edificava as suas defesas. E não valia a pena argumentar que era precisamente a perda momentânea de poder que tornava o sexo sublime porque Ilda achava que o poder de dar não se resumia ao instante do orgasmo, ao instante em que duas pessoas se entregavam uma à outra.
Para Ilda, o orgasmo (uma situação da qual os outros se aproveitavam, segundo dizia) acabava por ser uma fraqueza. Uma fraqueza evitável. A força do sexo estava na anulação do orgasmo. Na sua opinião, quem assim não procedia limitava-se a trocar a segurança da vida por meia dúzia de espasmos ridículos.
Certa vez que estávamos na cama, eu quis ter mesmo a certeza de que Ilda aplicava a sua regra de forma generalizada e me encarava como outra pessoa qualquer. A resposta não se fez esperar:
Não tenho motivos para te tratar de maneira diferente.”
Aleguei que a sua atitude significava uma enorme falta de confiança em mim, o que ela não hesitou em confirmar:
Claro que não confio em ti”, disse-me, com descaramento.
Nunca te dei razões para isso”, argumentei.
A minha falta de confiança é uma questão de princípio. Nada tem a ver contigo, pessoalmente.”
Apesar de não confiares em ninguém, entregas a tua intimidade a troco de prazer nenhum?”
Aí é que reside o desafio! Que vantagem haverá em dar prazer a pessoas em quem se confia?”
Depois daquele dia, nunca mais me restaram dúvidas sobre a forma como eu devia fazer amor com Ilda. Passei a gozar o máximo sem qualquer remorso por não vê-la enrolada em gemidos e gritos de luxúria. E a ausência de remorso fez-me perder a noção das barreiras.
Já que Ilda recusava o prazer máximo no acto amoroso, eu direccionaria todas as minhas forças e energias para o meu próprio orgasmo. Era um orgasmo multiplicado, superior, fruto da concentração das minhas forças e das dela.
A partir de então, o sexo que fazíamos era uma loucura. Fornicávamos como verdadeiros animais. Não desperdiçávamos tempo. Eu era só prazer da cabeça aos pés, era só corpo, era só entrega total dos seios, dos joelhos, dos rins.
Ela recusava o seu próprio orgasmo, mas não recusava contribuir para que eu os tivesse em elevado número. Lambendo-me os joelhos e, ao mesmo tempo, afagando-me os rins era quanto bastava para eu trocar aquele momento por mil viagens de morte que se seguissem. Desejei-as por mais de uma vez, desde que pudesse ter Ilda comigo para me dar o que só ela dava em tamanha medida.
As regras tinham sido estabelecidas por Ilda. Se alguém poderia queixar-se era eu, que não tinha o direito de lhe dar prazer. Mas é claro que eu não me queixava, bem pelo contrário, era só gratidão, qual pedinte de esquina a quem tivessem depositado na mão o prémio de uma lotaria!
Para Rute, de outra parte, o sexo – tal como a sua beleza (que ela transformara em fealdade) – era, também, sem sombra de dúvida, uma questão de poder. Mas era um poder que ela evitava exercer. Ou não teria renegado a sua beleza. Rute queria ser amada, não pelo poder do sexo ou da aparência física, mas sim pelo poder da alma. A relação que ela tinha comigo era o melhor exemplo disso.
A visão de amor de Rute nada tinha a ver com o corpo, ao contrário do que sucedia com Ilda. Para Rute, o amor era sentimento puro e recíproco. Por isso, ela podia dar-se ao luxo de evitar o sexo, convencendo-se de que era uma das pessoas mais feias que alguma vez existira. Conseguia dizê-lo com os olhos a brilhar, sorrindo, na certeza de que decidira o melhor para si.
Rute tinha uma beleza que escapava ao orgasmo do clítoris. Uma beleza pura, espiritual, que nunca se deixara levar pela loucura da carne. E era isso que mais cativava nela. Quanto mais parecia recusar o poder do sexo concreto, mais atraente se tornava, o que não deixava de ser irónico para alguém que era tão bela e que acabou por se convencer exactamente do contrário.
Rute era uma espécie de eterna adolescente, com a dose de maturidade que os cinquenta anos lhe acrescentavam.
O meu caso era diferente. Eu não sabia se era mulher ou se era homem e tinha em cima o peso de uma idade maior. Além do mais, Rute permitia que eu lhe tocasse, que me aproximasse dela, que lhe pegasse na mão, um privilégio a que poucos tinham direito.
Quando se sentava na minha cama, dava-me um beijo na fronte, por vezes na face, e estendia a mão sobre os lençóis, para que eu tivesse algo a que me agarrar. Ela sabia que a sua mão era determinante. Sem ela, sem a sua mão, eu seria menos pessoa, menos sensível, menos inteligente, teria menor capacidade de comunicação.
A sua mão era o detonador das nossas conversas. Logo que sentia a pressão dos seus dedos finos e ágeis sobre o ombro, o braço, o pulso, dava-me conta de que as palavras desatavam a correr em direcção à garganta, como se não pudessem esperar por conhecer a luz do dia. E a conversa nunca mais parava.
À medida que o diálogo fluía, Rute acariciava-me a palma da mão, por vezes; acariciava-me os dedos; subia com as suas unhas delicadas pelo meu braço, enquanto sorria, com olhos meigos e lábios húmidos, inclinando ligeiramente a cabeça. Eu pedia-lhe que me afagasse os joelhos, mas a resposta que obtinha era um sorriso entendedor. Muitas vezes me arrependi de a ter posto ao corrente de alguma da minha intimidade. Se o não tivesse feito, tenho a certeza de que Rute não hesitaria em pousar a sua mão nos meus joelhos. Um dia, porém, eu sabia que teria a recompensa. Seria o dia derradeiro, sem dúvida, mas valeria por todos os outros.
O que eu mais desejava, ao morrer, era que Rute se encontrasse a meu lado, contribuindo para que eu tivesse esperança no momento da partida. Eu tinha a certeza de que, no instante da minha morte, só nesse instante, ela faria tudo o que eu lhe pedisse e mesmo o que não pedisse. Por isso, esperava com impaciência que chegasse a minha hora. Às vezes, até me perguntava se não valeria a pena antecipar o fim, só para experimentar o prazer indescritível que Rute me proporcionaria. Porém, logo mudava de ideias, ao lembrar-me de que, se o fizesse, veria imediatamente reduzido o meu tempo de convívio com ela. Qualquer iniciativa que eu tomasse para alterar o estado de coisas corria o risco de arrancar Rute definitivamente da minha vida. Era tão bom estar com ela no dia a dia que eu não prescindia do seu convívio por troca com uma morte feliz. Todos os dias em que recebia a visita de Rute eram dias da minha morte feliz.
Ouvi passos nas escadas. Pus-me alerta. Rute foi a primeira pessoa que me veio à mente, mas depressa desanimei. Por qualquer razão, por qualquer instinto obscuro, percebi que não se tratava dela. Bateram à porta com os nós dos dedos. Protestei, arenguei, pedi que esperassem, levantei-me a custo, apertei o roupão e fui abrir aos tombos.
Era o carteiro com uma carta registada que eu devia assinar. Uma carta da repartição de Finanças. Tive um sobressalto, por ser das Finanças e por ter que assinar um documento.
Sempre que o carteiro me procurava e me pedia para assinar alguma coisa, eu obedecia, mas fazia-o com um aperto no peito, como se a minha assinatura tivesse a marca de uma clandestinidade que eu procurava não descortinar.
Os meus receios não tinham a ver com as cartas que eu recebia (excepto quando vinham remetidas das Finanças), mas sim com o meu nome, com as palavras que me identificavam, que me revelavam. Quando eu assinava algum documento não o fazia apenas com a palavra Lis. Fazia-o com o nome completo. E era isso que me angustiava, na verdade. O facto de escrever num papel o meu nome passava a constituir prova de quem eu era, da minha identidade, embora eu tivesse a certeza de que um nome era apenas um nome que nada tinha a ver com a realidade de todos os dias. Ou seria que as pessoas, ao longo dos anos, se adaptavam, moldavam, aos seus nomes? Eu sempre desejara que o meu nome fosse o espelho fiel da minha consciência e sensibilidade. Mais do que desejar, sempre trabalhara nesse sentido. O sonho de toda a gente é que o seu nome seja a síntese da sua vida. Eu não era diferente.
Por vezes, pensava que as dúvidas se resumiam à terminação (masculina ou feminina) de um nome, mas também havia ocasiões em que achava ridícula essa suposição. Se o nome não podia dar a garantia de explicar a natureza e personalidade de uma pessoa, era óbvio que a terminação do nome ainda o garantia menos. Contudo, por mais caricato que parecesse, o meu problema era a terminação. E tanto o era que, no decurso dos anos, transfigurei de tal maneira a minha assinatura que a tornei praticamente ilegível. Resumia-a a uns círculos ovalados, uns travessões oblíquos e pouco mais, uma garatujada que nada significava e que não devia ser reconhecida legalmente. Mas o carteiro já se habituara aos meus rabiscos. Fingia não perceber a artimanha, agradecia delicadamente, guardava a caneta no bolso e seguia o seu caminho.




23


Quando eu vivia com os meus pais na adolescência e na juventude, estava sempre à procura de um pretexto para discordar deles, para fazer vingar os meus pontos de vista. Eles respondiam-me com olhares silenciosos, não querendo contradizer-me, não querendo provocar discussões. Mas diziam-me que, um dia, eu pensaria de outra maneira, o que me deixava completamente fora de mim. Sobretudo pela segurança com que previam o futuro. Era como se quisessem apropriar-se de mim para sempre.
Eu achava que nada era como eles diziam. Pensava que tudo se desenrolaria conforme a minha perspectiva. Porque eu era jovem e acreditava que ser jovem era ter acesso ao saber actualizado.
Mesmo numa altura em que a minha mãe e o meu pai já nem trabalhavam, por motivos de doença, e se encontravam em casa à espera de partir, eu não lhes dava um minuto de descanso sempre que tinha oportunidade para isso, sobretudo na hora das refeições.
Fazia-lhes perguntas com o propósito de os chocar, e chocava-os, embora eles tudo fizessem para me demonstrar o contrário. Queriam que eu me abrisse com eles, que lhes falasse de todos os assuntos, e, por isso, não podiam dar-se por ofendidos.
Eu amava-os, sabia que iam morrer e, por isso mesmo, não os deixava em paz. Queria inquietá-los, desassossegá-los, como se pretendesse castigá-los pelo facto de um dia me virem a deixar só. Não suportava que me abandonassem e que sabendo que um dia me deixariam não passassem todo o tempo das suas vidas lamentando a minha perda.
Para mim, amar era gostar tudo, exigir tudo, ocupar tudo. Não fazia sentido saber que o espaço dos meus pais ficaria vago, um dia. Esta era a minha grande dor. E terá sido essa dor uma das razões porque então me liguei tanto a Auxiliadora. Pensava que depois da morte dos meus pais só ela me restaria.
A partir de certa altura, fui-me afastando de casa. Os meus pais perceberam a minha atitude. Sabiam que eu o fazia por estratégia. À medida que crescem, as pessoas afastam-se dos progenitores, afastam-se dos amigos e conhecidos, afastam-se por precaução, por cautela, para não sofrerem tanto com o desaparecimento daqueles que amam.
Durante dias consecutivos, e embora vivendo na mesma casa, os meus pais só me viam pela manhã, quando eu me levantava, dirigindo-me apressadamente à casa de banho, e à hora das refeições. Viam-me passar, mas percebiam que eu não estava ali por eles. Percebiam que o meu objectivo nada tinha a ver com os seus sentimentos. E não tinha. Mas não se ofendiam por isso, não mostravam ressentimento. Diziam “meu amor… andas sempre a correr de um lado para o outro, nunca te pomos a vista em cima!”
Aquele “meu amor” arrepiava-me, enchia-me de remorsos e eu prometia com todas as forças da minha alma passar a dar-lhes mais atenção, passar a conversar mais com eles, passar a amá-los de forma mais consequente. Prometia isto e muito mais, embora sabendo que continuaria a vê-los apenas às horas de comer e que realmente nada mudaria no nosso relacionamento.
Imagino, agora, como não deviam eles sofrer com as minhas ausências que, ainda por cima, eram puro desperdício de tempo, puro vaguear pelas ruas, puro desencontro comigo e com os outros. As minhas ausências eram simples evasões e escapadelas, que me davam a impressão de viver num buraco de dimensões ilimitadas. Imagino quanto não sofriam os meus pais com a distância a que eu os votava, eu que hoje sofro tanto por não ter Rita comigo, Rita que nem é minha filha, Rita que só achei perdida à minha porta. Imagino quanto não sofriam os meus pais por saberem que eu me limitava a usar a sua casa para dormir e comer. E nem assim me condenavam. Manifestavam-me sempre a maior afeição, como se os minutos que eu demorava a ingerir a comida fossem a eternidade que lhes restava para me partilhar, para conviver comigo, para me amar.
Eu vivia com a sensação de que tinha todo o tempo do mundo para os amar. E tinha. Mas esse era um sentimento que então eu estava longe de saber construir. Os dias passavam e eu sentia (não sabia) que faltava cada vez menos tempo aos meus pais.
Mais tarde, quando eu os perdesse, quando os seus ecos se esvaíssem, quando eles fossem apenas conjectura e sombra, então chegaria a ocasião de eternizar o seu amor. Nessa altura, sim, eu teria todo o tempo do mundo para os amar, todo o tempo do mundo para tanta coisa.
No fim das refeições, que nunca me faltaram, quando me levantava da mesa e dirigia para o meu quarto, não podia deixar de ver os meus pais com os olhos meigos, claros, sorrindo, agradecidos por aquele pedaço de tempo que eu acabava de lhes dar. Em vez de chorarem, acarinhavam-me com os olhos, abençoavam-me. Cada olhar deles era um sol que me cobria.
Passavam dias inteiros sem me ver e quando me viam estavam sempre agradecidos. Nem que eu lhes desse apenas um segundo de atenção. Sorriam, para me agradar. Agora, sei que sofriam horrivelmente. Só lhes restava sofrer. Sofriam por mim como eu sofro por Rita.
Anos mais tarde, já eu leccionava há quase meia década, o meu pai pediu-me para passar uns dias em minha casa. Estranhei o pedido, mas não fui capaz de dizer que não. Só depois percebi – muito depois – que o seu desejo era morrer na minha companhia. Um desejo talvez não consciente, mas nem por isso menos desejo…
Uma vez instalado em minha casa, ao fim do segundo dia, o meu pai passou a queixar-se disto e daquilo, insistindo que não se sentia bem e pedindo por tudo que eu telefonasse a um médico.
Perguntei-lhe o que tinha, mas ele não sabia explicar, metia a cabeça entre as mãos e apenas dizia que não se sentia bem. Era pouco para mim; mas, para ele, era tudo.
De início, pensei que talvez estivesse a exagerar. E não dei muita importância ao caso. Pus a hipótese de, no fundo, ele estar com saudades de minha mãe, que tinha deixado em casa sem companhia.
Após uma semana, contudo, ele insistia que precisava de um médico e garantia que estava a piorar de dia para dia. Mesmo assim, pensei que, se ele já tinha aguentado todo aquele tempo sem que lhe tivesse acontecido nada de grave, era porque, na verdade, o seu mal devia ser mais psíquico do que físico. E como não dizia que lhe doía a barriga, a cabeça ou o coração, como não explicava nada, fui sempre adiando o telefonema para o médico, ora dizendo-lhe que o consultório estava encerrado para férias, ora que me tinham prometido telefonar quando surgisse uma vaga.
Logo a seguir, contudo, apercebia-me de que se estavam de férias no consultório não fazia sentido eu dizer que tinham prometido telefonar-me quanto houvesse vaga e então embrulhava-me em justificações, acabando por admitir que o mais certo era ter-me enganado na marcação do número.
Um dia, perguntei-lhe se queria voltar para casa, para junto de minha mãe e a resposta dele foi peremptória:
Se gostas de mim, deixa-me ficar aqui contigo. Mas, por favor, não lhe digas nada. Se me tens amizade, não lhe digas nada…
Não me restavam dúvidas de que ele se tinha zangado com a minha mãe, mas pensei que, tarde ou cedo, haviam de fazer as pazes e cair de novo nos braços um do outro.
Eu não acreditava que o meu pai estivesse nas últimas. Pressentia que lhe sobrava pouco tempo de vida, mas alimentava a convicção de que esse pouco tempo ainda seria razoavelmente dilatado.
Ele resignava-se e acreditava no que eu lhe dizia sobre as férias e sobre a agenda ocupada do médico. Protestava contra o serviço de saúde, ao que eu lhe respondia que nos haviam de telefonar, mais tarde ou mais cedo, quando o consultório reabrisse. Aconselhava-o a ter alguma paciência e deixava-lhe uns livros distraidamente sobre a mesa-de-cabeceira, embora tivesse a certeza de que ele não lhes punha a vista em cima.
No início da terceira semana de queixas, ele pediu-me que contactasse outro médico, mas eu repliquei que não valia a pena, porque todos os médicos deviam estar bastante ocupados naquela altura do ano. Junho era sempre um mês de gripes e vírus, um mês de mudança de estação. O melhor, defendi, seria esperar por uma vaga no médico de família.
Quando eu lhe falava em ir às urgências, recusava veementemente. Mas eu também só lhe acenava com essa possibilidade porque sabia que por nada deste mundo ele aceitaria a minha sugestão.
Uma consulta privada é caríssima, não é?...”, dizia-me ele, aproveitando para salientar que a saúde estava acima dos interesses financeiros.
Mas o meu problema não era financeiro. E eu dizia-lho, ainda que os seus olhos estivessem longe de acreditar nas minhas palavras.
Apesar de saber que nas urgências o atendimento era imediato, ele mantinha-se firme na sua determinação de lá não pôr os pés.
Prefiro morrer aqui e agora”, afirmava com uma veemência que me levava a mudar de conversa prontamente. A sua posição, contudo, deixava-me com um vago alívio de consciência, que era apenas uma forma de contornar a evidência de que eu podia fazer por ele bastante mais do que fizera até ao momento.
Nunca me explicou por que não concordava em ir às urgências. Sempre que lho perguntei, o seu semblante ficava carregado, tenso, distante, e eu acabava por desistir.
No fim da terceira semana, o meu pai morreu. Morreu durante a noite. Foi-se sozinho. Apagou-se, após ter perdido a esperança de ser visto por um médico. Faleceu sentado na cama, com as costas de encontro a duas almofadas. Durante a noite, tenho ideia de ter ouvido uns vagos murmúrios a que não dei importância, possivelmente por achar que faziam parte de um sonho qualquer. Eu dormia no quarto ao lado do dele e não sei a que horas pareceu-me ouvir uns ruídos à distância, uns gemidos, uns sons guturais. Pensei levantar-me, para ver se estaria a acontecer alguma coisa, mas enquanto reflectia sobre a decisão a tomar, voltei a adormecer. Tenho a certeza de que adormeci porque nunca achei possível que alguma coisa estivesse realmente a acontecer.
Quando me levantei, de manhã, saí da cama com um pressentimento confuso, com um peso na consciência, como se tivesse procedido de forma ilegal ou criminosa. Dirigi-me a toda a pressa para o quarto onde o meu pai passara a noite e no momento em que pus a mão no trinco da porta, compreendi que ele já lá não estava. Quase não me dei ao trabalhar de entrar para verificar o óbito. Mas depois pus os pés no chão e percebi que não tinha outro remédio senão avançar. O meu pai estava meio sentado contra as almofadas da cama, pálido, de olhos azuis muito abertos na minha direcção como se tivesse morrido à minha espera, à espera de que eu entrasse a qualquer momento para ouvir a sua última vontade.
Não precisei de fazer nada, de lhe ver o pulso ou de lhe colocar um espelho diante do nariz. A morte estava escrita em letras esculpidas na pedra da sua fronte. Morrera sozinho, sem consolo nem companhia. Morrer sozinho comigo a dormir ali a meia dúzia de metros dele.
Se Rute já fosse minha conhecida nesse tempo, talvez a sorte do meu pai tivesse sido outra, porque eu não me teria esquecido de lhe pedir que vigiasse a sua saúde e lhe garantisse um final sem dor como só ela sabia fazer.
Ainda hoje procuro entender o motivo por que nada fiz para que o meu pai fosse visto por um médico, conforme ele me pediu insistentemente durante três semanas. Não encontro resposta. Ou prefiro não encontrá-la. Nem que seja por saber que não me é possível voltar atrás para corrigir a agulha do tempo. Creio que não teria descanso se viesse a descobrir o que esteve subjacente à minha atitude. Prefiro passar adiante.
Por vezes, ponho a hipótese de contar a Rute este episódio, a ver se ela, porventura, conseguiria maneira de dar um salto no tempo (mesmo que imaginário) para tentar ainda aquecer o pulso de meu pai, trazendo-o de volta à vida por uns instantes (um regresso fantasioso, uns instantes de ficção) e transmitir-lhe uma chama, uma réstia de luz no fim da caminhada, ela, Rute, que tudo consegue nas mortes, ela que tudo faz para amaciar o momento em que o corpo descola do cais e segue de âncora solta.
Mas não sei se valerá a pena contar a Rute alguma coisa. Porque nem sei se voltarei a pôr-lhe a vista em cima. E mesmo que voltasse a vê-la, a verdade é que sempre que ela me entra pela porta, esqueço tudo…




24


Ao voltar do estrangeiro, Raimundo viu que havia inúmeras coisas diferentes na sua terra. A paisagem era sensivelmente idêntica, mas as pessoas não. Muitas haviam mudado. Pareciam outras, como se tivessem vindo de um país estranho. Estavam diferentes, apesar de os rostos serem os que desde sempre conhecera. As mudanças eram interiores, invisíveis, o que não o impedia de as detectar com relativa facilidade. As faces estavam mais vividas, mais velhas, contudo eram as mesmas, tal como os gestos, as formas de andar, os feitios.
Raimundo ouvia as conversas, os comentários, as trocas de impressões sobre os mais diversos assuntos, só que tinha dificuldade em perceber o seu significado profundo. Era como se houvesse algo por detrás das palavras, como se houvesse uma sombra movediça que ele não alcançava, como se tivesse acontecido alguma coisa que lhe escapava como areia por entre os dedos. Parecia que a sua língua materna era agora falada com sotaque e que as pessoas com quem antes convivia tinham passado a fazer parte de um território que lhe era vedado.
Raimundo residira no estrangeiro e acabara por regressar a outro estrangeiro, um estrangeiro que ainda era mais duro do que o país para onde emigrara, porque agora os desconhecidos eram aqueles ao lado de quem tinha crescido e brincado nos tempos de infância. Agora, os desconhecidos que o rodeavam até falavam a sua língua. Ou, pelo menos, articulavam as sílabas conforme ele sempre as conhecera. E mesmo assim o que diziam era misterioso. Por vezes, entendia uma sílaba ou outra, mas isso não era suficiente para captar o cerne das conversas, dos olhares, dos sorrisos.
Entre o que não mudara no seu país, estava o cheiro da terra, o odor a sal dos telhados. Mas um cheiro não faz o berço de uma nação.
Tudo estava tão alterado na sua terra que Raimundo chegava muitas vezes a pensar que continuava a viver no estrangeiro. Havia alturas em que tinha a sensação de que a qualquer momento daria consigo a entrar no café onde passara muitas das suas madrugadas no estrangeiro. Era uma sensação tão forte que só lhe faltava ver Debby ressuscitar e recebê-lo com aquele sorriso das três da manhã por entre o calor da cafeteira que aquecia as almas ao balcão do estabelecimento.
Raimundo notava que, ao falar, pretendia dizer uma coisa, mas as pessoas pensavam que ele estava a dizer outra. Era uma confusão que o intrigava e inibia. Se antes era pouco sociável, após o seu regresso ainda se tornou mais reservado.
Poucas semanas após ter voltado, Raimundo comentou com um antigo colega que o reconhecera na rua e que lhe perguntara numa grande efusão – És tu? És o Raimundo que andou comigo na escola?... – Raimundo comentou que gostava de rever uma tal Angelina, gostava de saber que era feito dela, que rumo tinha tomado a sua vida. E a sua curiosidade teve tal pontaria que acertou exactamente no homem que era marido dela.
Ao dar-se conta da situação, Raimundo não conseguiu recuperar a naturalidade, recuar, emendar a mão. Apenas balbuciou que só pretendia matar saudades, embora a expressão “matar saudades”, em vez de aliviar o ambiente, o tivesse tornado mais crítico. Palavra atrás de palavra, Raimundo perguntara por Angelina, inocentemente, Angelina saíra-lhe pela boca de forma impensada, quase trivial, e provocara todo aquele embaraço.
Numa terceira tentativa de corrigir o que dissera, procurando recorrer a uma frase que se adequasse mais às circunstâncias, Raimundo afirmou – garantiu de forma convincente – que nunca houvera nada entre ele e Angelina, embora não conseguisse deixar de dizer que mesmo assim o passado deixava sempre marcas.
Perplexo e confuso, o marido de Angelina não sabia que fazer às mãos. Sobretudo, não compreendia a atrapalhação de Raimundo. O que o incomodava não eram tanto as palavras que ouvia, mas a visível intranquilidade do antigo colega.
Não fiques a pensar coisas”, disse Raimundo, sem atinar com a saída do beco em que se metera. E logo a seguir: “Mas se tivesse acontecido alguma coisa, não tinhas nada a ver com isso”, afirmou, dando palmadas nas costas do outro, com a descontracção devida a um antigo colega, rindo muito, rindo desbragada e desusadamente, o que só evidenciava o seu nervosismo.
Nessa altura”, continuou Raimundo, “tínhamos dezasseis anos, éramos irresponsáveis, não sabíamos o que fazíamos. Não digas a Angelina que te falei nisto, se calhar ela já nem se lembra do que aconteceu, se me vir na rua provavelmente nem me cumprimenta. Eu posso ter marcas desse tempo e ela não. Se casou contigo é porque não as tem. No teu lugar, eu ficaria descansado. Tudo o que estive aqui a dizer não interessa, não foi nada disto que se passou, mas não sei como explicar, não sei o que dizer. Quanto mais me justifico, mais me afundo. Que disparate! Não leves a mal, por favor, a culpa foi toda minha, não a culpa do que fizemos antigamente, mas a culpa do que aconteceu agora. Não estou a atinar com nada disto. Não fiques com uma ideia errada de mim, muito menos da tua mulher, pois é com ela que vives e com certeza que ela nunca te deixou mal, nunca te deu razões para desconfiares do seu comportamento. Como já te disse, éramos crianças quando nos conhecemos. Hoje, estás numa idade madura e tens responsabilidades, tens uma família para sustentar. As situações não se podem comparar. Peço-te perdão. Nem sei como se pede perdão. Se Angelina te perguntar alguma coisa, agradeço que não lhe contes esta nossa conversa, não lhe digas que me viste, prefiro que ela não saiba que perguntei por ela. Angelina é boa rapariga (desculpa, hoje já deve ser uma mulher… – é mesmo uma mulher). Como vês, não consigo pôr em palavras o que sinto, por isso, não te ofendas por me ter metido nesta embrulhada. Estive muitos anos fora, já não estou habituado a certas complicações, não sei bem como as coisas funcionam, está tudo diferente. Passei anos a falar outra língua e, agora, sinto dificuldades quando pretendo debater algum assunto mais pessoal, mais fora do comum. Tenho a certeza de que me compreendes, um dia destes havemos de ir jantar…”.
Quando Raimundo falou em jantar foi porque se apercebeu de que já tinha perdido todas as possibilidades de remediar a situação. O marido de Angelina não reagira, mas era evidente que ficara alterado com as explicações atabalhoadas de Raimundo. Não podia ter gostado do que ouvira, nem da forma como o assunto fora abordado. Recordava-se de ter apanhado no ar expressões como “o que aconteceu…”, “só queria matar saudades dela…”, “há coisas que deixam marcas…”, “desculpa esta embrulhada…”, “não fiques com uma ideia errada de mim…” e sentia-se atingido por pedradas a que, por mais que tentasse, não conseguia esquivar-se.
Vieram-lhe à ideia os cenários mais improváveis. Sentiu uma tal revolta que preferiu não responder a Raimundo. Não estava disposto a envolver-se num eventual desacato ou discussão.
Apesar de se sentir confuso e perplexo, o marido de Angelina deu meia volta e afastou-se, deixando Raimundo sozinho no passeio a brandir argumentos que o procuravam convencer do contrário que as suas palavras diziam ou deixavam transparecer.
Dias depois, Raimundo voltou a dar de caras com o homem que era casado com Angelina, mas este apressou-se a mudar para o outro lado da rua antes que Raimundo lhe estendesse a mão e recomeçasse a exposição de uma extensa lista de razões sobre o papel relevante que Angelina desempenhara na sua juventude…
Raimundo não perdeu a compostura. De certa forma, até se sentiu aliviado por não ter que voltar a justificar-se perante o marido de Angelina. Nunca tinha falado tanto de si como no dia em que procurara explicar o inexplicável ao antigo colega de escola. Até ficara com a boca ressequida. E, conforme se vira, o esforço não valera a pena. O problema de Raimundo era não estar habituado a falar de mulheres, nem a lidar com imprevistos. Para ele, tudo era planeado, estudado, calculado. Qualquer surpresa o deixava desnorteado.
No exacto minuto em que o marido de Angelina evitou enfrentá-lo, Raimundo decidiu que, de ora em diante, reduziria ao essencial o seu convívio. A decisão fê-lo sentir-se outro homem. Foi a partir daí que se tornou um verdadeiro solitário. Fugindo às pessoas, Raimundo achava que tudo era mais simples, tudo ficava facilitado. E o assunto do marido de Angelina morria ali. Não queria saber mais dele, nem da mulher. Uma simples amizade de juventude provocara um mal-estar caricato na sua vida. Nunca lhe acontecera nada de semelhante. Nem no estrangeiro, onde era fácil ocorrerem equívocos por uma incorrecta utilização dos termos.
A fim de não subsistirem equívocos e com vista a não alimentar novas confusões, Raimundo habituou-se a acelerar o passo, ainda que arrastado, sempre que saía de casa, para que não reparassem nele, na sua forma de vestir, nas suas ideias, que podiam ser percebidas, receava ele, pelo mais distraído dos transeuntes. Sobretudo, procurava evitar encontros com antigos colegas de escola. Mesmo quando arrastava os pés, apressava a marcha. Para que não o captassem, retratassem, roubassem, com um simples olhar. Um ligeiro movimento de rosto corria o risco de o levar a perder qualquer coisa de seu, qualquer coisa que não identificava, qualquer coisa com peso e significado. Depois do que sucedera com o marido de Angelina, acelerar o passo arrastado tornou-se a sua regra de marcha sempre que ia a algum sítio. E até nos domingos à tarde Estela se via por vezes em dificuldades para o acompanhar, ao ponto de desabafar a meia voz: “Parece que vais pagar fogo!”




25


Na noite em que Rita saiu de casa para ir conhecer o mundo, sentiu que a vibração das cidades a esperava, disse-mo ela ao telefone num dia em que pediu para a chamada ser paga no destino. Sentiu que se podia perder e depois salvar-se. Sentiu-o nessa noite em que saiu de casa e sentiu-o muitas outras vezes. Rita sempre se interessara pela salvação (pela sua e pela dos outros), mas os caminhos através dos quais procurava atingi-la nada tinham a ver com o pensamento que eu lhe conhecia. Só alguém que tivesse assistido ao crescimento de Rita, conforme aconteceu comigo, poderia conhecê-la verdadeiramente. A imagem que dava à maioria das pessoas pouco ou nada tinha a ver com o seu íntimo. Muitas vezes lhe perguntei porque ocultava a sua personalidade por detrás de um espírito aventureiro que não era o seu, mas ainda hoje estou à espera de resposta.
Todavia, não me restam dúvidas de que, se eu responder por ela, não estarei longe da verdade. A atracção pela aventura e pelo risco era uma forma de poupar a sua sensibilidade. Não sendo ela mesma – mas outra – nesta ou naquela situação, Rita acabava por se salvaguardar, por se adiar. Se lhe acontecesse alguma tragédia, algum acidente irreparável, ela poderia sempre sentir-se intocada e alegar perante si mesma que a sua natureza era outra, não aquela que expunha todos os dias. Deste modo, podia experimentar o mundo e, no entanto, sentir-se limpa como no dia em que saiu de casa. Rita achava que só se poderia salvar se tivesse coragem de descer ao inferno que havia no paraíso das cidades.
Pensa bem no que andas a fazer”, dizia-lhe eu ao telefone, numa pilha de nervos, sempre que tinha oportunidade de a chamar à realidade. Embora não imaginasse onde ela se encontrava, tinha receio de que a certa altura ela não estivesse em condições de suportar algum problema, algum imprevisto, alguma surpresa desagradável. Mas o mais normal era eu ainda não ter acabado de pronunciar a última palavra e já ela ter desligado o telefone.
Desde que saíra de casa, muitas das nossas conversas terminavam sem aviso prévio. Rita socorria-se da distância para deixar claro que eu não tinha o direito de me intrometer na sua vida. Mesmo que não o fizesse – como poderia sequer tentá-lo se nem sabia por onde ela andava? – Rita faria sempre tudo para me impedir de manipular os cordelinhos dos seus dias.
Desde muito cedo, ela achara que tinha coisas novas para viver. Estava na sua vez de errar, de não perceber, de descobrir, de cegar, de pensar que havia algo à sua espera, algo que valia a pena. O mundo tinha de passar pelo corpo das pessoas, pelo corpo dos jovens. Só assim os podia modelar, preparar para o sofrimento. Não fossem essas primeiras desilusões e ninguém suportaria a dor indescritível que vem depois.
Rita queria partir e nunca mais me dizer nada sobre a maneira como lidava com o mundo. E fê-lo. Mas eu tinha a certeza de que ela pensava em mim com frequência. Ela só queria ir sempre mais longe, só queria distanciar-se mais e mais, a ver até onde chegaria, a ver onde se localizaria o extremo da existência. Mas quanto mais inacessível fosse a sua viagem, mais perto eu estaria dela, mais facilmente sentiria o seu ritmo cardíaco suspirando por um instante de repouso.
Apesar de não haver laços familiares a unir-nos, a partir de determinada ocasião, passou a ser notório que Rita faria um percurso semelhante ao meu. Ela absorvera a forma como eu via as coisas e solucionava os problemas. Dava a sensação de que herdara o meu testemunho antes de eu lho passar. Por isso, não podíamos continuar na mesma casa. Ela percebeu-o e agiu em conformidade, sem me ter pedido opinião.
Durante muito tempo, não fiz a menor ideia sobre quem continuaria o meu caminho, mas depois acabei por me convencer que Rita se sentara à porta da minha casa e vivera comigo durante doze anos apenas com a finalidade de aprender esse destino.
Da parte de Rita, também não restavam dúvidas de que ela, apesar de não ter consciência disso, vivia como se nas nossas veias corresse o mesmo sangue.
Rita era mais do que minha filha. Quem continua o nosso caminho para a eternidade contribui de certeza para a nossa salvação. Rita tinha essa consciência profunda. Ela expunha-se e feria-se porque sabia que assim tinha de ser, mas, ao mesmo tempo, poupava-se, para que não a traísse o excesso de esforço na corrida desenfreada que fazia. Ela preferia ser outra que não ela, para que, em caso de fracasso, pudesse voltar atrás, por mim, e recomeçar sempre. Fazia tudo por mim. Mesmo quando parecia exactamente o contrário. Não havia prova de maior amor do que esta dedicação intensa à causa da eternidade.
Claro que Rita, optando pela aventura e pelo risco, estava a fazer alguma coisa, estava a fazer muito, pela sua própria vida, mas fazia-o com um grande desapego por ela e pelas coisas que lhe diziam directamente respeito.
Só há duas formas de um amor ser grande: ou quando se faz um trajecto comum ou quando se recebe o testemunho de alguém. Na primeira hipótese, vive-se; na segunda, herda-se.
Assim, pode dizer-se que Rita saiu de casa para ganhar agilidade e experiência na corrida em que eu lhe passaria o testemunho, a fim de não ter hipóteses de fracassar o nosso destino de amor. Ela considerava importante conhecer-se melhor a ela mesma no confronto com gentes e situações desconhecidas. Considerava importante avaliar o seu próprio poder de resistência e de aceleração, para o utilizar nos momentos decisivos de uma corrida que só se efectua uma vez.
Não sendo ela mesma, expondo-se sob outras facetas, Rita tinha ainda hipóteses de, eventualmente, dar a mão a alguém em dificuldades. Envolvia-se em situações estranhas para aumentar as suas hipóteses.
Havia momentos em que ela me contava certas coisas, numa clara tentativa de me chocar ou de, pelo menos, me surpreender. E como eu sabia que essa era a sua intenção, fazia-lhe a vontade, dando mostras de apreensão e perplexidade. Por vezes, não escondia mesmo a comoção. Do outro lado da linha, Rita perguntava-me se eu estava a chorar. A minha resposta era sempre negativa. Não queria que ela soubesse do enorme poder que exercia sobre mim. Se eu lhe contasse tudo o que sentia, era bem capaz de fazer as malas e regressar. Mas eu não queria ser um obstáculo à sua liberdade. Não era capaz de conviver com a ideia de Rita estar em casa comigo só porque eu não conseguia viver sem ela. Preferia morrer a contribuir para que um dia ela desconfiasse disso. Também me apavorava que ela assistisse ao meu envelhecimento. Não é por acaso que as pessoas se isolam à medida que vão avançando na idade. A velhice é uma despedida longa. Como suportar a ideia de conviver todos os dias com alguém que sabemos estar à espera de nos ver partir? É dor a mais, emoção a mais. Não se pode chorar todos os dias, a toda a hora. Seria demasiada perturbação, demasiada habituação à morte. E esta não permite que nos acostumemos a ela, para que os efeitos da sua acção sejam inultrapassáveis, irremediáveis.
Quando pressentimos que estamos perto de partir, afastamo-nos das coisas e das pessoas, prescindimos do que nos rodeia. Com Rita, não tive necessidade de o fazer porque ela vivia longe de mim. Rita tivera a preocupação de se antecipar à minha velhice, saindo de casa a tempo de não me ver sucumbir às golpadas do tempo.
Quando a idade atingiu um ponto em que eu já mal conseguia dar meia dúzia de passos sem me agarrar aos móveis, não disse nada a Rita. Não quis que soubesse o que se passava comigo. Para ela, eu era apenas uma voz ao telefone, era apenas um breve ruído na memória.
Rita parava pouco no mesmo sítio. Era como se residir por muito tempo numa mesma cidade a fizesse correr o risco de ser encontrada, apanhada, recambiada. Nunca me disse onde vivia, mas dizia-me quando mudava de um lugar para outro, como se pretendesse aguçar a minha imaginação, o meu desejo de a ver, de a perseguir. Penso que, no fundo, teve sempre receio de que eu a descobrisse e trouxesse de volta a casa. Apesar de saber que sendo ela adulta eu não tinha quaisquer poderes – muito menos jurídicos – sobre a sua vida.
Contudo, Rita parecia viver com a ideia fixa de que eu era capaz de recorrer a meios menos ortodoxos para a ter de volta. Falámos várias vezes sobre essa possibilidade ao telefone:
Não quero que me vejas!”, dizia ela, como se tivesse qualquer ferida visível a esconder, qualquer trauma físico.
Mas eu preciso de te ver. Para mim, é importante pôr-te os olhos em cima nem que seja por umas horas. Depois, prometo não te chatear mais”, replicava eu, embora com poucas esperanças de que ela me fizesse a vontade.
Já me tiveste doze anos, já me educaste, já me viste crescer, já fizeste muito por mim. Agora, quero viver sozinha, quero continuar a descobrir o mundo sem ninguém me dizer para fazer assim ou fazer assado!”
Acho estranho dizeres isso…”
Livra-te de me apareceres pela frente! Livra-te de mandar alguém à minha procura!”
Está descansada que não o farei…”
Não sei… Tenho medo quando te mostras tolerante.”
Alguma vez te contrariei em coisas fundamentais na vida? Um dia, arrepender-te-ás do que me estás a fazer. Mas, nessa altura, será tarde demais.”
Não me venhas com ameaças! Sabes que gosto muito de ti, mas não quero tornar-me dependente.”
Essa é a tua desculpa. Se nunca dependeste de mim, não era agora que isso ia acontecer.”
Rita estava sempre pronta a enfrentar-me como se desde que saíra de casa tivesse tomado consciência de coisas que eu lhe ocultara.
A sua mudança foi repentina. Até aos dezasseis anos, nunca me causou qualquer embaraço. Falávamos de todos os assuntos sem inibições, ríamos, desabafávamos, trocávamos opiniões. Eu gostava de lhe colocar as minhas dúvidas, mesmo quando sabia que ela não estava preparada para mas esclarecer; e ela demonstrava interesse em partilhar comigo algumas das suas ilusões, mesmo quando sabia que eu já não as alimentava.
Durante doze anos, a nossa vida foi um quase encantamento. Por isso me custou tanto aceitar que ela tivesse desaparecido sem deixar rasto.
Nos últimos tempos, Rita não me tem praticamente telefonado. É como se adivinhasse qualquer coisa, como se receasse que eu parta numa altura em que esteja comigo ao telefone.
Por seu lado, Rute parece ir pelo mesmo caminho. Não há maneira de me visitar. Por vezes, até parece que as duas terão combinado entre si deixarem-me entregue à minha sorte, deixarem-me gerir sem ajuda o tempo que me resta de vida. Não creio que pretendam ver-me ao abandono, mas a verdade é que não tenho tido notícias delas.
Passo os dias de cama, lendo ou entretendo-me com corridas de automóveis sobre as pequenas elevações do lençol. Não tenho para onde fugir, ou isolar-me, sinal de que me falta pouco para enfrentar o momento decisivo.
Rita sabe de Rute e Rute sabe de Rita, embora não se conheçam pessoalmente. Quanto menor é a assiduidade com que Rute me visita, menor é a frequência dos telefonemas de Rita. É como se ambas tivessem feito um pacto sobre a minha vida. Como se fizessem marcação cerrada à distância do leito onde espero a minha hora.




26


Só não se podia dizer que Rute e Rita eram a mesma pessoa porque Rita não tinha a beleza física de Rute. Nem tinha o sorriso. E as idades eram bastante diferentes. Para além destes aspectos decisivos, Rute tinha aparecido na minha vida não muito tempo depois de Rita ter desaparecido. A minha ligação com Rita fora intensa durante a dúzia de anos em que partilháramos a casa e sofrera uma transformação drástica com a sua fuga, ao passo que a ligação a Rute era efémera e pontual, ainda que prolongada num tempo que ultrapassava a nossa medida específica e concreta.
Rita aparecera e desaparecera sem se fazer anunciar, enquanto Rute surgira espontaneamente no compasso dos dias, sendo certo que a sua presença continuaria mesmo depois de eu partir. Rute era a permanência e a segurança, enquanto Rita era o risco e a incerteza. Em Rute, o comando residia no espírito, ao passo que em Rita residia no palpável, no imediato de um telefonema ou de uma discussão acalorada em que o medo geralmente decidia o destino do minuto a seguir. O meu medo era perdê-la, enquanto o medo dela era o desconhecido que a esperava longe de casa. O destino de Rita foi sempre longe de casa, onde residiam os seus velhos temores. Foi-o no dia em que me bateu à porta e foi-o no dia em que abalou ao encontro da dúvida para um país sem regresso.
Rita partiu com a roupa que tinha no corpo, como se para evitar que eu a localizasse através do cheiro de alguma peça de vestuário ou através da sombra de um qualquer objecto pessoal. Deixou tudo para se ver livre de mim. Nem esperou pela segunda-feira para se despedir dos amigos de escola.
Foi num sábado à noite que ela não voltou. Saiu como se nada fosse, para ir dar uns passos de dança com gente da sua idade, mas quando dei pelo que estava a acontecer já era tarde para a apanhar, já a tinha deixado sumir.
Sei que chegou sozinha ao estrangeiro, depois de ter sido vista na fronteira em companhia de alguém com quem terá entabulado conversa na viagem e que não se terá atrevido a seguir.
Rita não consentia colagens fáceis. Admitia aproximações, diálogos fúteis, troca de dados que pudessem vir a revelar-se importantes para os seus objectivos, mas acabava por se afastar na primeira oportunidade. Assim procedeu comigo ao fim de uma dúzia de anos, quando eu já não previa que fosse capaz de me deixar, muito menos sem um motivo explícito, sem uma explicação plausível.
Minutos antes de sair do país, quando se encontrava na fila de espera para o guiché onde exibiria o passaporte, Rita ainda fez uma tentativa de ligação para uma amiga, mas, ao que me disseram, a comunicação não durou mais do que uns breves segundos. O seu passado esvaía-se por entre uma turbulência de fios que apagava as vozes, os rumores.
As lágrimas não faziam parte dos dias de Rita. A impressão que ficava era de que, num dado momento da vida, tinha chorado tudo e que tudo fizera daí em diante para não repetir a experiência. No fundo, Rita fugia das lágrimas. Viveu em minha casa enquanto julgou possível resistir ao peso que transportava dentro de si e depois pôs-se em fuga, para que a dor não voltasse a demoli-la. Se na hora da partida não se despediu de ninguém foi ainda para evitar a mágoa. Rita passou a vida a fugir do sofrimento.
Embora a barreira da intimidade estivesse claramente definida entre nós durante o tempo em que vivemos na mesma casa, eu não deixava de constituir uma ameaça ao seu território. A minha presença devia recordar-lhe a imagem dos pais e isso ter-se-á tornado insuportável para ela.
Em criança, quando eu lhe dava banho, esfregando-lhe o corpo macio, sentia que ela não me dava a liberdade que teria dado àqueles que a conceberam e puseram no mundo. Rita esquivava-se, retraía-se, como se temesse que eu lhe fizesse algum mal. Não fugia propriamente das minhas mãos, mas media-as com os olhos, estudava-lhes os movimentos, parecendo rezar para que eu não fosse mais longe nos gestos. Era evidente que esse receio só podia ter origem nos primeiros tempos da sua existência, numa idade em que eu não a conhecia, num tempo em que tinham sido os pais a tomar conta dela. Nunca me contou o que se terá passado, jamais me revelou uma vírgula dos seus primeiros anos de vida, fazendo que todos os meus gestos parecessem antinaturais, calculados, obscenos.
Rita manteve uma postura de alerta pelos anos fora, como se insistisse em ter os olhos abertos durante vinte e quatro horas por dia.
À noite, por vezes, eu entrava no seu quarto, para a observar enquanto repousava, mas recuava depois dos primeiros passos com a nítida sensação de que, embora dormindo, ela vigiava as minhas intenções. Desde o dia em que se sentara à porta de minha casa na esperança de que eu lhe desse abrigo, Rita sempre estivera perdida para mim. Por maior que fosse o meu amor por ela, era um amor desencontrado, desfasado.
Porém, só mais tarde o compreendi, só doze anos depois, no primeiro telefonema que ela me fez depois de ter saído de casa:
Sabes onde estou?”, indagou, com um tom sobranceiro na voz, um tom de vitória no qual se podia adivinhar, pressentir, uma réstia de amargura. Ao ouvi-la, ao estabelecer contacto com o eco das suas palavras, como num rasgo de lucidez, entendi por fim as razões que a tinham levado a deixar-me. Senti-me definhar, desintegrar. E apeteceu-me descansar a cabeça no ombro de alguém desconhecido, descansar apenas a cabeça, sem justificar nada, sem pestanejar, só para esquecer aquele passado que assim me entrava de rompante no presente, amolgando-o, despedaçando-o, atrofiando-o, assustando-o de uma maneira que só o futuro tinha artes de conseguir.
Rute, a bela, não teve necessidade de fugir para se ver livre de mim. O lugar de Rute era o meu, ainda que eu nada devesse à beleza. Não tínhamos de morar na mesma casa para ocuparmos a mesma dimensão, nem tínhamos de manter qualquer relacionamento definido para saber quanto nos unia.
Na família de Rute, a solidez das raízes foi de tal ordem que nenhum dos filhos sentiu necessidade de deixar o lar para encetar uma nova vida.
Rute vivia sozinha num apartamento seu, enquanto os irmãos, depois de muito requisitados para diversos e apelativos namoros com as raparigas mais atraentes, optaram por viver juntos na casa dos pais. Certa vez, haviam ficado a dormir casualmente na mesma cama, numa noite de cansaço, de abatimento profundo, de completa exaustão e, a dado instante, durante o sono, num sobressalto de madrugada, a mão de um deles avançou por baixo dos lençóis, apalpou e penetrou através da abertura das calças de pijama do que dormia a seu lado e só se deteve quando sentiu os cinco dedos da mão realizados e felizes. Depois da hesitação inicial causada pela surpresa, a mão decidiu que não recuaria e, fingindo que dormia, fingindo a excitação de um sonho inaudito, completou a tarefa que a natureza impunha. Passado pouco tempo, o furor dos corpos tomou conta dos lençóis e os dois irmãos entregaram-se um ao outro de corpo e alma, como se aquele fosse um momento há muito esperado. Quando já não era possível continuarem a fingir que dormiam, os rapazes passaram a simular perante si mesmos que não se conheciam, que aquela era a primeira vez que se viam, tocavam, encontravam, uma encenação que os deixou vergados à imensidão do prazer.
Os irmãos de Rute nunca mais quiseram estar sexualmente com outras pessoas. Sentiam que se bastavam a si mesmos. O sexo durante o sono revelara-se um afrodisíaco sem igual, um prazer superior. Quem o descobre, seja com quem for, desconhecido ou próximo, nunca mais se liberta das suas inebriantes grilhetas.
Ao acordarem na manhã seguinte, os irmãos de Rute perceberam que lhes restavam dois caminhos: ou nunca mais se verem para não suportarem o peso do que lhes acontecera ou ficarem a viver juntos para sempre.
Decidiram pela segunda via. A separação seria uma crueldade. Uma quase impossibilidade. Os irmãos de Rute eram praticamente a mesma pessoa, tinham as mãos unidas por um esperma de idêntico sabor silvestre e com origem no mesmo sangue. Cortaram ambos o cabelo rente, passaram a vestir roupas semelhantes.
Até ao dia em que se encontraram sexualmente, sentiram que tinham vivido na penumbra do coração. Depois da descoberta, da entrega, tornaram-se capazes do impensável: as suas fraquezas viraram forças, os seus problemas transformaram-se em vantagens.
Passaram a dormir no mesmo quarto, todos os dias, como um casal. O assunto foi discutido em família e os pais aceitaram a situação sem objecções, ainda que de forma pouco explícita. Preferiam ter os filhos perto deles do que tê-los longe, desconhecendo por onde andavam.
Rute falou-me sempre da família de forma desinibida e confessou-me que foi a partir da altura em que os irmãos passaram a viver maritalmente que o sorriso nunca mais deixou os seus lábios, tornando ostensiva a sua boa disposição, como se a felicidade dos seus tivesse passado a fazer parte de todos os minutos que a preenchiam. Foi nesse tempo, também, que decidiu viver sozinha.
Se Rute fosse homem, era bem capaz de ter ficado a coabitar com os irmãos. Os três fariam uma vida perfeita. Sendo mulher, porém, Rute sentiu-se excluída de uma relação que não admitia diferenças. Se tivesse uma irmã, talvez optasse por viver com ela. A beleza de Rute e dos irmãos era tão sublime que não admitia interferências do exterior.
Rute ficou aprisionada no seu mundo de solidão, mas sempre que me visitava havia qualquer coisa nela que a transcendia.
Certa vez, apanhou uma grande chuvada por não ter tido facilidade em encontrar sítio para estacionar o carro e procurou abrigo em minha casa. Não tínhamos o hábito de grandes intimidades físicas, mas naquele dia vi-me na necessidade de a convencer a vestir o meu roupão para que eu tivesse oportunidade de pôr suas vestes a secar.
Inicialmente, Rute disse que não se justificava, como se surpreendida por eu lhe disponibilizar uma das minhas peças de vestuário, mas acabou por ceder, nem que fosse para evitar o risco de uma constipação.
Quando a vi sair da casa de banho coberta apenas pelo meu roupão, senti que estava perante a realização de um sonho maior. Durante breves segundos, ousei alimentar a ilusão de que Rute se preparava para se estender a meu lado na cama. Foram os segundos mais vibrantes de que me lembro. Pensar na simples hipótese de Rute partilhar os meus lençóis era quase tão gratificante como cair numa realidade em que isso verdadeiramente acontecesse.
Vendo que eu me deslocara à cozinha, Rute ousou sentar-se na beira do meu colchão, como se estivesse animada do mesmo delírio que eu. Mas quando me viu de volta ao quarto de dormir, levantou-se prontamente, numa reacção sem dúvida precipitada cujo objectivo era evitar que eu captasse os seus íntimos devaneios.
Quer que lhe leia alguma coisa?”, perguntou a despropósito e sem ter tempo de dissimular a sua repentina falta de à vontade, até porque a leitura não era um hábito no nosso relacionamento.
Limitei-me a olhá-la, sem necessidade de esconder o meu deslumbre: Rute estava soberba, sob o meu roupão, tanto mais bela quanto mais insegura se sentia, como se tivesse acabado de entrar num corpo que não era o dela, um corpo que conhecia, que lhe era próximo, mas, ao mesmo tempo, estranho.
Eu estava num tal estado de transe que praticamente não me apercebia da distinção entre o corpo de Rute e o meu. Ao vê-la no meu roupão, fiquei com a sensação de ser eu, e não ela, quem eu observava, na verdade. Foi um momento de singular projecção, um momento de alienação como antes nunca tinha experimentado.
Rute deslocava-se no quarto e eu sentia a pressão do seu andamento nas minhas pernas de músculos retesados. Ela olhava-me e eu ficava com a nítida impressão de me analisar com os meus próprios olhos, algures fora de mim.
A dado instante, quando me preparava para dizer o nome dela, percebi que os meus lábios se limitavam a proferir um som, uma sílaba. Não diziam Rute, mas sim Lis. Lis de Elisabete? Lis de Lisa? Lis de Lisandro? Lis de quê? Lis de que nome…, de que memória? Digo “Lis” como quem imagina a palavra, como quem a murmura, e ao fazê-lo sei que ninguém calcula o sofrimento que a expressão contém. Todas as palavras doem, todos os nomes pesam, amarguram, incomodam. O termo “Lis” não é excepção. E dói mais porque encerra em si a dimensão de dois mundos. A minha incapacidade de me identificar, de me reconhecer, torna mais doloroso o nome por que me chamam. “Lis” é nome de ninguém, nome de vento, nome de cinza. Os nomes sintetizam o sofrimento. São pequenos relicários onde a dor se esconde, se anicha, se resume. Um nome significa perder um filho, a família, a fortuna, as regalias. Significa ficar sem nada que nos recorde no mundo. Ter um nome é ser incompreendido, ser desamado, não ter destino. Ter um nome é ser esbofeteado, espancado, vergastado, açoitado. É perder a liberdade, é ser encurralado, é não ser. “Lis” não quer dizer nada, mas quer dizer tudo. “Lis” é a chave de mim, é a porta de entrada no meu corpo, é a janela da qual alguém desviou as cortinas para que me vejam. “Lis” dói tanto que nem consigo andar.
O meu cheiro era o cheiro de Rute que inundava o roupão que eu habitualmente envergava. A minha respiração era a respiração dela. Creio que a própria Rute se terá apercebido do que se passava, porque a vi retraída, confusa, perplexa.
Para mim, contudo, aquele era o momento mais natural e completo que eu já vivera com ela. Sempre me dera conta de que a nossa união se revelaria, só nunca adivinhara que tal sucederia a pretexto de uma insignificante peça de vestuário.
Apetecia-me falar, dizer coisas sem nexo, mas nem conseguia que as palavras me saíssem da boca. Não pela surpresa, mas pela felicidade. Eu queria estar naquele momento em toda a sua intensidade e sabia que ao pronunciar qualquer palavra corria o risco de fazer desmoronar tudo.
De tanto olhar Rute no meu roupão, vi uma luz envolvê-la, uma ausência completa de sombra, que a tornava mais leve, mais apetecível, quase incorpórea.
Fiz-lhe um gesto com a mão para que se aproximasse, para que eu pudesse ter a oportunidade de a tocar, mas a sua reacção foi no sentido oposto ao do meu pedido.
Receosa de cair numa vertigem da qual se não pudesse libertar, Rute afastava-se de mim em bicos de pés, ameaçando levantar voo, sorrindo, de olhos brilhantes e dizendo-me coisas silenciosas por entre o subtil movimento dos lábios, um movimento oposto ao que havia de fazer, um dia, quando me assistisse no momento de partir.
De repente, Rute parecia Rita, escapando-se, fugindo para longe, desaparecendo na poalha da claridade que vinha da janela. Se o telefone tocasse naquele instante, ou se alguém tocasse na campainha da porta, eu pensaria que Rita se tinha acabado de materializar através de um inexplicável fenómeno tecnológico.
Ao ser absorvida pelo meu roupão, Rute tornava-se outra pessoa, outro ser; tornava-se mais humana, mais tangível, mais previsível. Com o meu roupão, Rute tornava-se Lis – tornava-se eu – e depois tornava-se Rita. Perigosamente eu, perigosamente Rita.
Que se tornasse Lis ainda lá vai, ainda se tolerava. Que se tornasse Rita é que nunca. Quase gritei para impedir que Rute se esfumasse, desaparecendo da minha vista para sempre.
Não!!”, ouvi-me dizer, ouvi-me gritar, fazendo Rute abrir os olhos de espanto para saber o que se passava.
Nada”, respondi-lhe. “Não se passa nada. A sua roupa já deve estar seca”.
Enquanto o dizia, dirigi-me à máquina de secar que ficava num compartimento ao lado da cozinha e voltei para junto de Rute entregando-lhe o roupão. Ela foi para a casa de banho mudar de indumentária e, quando voltou, já recuperara o aspecto da Rute de sempre, da outra Rute, a verdadeira, a que vivia fora do meu corpo, a bela, a insuperavelmente bela.




27


Será que me enganei no número de telefone e em vez de telefonar para o hospital telefonei para um restaurante ou para uma igreja? É estranho que uma ambulância se esqueça de um doente que pede ajuda. Terão pensado que o meu telefonema era brincadeira ou farsa? Terão posto a hipótese de eu me estar a divertir? Não deveriam confirmar a veracidade das chamadas que recebem antes de se porem a caminho? Terá ocorrido um acidente com a ambulância que me era destinada? Neste caso, porém, não deviam tê-la substituído por outra? Haveria falta de pessoal no departamento de emergência hospitalar?
Eu não sabia o que pensar. Ouvia-se dizer tanta coisa, havia tantas notícias sobre a ineficácia dos serviços de saúde que o melhor era nem encontrar resposta para as minhas dúvidas.
Talvez seja melhor recuar uns anos. Enquanto espero, faço pelo menos alguma coisa de válido. Recordar é uma maneira de fugir, de me entreter.
Coloco a mão sobre uma dobra do lençol, estico dois dedos e arranco a toda a velocidade pelo tempo fora, sem querer saber de perigos nem de imprevistos nas curvas que fazem da minha cama uma aventura sem igual. Sou eu que vou no carro dos meus dedos, buzinando e roncando até ao entardecer da minha infância.
Chego, olho em volta, encontro tudo na mesma. Percebo as diferenças, mas preciso que tudo esteja igual ao que era para me posicionar com exactidão na lembrança do que pretendo contar.
Quando eu era criança, o mundo resumia-se ao percurso entre a casa dos meus pais e a escola que eu frequentava. Durante anos, fiz aquele caminho, consciente de que não havia outros mundos, nem sequer outro destino para além do que ligava a casa onde eu nascera ao estabelecimento de ensino que era obrigado a frequentar.
Não havia o risco de eu me perder. Deixavam-me, por isso, andar em liberdade. O trajecto era constituído apenas por uma rua, uma praça e uma outra rua, onde ficava a escola. Era esse o percurso que eu fazia todos os dias. Os outros caminhos, que eu vislumbrava à distância, os que ficavam ao lado, já pertenciam a outro universo, já me eram estranhos, já me ignoravam. Limitava-me a olhá-los de longe, temendo-os, evitando-os.
Quando ia para a escola, eu caminhava por entre casas cinzentas tombadas sob o nevoeiro, sob a neblina. Mesmo quando fazia sol, havia sempre no ar uma espessa camada de ar branco, um chapéu de névoa, que me atemorizava e me seduzia, e que, por isso, me fazia caminhar indiferente ao que pudesse acontecer. A minha função era caminhar apenas. Caminhar sempre, até ao fim dos tempos. Caminhar para a escola como quem vai para sítio nenhum, como quem põe simplesmente um pé fora de casa na esperança de percorrer todos os países.
Eu tinha a certeza de que o que me podia acontecer de pior era apanhar uma trovoada ou uma tempestade por entre enormes chuvadas que encharcavam os dias de lama e isso era suficiente para me fazer vibrar com tudo o que me rodeava.
O mau tempo não me impedia de ir à escola, onde encontrava os colegas que não se cansavam de invejar o urso, o rechonchudo urso, que os meus pais me tinham dado de presente pelo meu oitavo aniversário.
Todos os dias eu levava o urso para a escola. Havia quem dissesse que eu já não tinha idade para brinquedos daqueles, o que me incomodava, mas nem assim eu desistia da minha vocação. O urso era a vocação que me preenchia. Não sabia o que fazer com ela – vocação – mas nada mais podia explicar o meu profundo elo a um objecto tão insignificante.
Certo dia, quando fui buscar o urso que costumava ficar guardado no bengaleiro da escola, verifiquei que lhe tinha acontecido qualquer coisa, qualquer coisa de estranho. Metia-se pelos olhos dentro. Só que eu não me atrevia a verificar. Temia que fosse superior às minhas forças. Não consegui tocar no urso, antes de saber o que realmente se passara. Dei um grito e vieram logo duas colegas até junto de mim, perguntando se eu estava bem, se me ferira, se me assustara.
Fui incapaz de falar. Limitei-me a apontar na direcção do meu urso, que estava caído no chão, de barriga para baixo. Foi uma colega que o levantou e mo entregou. E só nessa altura tive consciência plena da realidade: tinham-lhe arrancado os dois olhos! Os dois. Os olhos não haviam caído por si. Haviam sido barbaramente arrancados. Tão barbaramente como se o acto tivesse sido cometido sobre uma pessoa. Foi o que senti. Era a única explicação plausível para um acto tão vil. Quem arrancara os olhos ao meu urso quisera, sim, fazer de mim a sua vítima. E só se atirara ao urso porque sabia que se se atirasse a mim as consequências seriam bem mais graves. Não que eu soubesse defender-me. Era apenas a lei que o ditava. Eu sentia um tal atordoamento pelo que tinham feito ao meu urso que até achava injusta a lei que cavava uma diferença tão funda entre um peluche e um humano. Um peluche também tinha direitos, que deviam ser reconhecidos, sobretudo quando eram estúpida e arbitrariamente violados.
O bengaleiro onde eu tinha por regra guardar o meu urso ficava no corredor que dava acesso aos sanitários e o mais certo era alguém ter aproveitado uma ida à casa de banho para lhe arrancar os olhos, como se ele visse demais e a sua visão fosse um perigo para a humanidade instalada.
Foi um acto de vingança, de despeito. Eu tinha uma ideia vaga de alguém me ter pedido o urso emprestado e de eu me ter negado a fazê-lo. Lembrei-me logo que devia ter sido esse colega que resolvera retaliar nos olhos do meu pobre peluche.
Recordava-me de o ter visto levantar-se da carteira e pedir licença para se ausentar, e creio que ainda apanhei o seu olhar de viés na minha direcção. Mas nunca desconfiei de nada. Nunca percebi o alcance que o ódio podia cavar na sua pequena alma.
No dia em que o meu urso perdeu os olhos foi como se o futuro tivesse desabado sobre a minha cabeça. Era como se eu já não pudesse ter amanhã, como se já não tivesse hipóteses de fazer alguma coisa de mim. Ter vocação era alimentar uma esperança e perder a esperança era deixar ruir essa vocação.
Peguei no urso, acarinhei-o, confortando-o na dor, que eu tinha a certeza de ele sentir, e finalmente tive coragem para lhe mirar os buracos fundos dos olhos. Não me apetecia chorar. Se o fizesse, pensava eu, o drama seria bastante maior, seria como se o urso perdesse os olhos pela segunda vez.
Mas a minha aflição também era por causa dos meus pais. Eu receava que eles achassem que eu não fora capaz de tomar conta do urso que eles me tinham dado de oferta. Poderiam pensar que eu me descuidara, que não apreciara suficientemente a sua prenda, que porventura até colaborara no acto de vandalismo.
Como lhes iria explicar o que acontecera? Com que cara? Se chorasse, podiam achar que era fingimento. Se não chorasse, considerariam certamente que eu não me importava com o que tinham feito ao urso. Eu estava entre a espada e a parede. Tinha que encontrar uma saída.
Pensei pedir à professora que fosse a minha casa explicar o sucedido, mas depois fiz contas e concluí que por essa via a tragédia pareceria muito maior. Nem que fosse apenas pela presença da professora. O ideal seria não dramatizar.
Apressei-me a guardar os olhos do urso no bolso da bata, a fim de mais tarde tentar colá-los com os meus próprios meios. Colá-los como se se tratasse dos meus próprios olhos. Guardei-os com um sentimento de consolo que era estranho à noção de orfandade que se apoderara de mim na ocasião em que me dei conta do que tinham feito ao meu urso.
O autor do ataque nunca foi identificado. Penso que se o encontrasse hoje continuaria a não encará-lo com bons olhos. E talvez lhe pedisse contas. Pelo menos, pediria um esclarecimento, embora o mais provável fosse ele já nem se lembrar do que fizera.
Não sei a que propósito veio esta recordação do urso. Ah, foi a propósito das tempestades e do mau tempo que muitas vezes me acompanhavam a caminho da escola. Pois, as tempestades, as ventanias e as chuvadas que enchiam as tardes de pedras no céu e de trovoadas contra as chaminés das casas.
Nos dias de chuva, a água castanha corria pelas valetas, onde eu costumava mergulhar os pés, sem tirar meias nem sapatos, sentindo que estava dentro do único rio do mundo, o maior rio do mundo. Chegava a casa com os pés molhados, mas sabia que não me repreenderiam por isso. Os meus pais sempre foram de uma grande tolerância comigo. Eram o meu grande conforto, a grande segurança de que eu necessitava. A água podia correr nas valetas as vezes que quisesse que nada mais me interessava, desde que tudo estivesse bem com os meus pais. Havia mais mundos, mas eu limitava-me ao mundo da família e das tempestades na rua que tinha de percorrer para ir de casa para a escola e da escola para casa.
Num dia em que as valetas transbordavam de água barrenta de uma chuvada enorme, a tragédia escolheu-me para motivo do seu escárnio. Depois de terem tirado os olhos ao meu urso, faltava fazerem qualquer coisa comigo. Não me arrancariam os olhos, de certeza, mas fariam qualquer coisa que simbolizasse quanto me odiavam e desprezavam. Escolheram a valeta para me atirar para dentro dela. Veio por trás de mim uma colega, que me acompanhava com frequência a caminho de casa, e que me empurrou, fazendo-me cair na água desamparadamente.
Aconteceu de súbito. De súbito, vi tudo cinzento, tudo neblina em redor, tudo casas desmoronando-se. Num rasgo de lucidez defensiva, procurei verificar se conseguia tocar no chão com os pés, para não me afundar, procurei manter a cabeça fora de água, enquanto um sem número de raparigas e rapazes ria aos berros com a minha figura encharcada dentro da valeta.
Os seus risos e a sua chacota molharam-me mais do que a água. Apeteceu-me desaparecer rio abaixo, apeteceu-me que as águas me levassem como um urso de olhos arrancados. Apeteceu-me não regressar.
A partir daquele dia, deixei de sentir que era igual às crianças da minha idade. Ter caído nas águas lamacentas de um esgoto passou a ser o meu estigma, a minha dor funda, a minha diferença, que mais tarde veio a pesar na minha identidade. Ou será que a minha dúbia natureza sexual é que criou condições para que me empurrassem para a valeta? Nunca o saberei. Pode parecer que a vida sexual de uma pessoa nada tem a ver com as suas quedas em valetas a abarrotar de lama, mas não tenho dúvidas do contrário.
Cheguei a casa já noite escura, sem precisar de justificar o meu atraso. O que me acontecera metia-se pelos olhos dentro. Ao verem a minha figura encharcada, os meus pais quiseram saber o que se tinha passado. Não encontrei palavras para lhes responder. Limitei-me a uns gaguejos, de olhos no chão e cabelo sobre a fronte.
Até parece que acabaste de sair do duche”, disse a minha mãe, enquanto o meu pai perguntou com um ar irónico se eu tivera aula de natação. Em cada palavra que ele proferia eu vislumbrava a sua condenação por eu ter deixado que arrancassem os olhos ao urso. Como se eu fosse um urso, como se eu merecesse aquele castigo. Eu sabia que eles não me condenavam, mas era incapaz de me libertar das palavras, mesmo de consolo e apoio, que me dirigiam. Quanto mais compreensivos eram os meus pais, mais eu achava que os não merecia. Em mim, havia alguma coisa que provocava repulsa. Por isso, tinham tirado os olhos ao meu urso, por isso me tinham atirado para a lama da valeta.




28


Quando Raimundo regressou do estrangeiro, nem eu escapei à amargura do seu juízo. Eu que nunca vivera fora do meu canto nem do meu país e que não fazia ideia do que era adormecer numa casa sem pontos cardeais.
Quando te reencontrei, não consegui olhar-te da mesma forma”, confessou-me, ele, um dia. “Parecia-me impossível que nunca tivesses viajado. Por qualquer razão, pensei que também tinhas acabado de chegar, que andavas por aí sem saber o que fazer. Deixei-me iludir pelos anos que vivemos separados. Não sabia se te tinha acontecido alguma coisa…”.
Em relação a ele, eu sentia de forma idêntica. Desconhecia se Raimundo era outro ou se era o mesmo. Havia essa dúvida para esclarecer entre nós, o que me bastava para evitar que eu me afastasse dele.
Durante anos, não faltou quem insinuasse que eu tinha interesses na amizade com Raimundo, apesar da nossa diferença de idades, mas não me deixei influenciar por esses rumores, ainda que sempre me tivesse parecido que ele mantinha comigo um relacionamento de ligeiro alerta, o que só aumentava a minha curiosidade.
Via-se que, mesmo quando falava pouco, procurava permanentemente afastar qualquer dúvida que pudesse instalar-se entre nós, como quem sacode uma mosca que não pára de esvoaçar à sua volta. Eu apreciava esse esforço da parte dele, mas nem isso me impedia de tentar adivinhar o que lhe ia na alma. Era natural que ele guardasse espaço para alguma ambiguidade, uma postura que contribuía para justificar o nosso relacionamento.
Depois do seu regresso, quando eu o encarava, por vezes, parecia-me que ele receava que eu lhe pedisse dinheiro. Não que eu fosse particularmente materialista, e ele conhecia-me bem, mas como eu vivia sempre a contar os tostões, era natural que mais dia menos dia não resistisse ao gesto de lhe estender a mão. Como tal nunca aconteceu, Raimundo não recuou perante mim. Tenho a certeza de que foi só por isso que me continuou a abrir a porta de sua casa.
Na terra onde Raimundo nascera não nevava como no Canadá, onde estivera emigrado, mas havia dias em que ele saía de casa com o rosto gelado como se tivesse toneladas de neve sobre a cabeça. Ficava branco só de pensar nas pessoas que encontraria no trajecto entre a garagem situada na cave da sede das suas empresas e o escritório onde trabalhava. Sentia-se gelar só de imaginar que se ririam dele, que o considerariam tolo por não se dar com ninguém, que o teriam na conta de um caso atípico, com aquela sua forma de arrastar os pés.
No Canadá, se não falasse com as pessoas, se não convivesse, se não sociabilizasse, ninguém lhe estranharia a postura. Mas no seu país não havia justificação para um comportamento tão reservado. O que transparecia era que nunca seria compreendido, mesmo que um dia viesse a despejar a alma na praça pública.
Muitas vezes, quando a sua terra parecia desdenhá-lo mais, pensava nos tempos em que, alta madrugada, no Canadá, saía de casa para ir ver passar o tempo nas ruas escuras e frias, como se estivesse à espera de alguém. Consolava-o a ficção de esperar por alguém que não só nunca viria, como nem sequer existia. A não existência tinha o seu quê de misterioso e de atraente. Era a grande liberdade que lhe permitiam viver.
Nesse tempo e nesse país, ninguém o conhecia, ninguém o olhava, ninguém lhe ligava, o que fazia que se sentisse livre. Só, mas livre. Agora, que voltara ao berço, sentia-se vigiado. E sem ninguém.
Nem sequer no escritório da sua empresa, onde teimava em aparecer todos os dias, Raimundo se sentia bem consigo e com os outros. Os erros enervavam-no, as inconveniências perturbavam-no, os atrasos irritavam-no. Havia alturas em que não queria ver nem ouvir vivalma.
Afligia-o que os seus funcionários não se dedicassem ao trabalho durante doze, dezasseis, vinte horas por dia. Quando os via deixar o emprego, ao fim de oito horas de serviço, quando os via abandonar as tarefas profissionais para irem à sua vida, Raimundo sentia que estavam a ser injustos com ele. Podiam sacrificar-se mais porque ele também se sacrificava para lhes pagar o salário no fim do mês. Por isso, não seria favor se permanecessem mais uns minutos, mais umas horas no local de trabalho. Se as pessoas queriam ser bem remuneradas, deviam perceber que era com base no seu volume de produção que se tornava possível, ou não, aumentar-lhes o salário. Quanto mais rendessem, mais lucro ele teria e quanto mais lucro tivesse, melhor lhes poderia pagar.
Raimundo não compreendia como as pessoas em geral não assimilavam um raciocínio tão elementar. Provavelmente, não acreditavam no patronato. Para Raimundo, porém, pagar bem aos trabalhadores, não era uma questão de generosidade, mas uma questão de lógica. Na sua opinião, só quem era bem pago podia produzir bem. E só com base numa produção eficaz seria possível continuar a criar riqueza. Um funcionário que saísse do emprego pontualmente era um funcionário incompetente e medíocre. E a incompetência, afligia-o, torturava-o, desassossegava-o.
Costumava reunir os funcionários, incentivando-os a produzir mais, estimulando-os com prémios, mas tinha a certeza de que logo que virasse costas tudo continuaria na mesma.
A falta de iniciativa aterrorizava-o, a falta de ideias, a falta de empenho. Para ele, não bastava ser sério. Era necessário ser dedicado a uma tarefa, a uma causa.
Muitas vezes, apetecia-lhe berrar, por não poder aguentar tanta irritação dentro de si, mas limitava-se a ciciar uma reprimenda ou a murmurar uma ordem.
Despache-me isto, quanto antes”, dizia ele, encolerizado, com a voz rente ao chão.
Para Raimundo, só havia uma filosofia: as pessoas deviam trabalhar o máximo que pudessem, independentemente de regras e horários, a fim de acumularem conhecimento e riqueza. Só assim o trabalho fazia sentido. Era inadmissível que alguém pudesse ocupar um terço da sua vida numa determinada actividade apenas para receber um mísero salário ao fim do mês. Quem dava um terço da vida a troco de uma ninharia bem podia dar a vida toda a troco de mais dinheiro. Trabalhar muito era uma forma de não só convencer o patrão a pagar melhor, mas também de acumular saber e dominar uma quantidade de conhecimentos. Saber era poder e quem tinha poder só precisava de o utilizar em proveito próprio. Depois de terem trabalhado para outrem, as pessoas deviam trabalhar para si mesmas, considerava Raimundo. Não lhe custava aceitar que os seus funcionários, um dia, deixassem de estar sob as suas ordens, a fim de se dedicarem aos seus próprios projectos. As leis do mercado assim o ditavam. Era o que ele queria e defendia. Só não percebia como era possível as pessoas acomodarem-se ao pouco ou nada que conseguiam.
É por isto que não evoluímos!”, dizia, por vezes, contrariado. “A maior parte das pessoas quer é descanso. E ainda exigem salário e subsídio de desemprego!”
Num dia em que Raimundo estava mais enfurecido, embora não se lhe ouvisse a voz, quando a mulher de limpeza entrou no seu gabinete e o ouviu falar sozinho, pôs-se a responder-lhe como se o assunto a envolvesse, levando Raimundo a retorquir-lhe, directamente, embora ela não tivesse a certeza se ele falava sozinho ou se falava com ela.
Como pode uma pessoa fazer a mesma coisa toda a vida?”, perguntava ele, de olhar perdido na direcção da janela.
Não sei fazer mais nada…”, respondeu ela, enquanto limpava o pó dos móveis.
Toda a gente que trabalhe a sério tem de mudar e evoluir. O trabalho ensina tudo. Só é preciso produzir bem e depressa, para haver tempo de a pessoa se organizar de outra maneira e ter oportunidade de ganhar mais dinheiro!”
Ela respondeu que o dinheiro não queria nada com ela, ao que ele argumentou que o poder estava em cada um, não no dinheiro.
Fazemos dele o que queremos”, sublinhava Raimundo. “Não devemos ser escravos de nada. O dinheiro é que deve ser nosso escravo. A partir de certa altura, o que se deve fazer é contratar gente que faça o trabalho por nós e incentivar a autonomia depois da experiência acumulada”, acentuava ele, com as veias salientes no pescoço.
Fala dessa maneira porque não sabe o que é limpar chão”, resmungou a mulher, como quem falava para os seus botões, obrigando Raimundo a voltar às tarefas do costume sobre a secretária, na tentativa de esquecer o que acabara de ouvir.
As pessoas não se esforçam o suficiente”, dizia ele entre dentes. “Por isso a sociedade é a pasmaceira que todos sabemos”.
Nessas alturas, zangava-se, dava dois ligeiros socos na secretária e calava-se, como se o silêncio fosse uma maneira de poupar dinheiro. E, para Raimundo, era-o, realmente, porque cada palavra demorava um determinado tempo a pronunciar e durante esse tempo ele tinha a certeza de que perdia alguma coisa. Por isso, falar pouco era uma das suas regras de vida.
Assustada com o breve ruído dos socos na mesa, a mulher de limpeza, pôs-se a rezar baixinho, arrependida de ter dito o que dissera. Receava que ele tivesse levado a mal alguma coisa. Podia mesmo ter interpretado como uma incorrecção o simples facto de ela lhe ter dirigido a palavra. Via tudo negro à sua frente e pensava que o seu emprego podia estar em risco. Apanhou-me um dia no corredor e contou-me tudo isto como se me conhecesse desde os bancos de escola, pedindo-me que intercedesse por ela junto de Raimundo. Alegava que se o patrão se calara e dera dois socos na mesa fora porque alguma coisa acontecera de errado. Não fazia sentido que ele se tivesse exaltado consigo mesmo. A irritação só podia ter sido com ela. Na altura, não estava mais ninguém no gabinete. O mais certo era Raimundo achar que em vez de lhe ter respondido ela devia esfregar o chão com mais empenho e limpar o pó dos móveis com atenção redobrada. Queria a minha opinião sobre o que acontecera e suplicava os meus préstimos, certa de que a minha velha amizade com Raimundo seria suficiente para resolver aquela falsa contenda.
Alguns momentos mais tarde, ela ouviu de novo a voz de Raimundo. Desta vez, porém, não respondeu, com medo de o irritar mais uma vez. Até fez esforço para não entender o significado das suas palavras, para escapar à tentação de dizer alguma coisa.
Mas ele levantou-se da secretária e veio até junto dela, dizendo-lhe ao ouvido, com aspereza:
Estou a falar consigo…”, o que a fez estremecer dos pés à cabeça e por pouco não a levou ao soalho. “Está surda?”, ao que ela abanou a cabeça negativamente. “Por hoje, está dispensada. Amanhã falaremos”.
A mulher fora para casa com a cabeça desfeita. Não sabia se tinha sido despedida, ou não. Ele dissera-lhe “amanhã falaremos”, mas a sua intenção podia muito bem ser a de fazer contas definitivas e despedi-la.
À noite, pensou em telefonar-lhe. Fez várias tentativas, mas acabou por desistir poucos segundos antes de marcar os números. Seria um desrespeito uma mulher-a-dias telefonar para casa do patrão. O seu dever era esperar pelo dia seguinte, para saber o que Raimundo pretendia. Se dormisse mal, a culpa seria dela e só dela. Ninguém a obrigara a estar de conversa com quem não devia. A sua função consistia em limpar a empresa e mais nada. Exorbitara claramente as suas obrigações.
Na manhã seguinte, quando entrou no escritório de Raimundo, estava pálida que nem cal e tremia como um pudim na taça. Mas ele não lhe deu atenção. Ignorou-a como a um trapo. Só meses depois lhe expôs a sua ideia:
Quero propor-lhe que passe a trabalhar no secretariado do escritório. Dobro-lhe o salário. Contudo, terá de trabalhar mais horas, pelo menos no início, até aprender de forma segura as tarefas que lhe serão confiadas”.
Depois de um compasso de espera para tentar perceber o que lhe estava a acontecer, ela respondeu quase num murmúrio que tinha fracas habilitações académicas e que não sabia muito mais do que assinar o seu nome.
Raimundo sugeriu que ela voltasse a frequentar a escola durante o período de adaptação às novas funções:
Esta é uma oportunidade única na sua vida. Se não a agarrar agora, viverá sempre com um salário de miséria”.
Ela respondeu que o dinheiro não era tudo e que não tinha coragem de aceitar um lugar para o qual não estava preparada. De resto, se era para trabalhar mais horas, ela não o podia fazer porque tinha de se ocupar da filha.
Se não está preparada, passa a estar. Quanto à sua filha, pode trazê-la para o escritório, desde que não incomode…”, replicou ele.
A mulher respondeu que preferia continuar na limpeza. Não se sentia capaz de voltar à escola e a filha não se sentiria bem na empresa.
Raimundo perguntou-lhe se ela não queria uns dias para pensar no assunto, se não queria aconselhar-se com o marido, mas a mulher respondeu-lhe que se falasse ao marido na proposta que acabara de receber ele quereria logo saber que favores tinha ela prestado ao chefe para merecer tamanha promoção! Acentuou que era melhor deixar tudo como estava, que até gostava de esfregar chão e de aspirar alcatifas. “Não se incomodem comigo”, foram as suas palavras.
Raimundo ficou desiludido com a reacção da mulher. Sobretudo pela forma como ela disse para não se incomodarem com ela. “Incomodem” era plural e fora ele, pessoa singular, que lhe fizera a proposta. Vira naquela expressão uma enorme desconsideração pelo interesse que por ela demonstrara. Apeteceu-lhe destruir o que tinha em cima da secretária, mas conteve-se. Muitos pobres só o eram, na sua opinião, porque incapacidade de se sacrificarem por uma vida melhor. Estavam no direito de o fazer, só que não estava certo andarem pelas ruas a queixar-se e a mendigar. Cada um tinha a vida que merecia.
No fim do dia de trabalho, Raimundo saía muitas vezes antes da hora de encerramento do escritório, saía mais cedo, só para não ver os seus funcionários abandonarem o serviço pontualmente às dezoito horas, por entre atropelos de casacos, arrastamento de cadeiras, quedas de dossiês. Era um barulho que o perturbava.
Quando, por algum motivo, não conseguia deixar o escritório mais cedo, era capaz de não dormir naquela noite, só por causa do ruído das cadeiras a arrastar. Nunca mais sossegava.
Raimundo compreendia o argumento segundo o qual os funcionários de uma empresa tinham a sua vida pessoal, tinham família, tinham os seus próprios afazeres. Era verdade. Mas, por outro lado, havia um outro aspecto que não costumava ser tida em conta: se as pessoas trabalhassem mais horas, acabariam por beneficiar as suas famílias. Durante um certo tempo, poderiam prejudicá-las, mas depois beneficiá-las-iam.
Raimundo recorria à calculadora e somava números, tomava notas em pequenos papéis que depois perdia ou fazia desaparecer por baixo de outros papéis maiores, mais importantes, mais urgentes.
Cá está!”, dizia ele de si para si. “O problema é trabalharem pouco”.
A redução do horário de trabalho era o pior erro que se podia cometer. Erro para os trabalhadores, erro para os patrões, erro para o mercado. Porque quanto menos se trabalhasse, menos se saberia, menos se produziria, e, como tal, menores seriam as hipóteses de as pessoas se libertarem. Se pensavam que melhoravam a vida trabalhando menos, estavam enganadas.
Era verdade que, por causa de tanto trabalhar e por causa da sua forma de pensar, ele acabara por se tornar um solitário, acabara por quase não conviver com ninguém, mas também não era menos certo que era um indivíduo independente e que tinha dinheiro de sobra. Quem passava a vida a sociabilizar perdia a oportunidade de enriquecer.




29


Após a morte do meu pai, passei a visitar a minha mãe com maior assiduidade. Fi-lo tantas vezes que acabei por estar presente no dia em que ela faleceu.
A certa altura, percebi que algo se passava, corri e fui dar com ela estendida na cama, muito pálida, de olhos esbugalhados, dizendo: “Estou a morrer… estou a morrer”.
Não me recordo porquê, mas respondi-lhe de mau humor. Acontecia-me, por vezes, reagir de forma agressiva às situações, como se pressentisse que por detrás delas havia outras coisas. Reagi como se a minha mãe estivesse a exagerar. Disse que ela não estava nada a morrer, que deixasse de se lamentar, que não fosse piegas. E como ela continuou a insistir e a contrariar-me, levantei a voz, dando-lhe ordens definitivas para se calar!
Nem mais uma palavra!”, disse-lhe de forma autoritária, com um tom que até me surpreendeu.
Foi a única vez que mandei calar a minha mãe. Depois da ordem que lhe dei (mais um berro do que uma ordem), fiquei com a sensação de ter disparado uma arma. O silêncio que se seguiu parecia o silêncio de alguém que tombara sob o meu disparo.
Minha mãe obedeceu-me. Não voltou a falar. Estava eu ainda longe de perceber as razões. Ficou branca, cada vez mais pálida, sem energia, desfalecida. Pareceu de repente esvaziada de ar.
Mesmo assim, não desanimei e continuei a discutir. Agora que ela perdera a voz, eu encontrava uma oportunidade soberana de lhe dizer o que pensava, dela, do meu pai, da família, dos amigos, da vida, do que esperavam que eu fosse…
Nem me calei quando fui à cozinha encher um copo de água para lhe dar de beber. Por qualquer razão, eu sentia que tinha de deitar cá para fora o que acumulara ao longo dos anos e que nunca tivera coragem de desabafar. O meu estado de nervos era tal que não sabia exactamente por onde começar a discussão. Eu queria uma discussão, só uma discussão, queria esclarecer uma série de assuntos.
Acabei por pegar numa ponta e não deixei nada para trás. Confrontei minha mãe com os factos: ela nunca concordara em separar-se do meu pai, não por me amar, como sempre dissera, mas por não ter coragem de enfrentar a família e a sociedade. E, sobretudo, por não ter coragem de enfrentar o homem com quem casara.
Sempre te preocupaste mais com os outros e com o que eles pensam do que contigo própria e comigo”, dizia eu, enquanto ela continuava a empalidecer, empalidecer.
Nem sei porque dizia aquilo, já que nunca me apercebera de que os meus pais se tivessem dado mal um com o outro. Uma vez abordáramos o assunto e ela confessara-me que mesmo que tivesse motivos para se separar nunca o faria por causa de mim. Achava que eu merecia uma mãe e um pai como as outras crianças. Não punha a hipótese de eu crescer só com um ou só com o outro. Por qualquer motivo, todavia, eu crescera com a ideia de que algo mais se passava entre eles. Ou de que nada se passava entre eles, o que era bastante pior. Apesar de toda a aparência de tranquilidade com que me haviam educado, eu desconfiava de que nem tudo se resumia ao que os meus olhos viam. E havia a velha questão de eu considerar que ela pretendia influenciar o meu futuro. Ela dizia que não, que só queria o meu bem, mas eu teimava que havia de ser eu a decidir a minha vida.
Nós não decidimos coisa nenhuma”, costumava argumentar ela nos tempos em que tinha forças para isso. “Quando achamos que decidimos é quando estamos a ser mais influenciados por factores que nos são alheios. Não te deixes levar pelo engano. Segue o meu conselho…”.
Eu era implacável na resposta:
O que tu queres bem sei. Nem me fales em casar! Deseja-me tudo menos que eu me encerre na mesma casa com uma pessoa! Não me queiras numa gaiola, por favor!”
Vivi anos com este argumento atravessado na garganta. Por isso, não poderia deixar de aproveitar a ocasião em que ela dizia estar prestes a morrer para vazar o que me atormentava, sem noção de que cada argumento que eu brandia lhe tirava um minuto de vida. Nunca me veio à ideia abraçá-la e manifestar-lhe os meus verdadeiros sentimentos. Nunca tive à-vontade para isso. O amor que sentia pelos meus pais foi sempre um amor racional, distante, frio.
Quando lhe dei a beber o copo de água, a minha mãe praticamente já não reagia. Tive de ser eu a erguê-la e encostar-lhe o copo aos lábios. Fi-lo com irritação e apeteceu-me voltar a discutir, apesar de ser cada vez mais evidente que ela não estava em condições de ripostar.
Pouco depois, ela deixou-se cair pesadamente sobre o colchão e virou a cabeça para o lado, inanimada. Ainda antes de eu ter tempo de perceber o que se passava, alguém tocou na campainha da porta exterior. Decidi que aquele não era o momento apropriado para atender gente de fora.
A partir dessa altura, é-me difícil relatar com exactidão como as coisas aconteceram: a minha mãe estava desmaiada, mas, a dado momento, pareceu-me vê-la despertar, revirar os olhos e desfalecer de novo. Pouco depois, vi-a estremecer, o que me levou à conclusão de que se encontrava viva (ainda que eu não colocasse a hipótese de que pudesse morrer). Toquei-lhe na mão, num braço, no pescoço. Receei que o calor se lhe estivesse a escoar por todos os poros. Mas eu achava que isso nada tinha a ver com a morte. Morte era outra coisa e não aquilo que eu presenciava naquele momento.
Não me atrevia a pensar. Não queria imaginar o que poderia vir a acontecer. Só alimentava a esperança de que um milagre – que milagre? – ocorresse. O milagre de a minha mãe estar apenas doente, o que significava que melhoraria, ao fim de uns minutos ou horas.
Sem perder tempo com muitas cogitações, fui a correr chamar o vizinho do lado. Não se encontrava em casa. Veio a esposa. Após tomar o pulso a minha mãe, enfrentou-me com um rosto lívido e disse-me, em surdina:
Está morta”.
Não tive a certeza de entender o que ela dizia. Pareceu-me vaga a sua frase, como se proferida numa outra língua. No fundo, recusei-me a acreditar no significado das suas palavras. “Morta?” Não podia ser. Ainda há pouco a agarrara e a sentira quente.
Não há nada a fazer…”, acrescentou a vizinha, perguntando-me a seguir se eu precisava de alguma coisa. Supliquei-lhe que não chamasse a polícia. Eu disse mesmo “polícia”. Apesar de a minha mãe ter morrido como acabo de descrever aqui.
Pela expressão de rosto da vizinha, adivinhei que ela não me faria a vontade e que tinha mesmo intenção de chamar a polícia. A minha precipitação tê-la-á levado a concluir que era seu dever informar as autoridades de que qualquer coisa se passara.
Logo que me vi só, deixei de pensar na polícia, não me contive, não resisti e envolvi-me em discussão com o cadáver de minha mãe sobre a velha questão do casamento. Apesar de eu já não poder corrigir nada do que lhe dissera antes, nem do que lhe dizia naquele instante, só me apetecia continuar a discutir, barafustar, argumentar, como se a sua morte fosse um estratagema que ela tivesse engendrado para se esquivar ao diálogo comigo ou fosse apenas a forma que eu encontrara para a confrontar com o que eu já não suportava dentro de mim. O que eu queria era que ela me ouvisse, mais nada. Que me ouvisse, apenas.
Desatei a falar pelos cotovelos. Falei como nunca me recordo de ter falado. Falei, falei, falei, levantei a voz, critiquei-a, repreendi-a, corrigi-a. Ironizei com a sua vida. E ridicularizei-a. Chorei, mas limpei as lágrimas logo a seguir, para melhor poder falar e despejar o que sentia. Quanto maior era o silêncio das respostas de minha mãe, maior era a veemência das minhas palavras. Agora que ela tinha partido, eu sentia que tinha todo o direito de não a deixar em paz, enquanto a minha situação não fosse esclarecida. Se ela quisesse sossegar, tinha primeiro de acertar contas comigo.
Estás a ouvir-me?!”, dizia eu, enfrentando-a, como se precisasse de verificar com os meus próprios olhos se estava viva ou morta. “Sei muito bem que estás a ouvir-me!”, insistia, recordando-me de um médico certa vez me ter dito que os cadáveres mantêm a capacidade auditiva durante um período aproximado de dez minutos após o último suspiro, o que me fez dar um tom mais aguerrido à discussão.
Aprofundei argumentos, rebusquei motivos, protestei por me terem concebido, zaragateei de todas as formas, ao ponto de nem ter dado pela chegada da polícia, que a vizinha se apressara em chamar.
Um dos guardas (eram dois) tentou convencer-me a sair dali, mas vendo que não conseguia afastar-me do cadáver, pediu auxílio ao outro, que tentou agarrar-me, sem sucesso. Ameacei ambos e disse que tinha todo o direito de dizer a minha mãe o que muito bem me apetecesse.
Pediram-me contenção, ordenaram que falasse mais baixo e concederam-me uns minutos, antes de poderem tomar conta da ocorrência, saindo respeitosamente do quarto.
Concordei em moderar a voz, mas nem por isso deixei de dizer o que tinha a dizer, sem me importar com o que pudessem pensar:
Não está certo teres-me feito desta maneira! Se me querias pôr no mundo, ao menos tivesses criado alguma coisa de jeito! Não te ofendas, por favor, só que não posso estar contente com o resultado da tua obra. Que fazias se estivesses no meu lugar? Foi por eu ser como sou que te comportaste de forma exemplar pela vida fora? Foi por isso que nunca me ralhaste, nunca me bateste? Foi por teres pena de mim?”
Se não eram estas as minhas palavras eram parecidas. Depois dos anos que passaram, não consigo reproduzir com exactidão o que disse, até porque o meu estado de alma não era propriamente o mais equilibrado. O que sei é que nunca me calei: “Se te digo isto, é porque te amo. Se te odiasse, virava-te as costas, esquecia-te, ia à minha vida. Mas o amor não permite que eu te abandone. Sei que agora queres ficar em paz, mas repara na minha aflição. Faz alguma coisa por mim. Amaste-me de uma forma que não compreendi. Pensei que os teus sentimentos não me eram dirigidos, mas a outra pessoa, não interessa quem. Sei que não te queixas, porque não podes. E mesmo que pudesses, não o farias. Porque nunca o fizeste mesmo quando podias. Nunca foste de te queixar. Passou tanto tempo desde que partiste. Passaram minutos como se fossem anos. Custa-me tanto ver-te morrer sem teres oportunidade de me contar o que aconteceu para que eu nascesse assim. Alguma coisa deve ter sucedido. E se alguém o pode saber és tu. O pai nunca deu grande importância a pormenores. Para ele, bastava que eu estivesse de saúde. Mas tu, não. Tu sabes quanto sofri e sabes que nunca me conformei com o que sou. Sabes que não hei-de morrer sem descobrir o que sucedeu. Nem que dê a volta ao mundo e nem que te faça dar piruetas no túmulo. Durante os primeiros anos, foi fácil fingires que não percebias. Mas depois era impossível não veres. Metia-se pelos olhos dentro. Se os outros não reparavam, tu tinhas o dever de compreender, de ver, de aceitar. Tinhas o dever de me explicar, de falar comigo, de me contar tudo. Mas não o fizeste. Esperaste sempre que fosse eu a resolver o caso. Por que não me ajudaste? Por que não te abriste comigo? Quando fiz dezoito anos, deste a entender que eu me devia casar. Sei que nunca o disseste claramente, mas eu percebia muito bem onde querias chegar. Casamento!, casamento!, não conseguiste fugir à norma das instituições. Não achas que mais importante do que casar era eu estar bem comigo?”
Ajoelhei-me junto da cama, agarrei a mão gelada da minha mãe e pus-me a rezar, já sem me recordar das preces, nem do pai-nosso nem da ave-maria. Balbuciei partes do acto de contrição e em seguida pus-me a falar directamente com Deus, de forma espontânea, pedindo-lhe que me desse luz, que me desse coragem para encarar a realidade, que me desse força para resistir ao dia de amanhã.
Não sei o que fazer…, não sei que caminho seguir…”, desabafei, num murmúrio, enquanto senti um ligeiro afrouxamento da mão de minha mãe, como se ela tivesse estado a ouvir-me até àquele momento, levada pelo sopro ardente das minhas palavras.




30


Não sei se Rute pressentiu que eu necessitava da sua presença, mas foi ela quem me entrou em casa, quando eu já esperava pela ambulância há cerca de três horas.
Vinha calma e sorridente, luminosa, superiormente bela, como se o tempo em que esteve afastada de mim tivesse aperfeiçoado a matéria espiritual de que era composta.
Ela não fazia a mínima ideia do meu estado de saúde. Nem me apressei a informá-la. Apeteceu-me recriminá-la por tantos dias de ausência, mas ao vê-la mais atraente do que nunca, perdi a coragem, embora eu não duvidasse de que ela devia ter tido alguma razão para andar sumida. Mas era essa “alguma razão” que me inquietava, me afligia, me perturbava mais do que todos os motivos que me pudessem ocorrer. Era uma espécie de ciúme que me devorava, embora eu soubesse que não tinha o direito de o sentir. Não tinha o direito, mas sentia-o como uma escavadora implacável abrindo-me cavernas na alma.
Não lhe pedi contas, como é óbvio, embora dificilmente conseguisse controlar a vontade de o fazer. Mas eu tinha a convicção de que ela acabaria por me revelar o motivo do seu afastamento.
Teve saudades minhas? – perguntou, com malícia, puxando-me pela língua.
Sem ânimo para lhe responder à letra, virei-lhe a cara e fiquei à espera da sua reacção.
Após um breve compasso de espera, Rute deu uns passos na direcção do lado da cama para onde eu me voltara, debruçou-se sobre o colchão e afagou-me a roupa sobre um dos pés. Por instantes, permanecemos em silêncio, remoendo sentimentos desencontrados.
Está doente? – insistiu ela, na tentativa de me levar a reagir.
Ante a continuação da minha mudez, fez uma breve pausa e, depois, conforme eu previra, contou-me que tivera de ir a um congresso médico em França, explicando que nada me dissera porque decidira a viagem em cima da hora.
As suas palavras tiveram o condão de me serenar. Por maior que fosse o meu ressentimento, eu não tinha outro remédio senão aceitar os seus esclarecimentos, embora me esforçasse em não lhes dar réplica imediata. Era um princípio que eu seguia com escrúpulo. Primeiro, deixava que os argumentos de Rute me penetrassem nas veias, na sensibilidade, na razão, e só depois manifestava alguma abertura ao diálogo. Ela já me conhecia suficientemente para saber esperar pela ocasião em que eu poria o amuo para trás das costas. Rute não precisava de ser paciente para conseguir o que queria. A segurança que denotava em todos os momentos era a trave mestra dos objectivos que alcançava.
Estava na minha vez de demonstrar algum espírito de cooperação:
Se aparecer por aí alguma ambulância, diga-lhes que já não preciso – pedi, ao mesmo tempo que aproveitava para a pôr ao corrente do que se passava comigo.
Ao ouvir as minhas palavras, Rute fez estremecer a cama sob um repentino nervosismo, levantando-se prontamente e debruçando-se na minha direcção, ansiosa por saber o que acontecera, se já estava mesmo bem, o que sentira eu, como fora e não fora, porque não pedira auxílio a alguém…
Respondi-lhe que estivera sempre à espera de que a ambulância chegasse a todo o instante e que acabara por me ir sentindo melhor.
Se foi alguma coisa, já passou… – expliquei.
– …De qualquer maneira, a ambulância não pode ter uma demora destas! – comentou ela. – É uma irresponsabilidade. Podia ter-lhe dado alguma coisa. Na sua idade, todos os cuidados são poucos.
Quis saber de novo se eu me sentia bem, indiscutivelmente bem, se desejava um copo de água ou de leite, se estava em condições de ir ao hospital, tudo isto enquanto me auscultava, media a tensão arterial, observava a língua, a garganta, os olhos. Depois de concluir a inspecção, pareceu ficar mais tranquila.
Acho que é melhor irmos ao hospital – disse. – Por uma questão de segurança. Vai só fazer alguns exames. Podemos ir no meu carro. Deve ter havido um equívoco qualquer com a ambulância. Isto não passará em claro. Informarei a direcção sobre o sucedido. Uma situação destas não se pode repetir.
Rute estava pronta para sair. Pediu que eu me vestisse para ir com ela. Apesar de não me apetecer sair da cama, eu achava que um passeio, mesmo ao hospital, serviria para me descontrair. Pela primeira vez desde que nos conhecíamos, pedi a Rute que depois dos exames clínicos fôssemos dar uma volta a qualquer sítio. Ela aceitou a minha proposta com um sorriso de satisfação, deixando no ar a ideia de que a minha sugestão só pecava por vir atrasada...
Cerca de quinze minutos depois, dávamos entrada nos serviços de urgência. Atenderam-me com relativa celeridade, como se sentissem na obrigação de me compensar pela demora da ambulância.
Tive sempre a companhia de Rute, que não se eximiu de dar informações aos colegas sobre o meu historial clínico. Dispensaram-me das observações básicas na convicção de que Rute já as havia efectuado, mas submeteram-me a electrocardiogramas, electroencefalogramas e outras banalidades do género.
Após quase uma hora de atendimento, entre perguntas e testes, acharam que eu podia regressar a casa em tranquilidade.
Quando não teve dúvidas de que eu me encontrava fora de perigo, Rute foi a primeira a lembrar o passeio que eu lhe pedira. Só não corremos para o carro, porque eu tinha manifestas dificuldades de locomoção.
Com o amparo do braço dela, senti-me às portas do paraíso. E, no carro, senti-me nas mãos de Deus. Deve ter sido um dos dias mais felizes da minha vida. Se não o era, parecia sê-lo e a ilusão de o ser já me bastava. A ilusão de o ser não passava da liberdade que sentia ao lado de Rute, por entre o dia claro e aberto, depois de me ter sentido às portas da morte, sem vivalma que me socorresse. Rute voltara a salvar-me, até parecendo que a ambulância se negara a vir em meu auxílio só para que eu tivesse o privilégio de receber a especial ajuda dela, a especial atenção dela, o especial carinho dela.
Um dos motivos por que eu apreciava a presença de Rute tinha a ver com a flexibilidade do nosso relacionamento. Em poucos minutos, podíamos ser tudo, representar tudo, experimentar tudo, discutir tudo, saltando de um tema para outro, sem receio de cair no ridículo, na falta de nexo ou de oportunidade.
Nunca fazíamos ideia em que assuntos nos embrenharíamos, mas tínhamos a certeza de que manteríamos sempre uma conversa empolgante e inesquecível. Era a nossa história… o nosso código genético a funcionar.
O dia estava transparente, magnífico, como a face de Rute.
Não tem nenhum doente para visitar? – perguntei, como se não pudesse acreditar que ela estivesse completamente disponível para mim.
Rute fez um “não” subtil com a cabeça, mas eu realcei que podia muito bem ficar no carro à espera de que ela desse uma saltada a casa de alguém. Não me importava de a perder por uns minutos, desde que tivesse a certeza de que ela voltaria para a minha beira. Até achava que a privação dela por um curto espaço de tempo era uma forma de a ter mais perto. Durante os breves instantes que tivesse de ficar a sós, eu viajaria mentalmente por todos os cantos e becos que preenchiam os anos do nosso conhecimento, não me restando dúvidas de que a recordação do percurso que fizéramos reforçaria os sentimentos que eu nutria por ela. Eu só queria pensar nela porque esta era a forma que eu tinha de a possuir. Tanto me fazia que Rute estivesse, ou não, ao meu lado. Não me custava suportar a sua ausência. Apenas me afligia não saber se ela voltava, não saber do seu paradeiro, não saber se me seria possível voltar a estar com ela. Desde que eu não duvidasse do seu regresso, era-me indiferente não vê-la por uma semana, um mês, ou um ano. Eu era capaz de esperar por Rute dentro do carro por quantas horas ou décadas fossem necessárias. Bastava sentir que estava no carro dela, no assento ao lado do qual ela me conduziria por ruas e estradas que realizariam os meus sonhos.
Hoje, sou toda sua – afirmou, fixando-me nos olhos, enquanto esperava pelo verde de um semáforo, não restando dúvidas de que aquela era uma forma de me compensar pelo tempo em que eu não tivera oportunidade de a ver.
Não lhe agradeci, mas senti-me bem interiormente, por ser alvo de todas as suas graças.
Rute conduziu o carro para fora da cidade, calmamente, sem ânsias, sem pressas, enquanto íamos debicando conversa aqui, conversa acolá. Faltava-nos o hábito de dialogar no meio de tanto movimento e azáfama. Fazia-me alguma impressão estar num carro que deslizava por entre tantos outros carros.
Quando estamos parados num sítio – disse eu. – É como se o diálogo fosse o único acontecimento possível. Em andamento, nunca sabemos o que está a acontecer à nossa volta, ou o que pode vir a acontecer, o que nos obriga a dispersar a atenção.
Eu sinto o mesmo – replicou Rute. – Andar na rua dá-me a sensação de estar a falar com várias pessoas ao mesmo tempo. Mas não creio que isso aconteça por causa do movimento. Se estou numa esplanada a conversar, sinto o mesmo. Ou se estou em casa de alguém com miúdos a correr de um lado para o outro.
Rute tinha plena razão no que dizia. Mas eu considerava que em andamento as condições para o diálogo eram ainda mais precárias. E tentei explicar o meu ponto de vista com base no pressuposto de que o movimento nos proporcionava o contacto com um número bastante maior de situações. Numa esplanada, por exemplo, passavam por nós, cinquenta ou sem pessoas num determinado período de tempo, ao passo que num automóvel podiam passar centenas ou milhares, o que dificultava bastante mais a concentração, uma vez que não se pode ser indiferente ao que nos rodeia. Cada carro que passava por nós, numa ou noutra direcção, obrigava-me a pensar no que pensaria quem ia nele.
É uma questão de concentração – disse Rute.
Poderemos aproveitar este passeio para uma conversa mais ligeira, ou então, se não quisermos perder o fio às palavras, havemos de parar aí num canto qualquer. É estranho não poder encontrar os seus olhos enquanto conversamos… – um comentário que a levou a sorrir, como se tivesse acabado de ouvir um formidável galanteio.
Eu não fazia ideia por onde andávamos naquele momento. Não me interessava. O importante era andar pelo mundo com Rute a meu lado. Há bastante tempo que eu não andava na rua, o que me deixava com uma impressão nova dos lugares por onde passava e das coisas com que me deparava. Eu nem parecia fazer parte daquele tempo e daquele lugar.
Como já praticamente não tinha amigos (Raimundo e Rute eram a excepção), eu podia mesmo sentir que Rute me estava a levar para um mundo novo. O mundo dela, das suas esquinas, sombras de edifícios, cafés, mesas sob guarda-sóis ao ar livre, monumentos, rostos vagos, museus, cinemas, tudo o que fazia da sua sensibilidade um cálice erguido acima dos olhos.
Quer jantar hoje comigo? – perguntou ela, deixando-me sem resposta imediata. E para me fazer voltar à realidade: – Conheço um restaurante agradável, fora da cidade…
Foi tal a emoção que aquele convite despertou em mim que não tive alento nem voz para agradecer. Limitei-me a fazer um gesto de mãos, aceitando a proposta.
Mas antes parámos num sítio à beira-mar. Estacionámos o carro numa berma elevada e pusemo-nos a admirar as ondas. Ao lado de Rute, as coisas faziam mais sentido e tinham um alcance mais vasto.
Melhor do que isto, só um bom momento de intimidade… – disse eu, convidando-a a aprofundar um diálogo que naquele dia ainda não tivera grandes oportunidades de se manifestar. Mas Rute nem me deu ouvidos. Estava completamente absorta pelo mar, como se enfeitiçada.
Deixei-a ao sabor das suas reflexões e embrenhei-me nas minhas, recordando os tempos de infância.
Havia um homem que tinha o hábito de me esperar na praia, como se adivinhasse os meus passos, e que se disponibilizava para me ensinar a nadar. Eu teria uns nove ou dez anos e já dava umas braçadas. Mas ele insistia em ensinar-me esta e aquela técnica. Sugeria que me estendesse na água e punha a sua mão por baixo da minha barriga, para me ajudar a flutuar. Eu fazia-lhe a vontade, mas ansiava por me ver livre dele. Havia qualquer coisa no seu aspecto que não me transmitia segurança. Talvez as mãos grossas, que em nada pareciam adequadas ao ensino da natação.
A certa altura, aquela lembrança antiga envolveu-me de tal modo que me virei para Rute e lhe perguntei se em criança tivera algum professor de natação.
A resposta foi a que eu esperava:
Não. Aprendi sozinha.
Foi como se, de repente, eu tivesse regressado de um planeta distante. Afinal, Rute estava a meu lado e não tivera professor de natação. Senti a descompressão agitar-me as células e disse a Rute que talvez pudéssemos ir andando para o restaurante.
Ela pareceu surpreendida com a minha sugestão, mas não fez perguntas. Limitou-se a dar a volta à chave na ignição e prosseguir viagem. Uns metros adiante já tinha desaparecido a recordação do homem que me ensinara a nadar na infância. Nem parecia que tínhamos parado a contemplar as ondas durante mais de um quarto de hora.
Logo que entrámos no restaurante, senti que Rute acertara em cheio na escolha. O ambiente era calmo, pouco iluminado, fresco, só deixando os ruídos mínimos pairando no ar.
Depois de nos sentarmos, confirmei que, para além de nós, não havia praticamente outras pessoas na sala. Escusado será dizer que, agora que estava de frente para Rute, me dispus a passar o máximo de tempo de olhos fixos nela. Era uma das poucas ocasiões que tinha para o fazer. Em casa, quando ela me visitava, só lhe apanhava os olhos pontualmente, porque ela ou ia à cozinha, ou à janela, ou se sentava de lado para mim, ou se ocupava com qualquer outra coisa. Quando ria, olhava para as paredes, para um quadro, para o tecto da casa e, se me fixava nos olhos, era de relance, por um tão breve período de tempo que eu quase preferia que ela desse atenção a outra coisa.
O riso tornava Rute excepcionalmente bonita, mas isso não queria dizer que eu apreciasse sobremaneira os momentos em que ela manifestava a sua alegria. O riso de Rute aumentava a minha solidão porque, geralmente, eu não ria da mesma forma nem encontrava motivos para isso. A sua alegria não me contagiava. Só fazia dela o ser mais apetecível à face da Terra. Eu murchava, ao deparar-me com um tal fulgor, um tal poder, uma tal liberdade.
O que me fazia sentir bem era olhá-la nos olhos, como tinha oportunidade de fazer agora no restaurante, e conversar com ela de forma séria e profunda.
Não me parecia que o prazer íntimo viesse a ser um dos nossos temas de conversa naquele dia de descontracção, mas nada nos impedia de abordar o assunto de forma criativa, camuflada, encoberta. As metáforas existiam com algum fim. Todavia, Rute não estava virada para aí. Era óbvio que não tínhamos o hábito de conviver e dialogar fora de casa. Faltava-nos à vontade, traquejo, rotina.
Íamos já a meio da refeição quando dei pela presença de Raimundo, por entre pouco mais de meia dúzia de pessoas que haviam entrado no restaurante depois de nós. Raimundo estava só, sentado a algumas mesas de distância, e tinha o rosto enfiado no prato, como se por todos os meios procurasse não ser visto.
Acenei-lhe, cumprimentei-o de longe, fiz-lhe sinal para que me permitisse apresentar-lhe Rute, mas ele fingiu não me ver, voltando-se ostensivamente para o lado oposto.
Não me restaram dúvidas de que Raimundo tinha entrado e ocupado um lugar à mesa sem se dar conta de que eu ali estava na companhia de Rute, caso contrário teria abandonado imediatamente o restaurante. Terá dado por nós já depois de se ter sentado e trocado algumas palavras com o empregado, o que terá sido suficiente para o inibir de se levantar e se ir embora.
Raimundo ingeriu a refeição a toda a pressa, como se tivesse alguém por trás dele apontando-lhe uma faca às costas. Via-se que comia nervosamente, quase prescindindo de mastigar os alimentos. A posição das suas pernas fazia lembrar as de um atleta nos segundos antes do disparo que marcava o início de uma corrida de cem metros.
A fim de queimar os últimos instantes sem que eu tivesse oportunidade de me dirigir à sua mesa, Raimundo afastou a cadeira, levantou-se e dirigiu-se aos lavabos. No regresso, para não dar de caras comigo, voltou a meter conversa com o empregado e veio recuando de costas até à sua mesa, de onde se encaminhou para a porta de saída, cumprimentando-me de longe com um dos braços erguidos, para que eu não pudesse mais tarde acusá-lo de me ter ignorado.
Rute notou que algo se passava. Era impossível não ver a minha cara de atrapalhação, olhando em volta, sem perceber o comportamento de Raimundo e sem conseguir captar-lhe a atenção. Nunca mais me concentrei na conversa com ela. Desde há muito que tinha intenção de lhe apresentar Raimundo e nunca pensei que alguma vez se me deparasse um momento tão propício como aquele. Raimundo, porém, esquivara-se habilidosamente, como se tivesse adivinhado a minha intenção.
Tenho a certeza de que ele só se escapulira porque notara que havia alguém a fazer-me companhia. Aposto que nem teve tempo para reparar se Rute era bonita ou feia. Calculo que teria reagido sempre daquela forma independentemente do aspecto ou da condição da pessoa com quem eu me encontrasse. Raimundo ter-me-á evitado porque não se sentia à-vontade comigo na presença de terceiros. Não saberia o que dizer-me ou como tratar-me. Ficava visivelmente nervoso, deixando no ar a ideia de que eu era o seu pior inimigo ou de que a nossa amizade era exclusiva, fechada, autista.
Contei a Rute o procedimento de Raimundo, mas não me pareceu que ela tivesse dado importância ao ocorrido. Nunca pensei que o ritmo exterior do dia a dia influenciasse de tal forma o meu relacionamento com ela. Fora de casa, parecíamos dois peixes tirados do aquário. O passeio à beira-mar resultara num silêncio inexplicavelmente incómodo e a ida ao restaurante fora dominada pelo absurdo comportamento de Raimundo.
Rute deixou-me em casa por volta das dez da noite. Disse que voltaria no dia seguinte e despediu-se com um beijo no canto da minha boca, o que me alimentou a desconfiança de que ela continuava a querer compensar-me de alguma coisa. Eu não tinha razões para desconfiar de Rute, nem o que nos unia justificava uma tal postura, mas não conseguia viver de outra maneira ao lado de uma mulher com o seu poder de sedução. Quanto menos razões tinha para desconfiar, maior era a minha inquietação.
Entrei em casa, sabendo que me restava pouco tempo. Havia coisas que eu ainda queria escrever. O melhor era não dormir e despachar tudo.




31


Estou a ver Rita, em criança, quando saíamos a passear. Mal chegávamos à rua, punha-se a procurar cães vadios com os olhos a saltitar em todas as direcções. Eu dava-lhe beijos atrás de beijos porque gostava de a ver livre, porque a entendia e a amava. Sempre foi assim. E sempre há-de ser. Hei-de sempre encher Rita de beijos, mesmo que a não volte a ver.
Aos cinco, seis, doze anos de idade, Rita só pensava em cães vadios, sobretudo quando andávamos fora de casa. Nunca a conheci diferente. Não se interessava especialmente por animais bem cuidados, ordeiros, cães que tivessem dono. Era como se percebesse que estes já tinham tudo e que os outros, os vadios, é que careciam de mimos e atenção. Para ela, os vadios eram donos do mundo porque nada tinham. Eram tão livres que só podiam mandar nas ruas. E, na verdade, assim era. Nas ruas, mandavam os vadios. Os outros limitavam-se a seguir os passos dos proprietários que os conduziam pela trela. Sentiam-se obrigados a obedecer.
Rita dizia-me que não gostava de cães atrelados. Gostava, sim, dos livres, dos rebeldes, dos famintos. Ela percebia que a fome os levava a liderar, a combater, a trabalhar pelo seu próprio sustento. Rita tinha os genes da aventura a empurrá-la desde criança. Entendia a solidão de uma forma especial. Entendia-a porque era ela mesma uma solitária. Solitária, ao que sei, desde o momento em que surgira à minha porta. E o facto de eu a ter recebido em casa não significava que a sua solidão tivesse terminado. Como não significa que tivesse começado quando a conheci. Os maiores solitários são os que, não tendo ninguém, recebem apoio e acolhimento. Porque sentem mais a dor, sentem mais a condição em que caíram. O acolhimento fá-los perceber, a cada instante, a situação desprezível a que se encontram votados. Por isso, muitos sem abrigo preferem viver sozinhos na rua a serem recolhidos por alguma instituição. Vivendo sozinhos, têm o mundo como ponto de referência. Esquecem. O esquecimento é uma das funções vitais da liberdade. E a liberdade é o poder maior que se pode alcançar. É todo o poder. O poder do cão vadio.
Rita parecia entender a solidão dos animais urbanos. O que a atraía era, sem dúvida, a sua liberdade, o seu abandono, o seu desinteresse pela posse de qualquer bem que não estivesse relacionado com a necessidade de sobrevivência imediata.
A saúde dela preocupava-me pela forma como lidava com os cães que encontrava ao deus dará. Eu avisava-a dos perigos, mas ela não ligava.
Posso mexer só com um dedinho?...”, perguntava, hesitante. “Está bem, mas a seguir vais lavar as mãos”, respondia-lhe eu. “Prometo lavar as mãos depois…”.
E lá se acocorava ela, junto ao bicho, lá se aproximava de mansinho, olhando-me, com necessidade de confirmar a autorização para o seu gesto. Estendia a mãozita e tocava-lhe no focinho.
Posso levá-lo para casa?”, insistia. Eu já estava à espera da pergunta e respondia de forma peremptória, embora com um enorme peso na consciência:
Não, Rita, nós já temos o Emanuel. Achas que ele ia gostar de ver o seu espaço invadido por um estranho? Havia de ficar com ciúmes e zangar-se. Tenho a certeza de que não gostarias de os ver brigar”.
Ela ouvia falar em brigas e cedia aos meus argumentos. Para Rita, era essencial não haver discussões, guerras, desentendimentos.
Não sei o que lhe terá acontecido para justificar a sua grande aversão à discórdia. Mas imagino que a família com que passou os primeiros tempos de vida a marcou decisivamente. Muitas vezes pensei se ela não terá fugido de qualquer situação macabra, qualquer ódio insano e descontrolado, qualquer violência, qualquer ameaça indomável e permanente.
Há bastantes anos, ouvi falar num homem que disparou sobre a mulher e logo a seguir sobre si mesmo. Ao encontrá-los mortos na cama, no meio de uma enorme poça de sangue, a filha desatou a correr aos gritos pela rua, em busca de auxílio para a sua dor.
Quando Rita me apareceu à porta, já haviam passado meses sobre esta tragédia, o que fez que eu não relacionasse uma coisa e outra. E, se calhar, não existe qualquer relação entre o crime e o aparecimento de Rita. Eu é que sempre tive um pressentimento, uma desconfiança.
Podia ter perguntado, ter tentado apurar a verdade, nem que fosse junto da vizinhança, mas não tive coragem. Receava que fosse um simples equívoco da minha parte e não quis correr o risco de a perder. E também receava vir a descobrir que Rita fora exposta a tamanho choque. Não sei como teria procedido se ela fosse a criança que descobriu os pais baleados sobre os lençóis onde fora concebida. Talvez me fosse demasiado difícil lidar com a situação, com o perfil psicológico de Rita. Talvez o terror de não ser capaz de a compreender me reduzisse a um estado vegetal. Para fugir a este medo, preferi não saber a verdade, preferi a escuridão do passado, apesar da consciência de que isso poderia significar a impossibilidade de eu vir a legalizar a sua adopção.
Coloquei a hipótese de, um dia, ela me contar o que lhe acontecera. Se é que lhe acontecera alguma coisa. O que me parecia é que uma criança não se senta à porta de um prédio qualquer e se deixa recolher sem motivo, sem trauma, sem morte. Rita nunca me contou o que lhe sucedera e eu limitei-me a ver passar os anos sobre a memória do seu crescimento.
Sempre me arrepiou a sua atitude de contenção e obediência quando eu falava na eventualidade de brigas e discussões entre pessoas ou animais, ao ponto de a partir de certa altura eu ter deixado de usar esse argumento, só para não correr o risco de lhe reavivar alguma dor antiga.
Rita era o meu segredo. Um segredo tão grande e avassalador que acabei por nunca encontrar paz dentro de mim. O passado de Rita, que nunca fiz por desvendar, pode esconder os motivos pelos quais ela me abandonou.
Não me admiraria que ela própria tenha estranhado o meu aparente desinteresse pela sua história, o que lhe poderá ter alimentado a ideia de que eu não a amava suficientemente. Se assim foi, ficam esclarecidos os motivos por que me deixou.
Para Rita, posso não ter passado de alguém que, por caridade, lhe deu alojamento durante uns anos. E quando chegou a hora de partir, ela terá achado que eu não me importaria se ela deixasse alguma coisa por justificar ou por agradecer.
Desapareceu sem avisar, tal como doze anos antes tinha aparecido sem se fazer anunciar. Foi uma maneira de evitar embaraços, lágrimas. Terá suspeitado de que eu poria entraves à sua decisão e receou que nos desentendêssemos.
Rita fazia tudo por um relacionamento harmónico com as pessoas e os animais. Quando eu lhe acenava com a hipótese de Emanuel não aceitar o cão vadio que ela pretendia levar para casa, ela cedia, obedecia, sentava-se no chão, deixando-se ficar por ali, quase hipnotizada, ao lado do bicho. Falava com ele, mirava-o, reflectia, compreendendo-o através do brilho dos olhos baços.
Mesmo que estivesse num parque infantil com cinquenta baloiços e duzentos escorregadouros, Rita só dava atenção aos cães. E se estivesse acompanhada por amigos e colegas de escola não descansaria enquanto não os conduzisse para junto dos cães vadios, insistindo para que convencessem os pais a levarem-nos para casa.
Eles não têm dono!”, dizia ela aos colegas, aos gritos e pulos. “Passam fome e não sabem onde dormir à noite. Peçam autorização para ficarem com eles. Mas não os prendam, deixem-nos andar por onde quiserem. Dêem-lhes só abrigo quando chover e comida quando estiverem com fome”. Era a maneira que ela encontrava de conciliar as perspectivas da liberdade e do conforto. Rita corava de excitação enquanto incitava os colegas, exprimindo-se com uma convicção e tenacidade fora do comum.
Sentava-se ao lado dos cães e dali não saía. Punha as mãozitas cruzadas sobre o regaço e deixava-se ficar em silêncio, durante horas, se eu o permitisse. Era como se pertencessem ao mesmo mundo, era como se ela já tivesse passado pela experiência de vida dos cães vadios e desse o real valor ao que sofriam para comer, para se abrigar do frio, sem uma mão amiga que os acarinhasse, embora ela não duvidasse de que essa falta de uma mão amiga era a fonte de todo o seu poder. Ela percebia que os animais só tinham a ganhar com a liberdade, mas o seu instinto protector não deixava de a comover com a situação de penúria e miséria em que a maioria sobrevivia.
Rita sabia que a maior fome dos cães vadios era fome de carinho. Por isso, não se cansava de os acariciar no focinho, na cabeça, nas pálpebras, levando-os a fechar os olhos de prazer, como se há anos ninguém lhes fizesse uma festa, como se há anos ninguém se detivesse na rua – por um instante que fosse – para os olhar, ao menos, para lhes passar a mão sobre o pêlo áspero e sujo.
Cuidado!, não metas as mãos na boca depois de tocares no cão”, dizia-lhe eu, quando me parecia que ela estava a ir longe demais, explicando que ele estava sujo, que podia estar doente.
Não está doente nada!”, replicava ela com veemência. E logo a seguir, inquiria: “Achas que vai morrer?”
Eu respondia que não, assegurava-lhe que o cão não morreria, realçando que até tinha mais hipóteses de sobreviver do que os outros, os domésticos, porque era mais forte, estava habituado a enfrentar contrariedades e situações perigosas.
Porque não posso levá-lo para casa?”, perguntava ela, de novo, na esperança de que eu já me tivesse esquecido do argumento com que anteriormente a demovera. E sem dar tempo que eu me repetisse nas justificações, ela contra atacava: “Se é mais forte do que os outros, por que não podemos levá-lo para casa? Depois de lavado, ficaria limpo e cheiroso…”.
Eu esclarecia que ele só era forte porque vivia na rua, se fosse levado para casa, tornar-se-ia fraco e dependente. Olhava para ela e tentava abstrair-me da sua insistência, tentava imaginá-la adolescente, jovem, adulta. Por mais que recorresse à imaginação, tinha dificuldade em vê-la crescida, autónoma, madura. Não conseguia imaginar o seu futuro porque não tinha luzes do seu passado.
A prova de que nunca fui capaz de adivinhar o futuro (nem o passado) de Rita foi a sua fuga, o seu desaparecimento. Nunca pensei que ela o fizesse. Às vezes, chego a especular que ela não me terá deixado, apenas se terá limitado a seguir os passos de algum cão vadio.
Nunca a pressionei, nunca a condicionei, nunca a obriguei a nada, sempre lhe expliquei os motivos por que às vezes não lhe fazia as vontades. E ela aceitava o que eu lhe dizia. Mesmo quando queria levar para casa dois, três ou quatro cães vadios e eu a contrariava, ela acabava por entender as minhas razões.
Podes contar uma história ao cãozinho?”, pedia-me ela.
Oh Rita, não gosto de fazer figuras parvas no meio da rua”, dizia eu.
Baixinho…, só uma história”, intercedia ela, como se não quisesse ir-se embora sem deixar algum conforto ao animal, nem que fosse uma simples história de embalar para quando a noite chegasse e não tivesse onde reclinar a cabeça.
Rita sabia que o cão vadio se havia de lembrar dela na escuridão das estrelas e lá por dentro lhe havia de sorrir com o seu focinho nojento e boca desdentada, prometendo-lhe sonhos e alegrias para aquela noite.
Eu lá cedia e contava uma história ao bicho, que parecia acompanhar as minhas palavras com uma atenção maior do que a dos humanos, incluindo a da própria Rita, que mal eu me punha a dar asas à imaginação se evadia dali e não ouvia nada, nem que fosse para que o prazer da história recaísse inteiro sobre o cão.
À medida que eu me aproximava do fim da narrativa, o bicho parecia adivinhar a minha intenção de não a prolongar por muito mais tempo e deixava-se cair para o lado, recostava-se no chão, semicerrava os olhos sonolentos, confortado interiormente pelo eco das palavras que eu proferia.
Está a dormir, vês?”, dizia Rita, mirando-me com olhos espantados. E não muito tempo depois, notando um aligeiramento da minha atenção sobre os seus movimentos (era a minha vez de me evadir…) Rita não hesitava em deitar-se ao lado do cão, enrolando-se sobre a poeira, pedaços de plástico e beatas, aninhando-se, sujando a roupa, com a cabecita deitada sobre um dos braços.
Nessas alturas, eu exaltava-me, ralhava-lhe, dizia-lhe que corria o risco de adoecer, ordenava-lhe que se levantasse imediatamente.
Isto não se faz!”, vincava eu.
Mas tu disseste que o cãozinho não fica doente. Não sejas ‘ingoísta’!”
Ingoísta” era uma palavra que, por volta dos cinco ou seis anos de idade, ela usava arbitrariamente sempre que eu não lhe fazia a vontade. Sabia que eu não gostava do termo, não estava convencida de o saber usar correctamente, mas não tinha dúvidas de que era uma das suas armas mais fortes no confronto comigo. Porque eu nunca me cansava de lhe dizer que não quisesse tudo só para ela e partilhasse as suas coisas com os outros. Quando ela me chamava “ingoísta” eu não conseguia evitar uma expressão de repentino e profundo incómodo, que se misturava com uma brusca e disparatada vontade de rir. As duas forças deviam deixar-me com um ar desastrado e confuso.
Vamos já embora!”, dizia eu, com autoridade fingidamente convicta, única postura que me permitia ultrapassar com sucesso o efeito perverso do termo “ingoísta”.
Um dia, vínhamos para casa de carro, ainda sob o efeito de um amuo por causa de um episódio de cães vadios, quando ela me disparou do assento traseiro:
Por que é que os passarinhos não têm casa de banho?”
Por momentos, pensei que ela estivesse a pensar em alguma história que lhe tivessem contado na escola ou que estivesse apenas a provocar-me. Não percebi a rápida mudança dos cães vadios para os pássaros. Mas durante os poucos segundos de dúvida que a sua pergunta me provocou, dei-me conta de que um excremento de pássaro acabara de bater contra o vidro da frente do automóvel.
O seguimento da conversa foi sobre a falta de equipamentos sanitários nas florestas. Eu explicava-lhe como era e como não era e ela só dizia:
Oh… oh… coitadinhos, fazem cocó ao frio na floresta! E quem lhes limpa o rabinho?”
A conversa não parava. Logo que chegava a casa, eu procurava descansar, refugiando-me no lavatório, o lugar mais propício à evasão, apesar de Rita sempre se ter habituado a entrar e sair, brincar e fazer incessantes perguntas quando eu precisava de privacidade. Pedia-lhe que me deixasse só, mas ela argumentava com o medo, dizia que tinha visto uma aranha não sei quê, uma centopeia na parede.
Eu detectava nos seus olhos que ela compreendia a minha necessidade de reclusão, mas também notava que o seu impulso para estar comigo era superior a todas as necessidades. Trazia os brinquedos para a casa de banho e entretinha-se, espalhando bonecos pelo chão, simulando ser a mãe de um coelho de peluche, falando sozinha, representando, ordenando, repreendendo.
Se eu demorava muito tempo a defecar, ou se não dava importância aos seus inventos e traquinices, ela aborrecia-se e pedia que eu me despachasse: “Nunca mais sais daí? Vem brincar comigo! Estou farta de esperar por ti. Vai lá…, deixa o resto para amanhã”.




32


Rute entrou-me em casa logo pela manhã. Entrou, olhou-me e disse que voltaria em menos de uma hora. Apesar de as forças me começarem a faltar, depois de uma noite em que praticamente não parara de tomar notas, escrever, corrigir e acertar pormenores, apressei-me a concluir o último capítulo sobre Raimundo. O meu tempo era cada vez mais escasso. Rute poderia não estar a ser inocente quando afirmara que regressaria dali a menos de uma hora. O último capítulo sobre Raimundo tinha a ver com o Natal, que era a época do ano em que ele mais se isolava.
Mal se entrava em Dezembro, tornava-se outro homem. Começava logo a pensar no que estava para trás, no que lhe havia acontecido em vida. Quanto maior esforço fizesse para não recordar, mais recordava. As lembranças no mês de Natal eram o seu inferno. Durante o resto do ano, com a dedicação ao trabalho, conseguia iludi-las, esquecê-las, amenizá-las. Em Dezembro, não. Em Dezembro, Raimundo mal conseguia encarar as pessoas na rua. Olhava-as e ficava com a impressão de que lhes tinha acontecido alguma tragédia. E tinha. Raimundo não duvidava do que via. Cada um passeava os seus dramas nos centros comerciais, nas praças, nas lojas, nas igrejas, nos cafés. No mês de Dezembro, os pesos eram maiores, mais vincados, mais visíveis. Cada passo, cada gesto, era uma dor que crescia, uma aflição que se manifestava, um sonho que desabava. Dezembro era o mês de todas as desilusões. Com o Natal, morriam todos os anos as últimas esperanças de muita gente, as esperanças dos que acreditavam (as esperanças dos outros tinham morrido há muito).
Em Dezembro, quando ia na rua e ouvia as melodias de Natal nas esquinas e portas das lojas, Raimundo sentia-se gelar. Se já era um solitário durante o resto do ano, em Dezembro esse sentimento era bastante mais acentuado. Procurava alhear-se das vidas alheias, mas não era capaz. Tudo se metia pelos olhos dentro, tudo incomodava mais do que era humanamente possível suportar. Raimundo daria tudo para que o mês de Dezembro fosse erradicado do calendário. Era como se a mãe tivesse sido mortalmente atropelada em Dezembro, como se ele, Raimundo, tivesse emigrado em Dezembro.
O problema de Raimundo, o único que não conseguira resolver, após mais de seis décadas de vida, era o Natal. Só o Natal. Era um problema de frio e de distância, um problema que lhe vinha dos ossos. O Natal parecia uma vertigem em que Raimundo perdia a noção do espaço, como se tivesse deixado de pertencer ao lugar em que nascera e do qual fazia parte. O Natal, por ser o que era, por representar o que representava, era uma dilaceração.
Na noite de 24 de Dezembro, Raimundo telefonava a Estela, que tinha por hábito passar a consoada com uma sobrinha em Londres. O telefone (através do qual falava uns minutos com a namorada) era a única companhia que Raimundo tinha naquela época do ano.
Que vais fazer ao serão?”, perguntava-lhe Estela, procurando um tema de conversa, para não ficar calada.
O costume”, respondia Raimundo, como se aquela fosse a frase mais longa que alguma vez tivesse pronunciado.
Depois, permaneciam ambos em silêncio por uns segundos, até que ele dizia:
Vou para a cama”.
Estela não tentava contrariá-lo porque sabia que não valia a pena. Raimundo tinha o hábito de lhe telefonar na noite de consoada porque era um homem de hábitos. Acostumara-se à solidão do Natal desde os tempos em que fora emigrante. No estrangeiro, nunca tivera alguém com quem partilhar o que quer que fosse, muito menos o Natal. Fechava-se em casa, sozinho, à espera de que o tempo passasse. Não ligava a televisão, para não se deixar ir abaixo, para não ver o que ia pelo mundo, para não ouvir músicas alusivas à época, para não soçobrar. Tentava dormir, esquecer, abstrair-se. Geralmente, procurava distrair-se com alguma leitura, embora nem sempre conseguisse a concentração necessária.
Ao fim de uns anos, o Natal começou a meter-lhe medo. Medo não sabia de quê, mas medo. Um medo difuso, pouco nítido, próximo, envolvente. Talvez o medo de que as tragédias que via no rosto dos outros um dia lhe batessem à porta.
Raimundo não era de medos. Por isso, estranhou quando começou a sentir medo da noite de 24 de Dezembro. Era como se o pai Natal fosse um fantasma que o perseguia e as campainhas do trenó um sinal de ameaça.
Raimundo suspeitava de que o medo que sentia do Natal fora adquirido no estrangeiro, mas desconhecia as suas causas directas. Como não compreendia muito do que ouvira enquanto emigrante, habituara-se a interpretar expressões faciais, pensamentos reflectidos nos olhos, angústias mal escondidas nas mãos nervosas. Daí o receio sem explicação, o terror de qualquer coisa que o cercava. Mas aquele também podia ser o medo que sobrevinha depois de ele fechar as janelas e desligar as luzes, para não ver nada além da casa onde se abrigava, o medo que lhe entrava pelas frinchas das janelas e sombras que vagueavam na escuridão (o terror que sobrevinha depois de ele já não se lembrar por que motivo fechara as janelas e apagara as luzes).
Durante os primeiros tempos, Estela ainda perguntara a Raimundo se queria passar o Natal em Inglaterra com ela, mas ante as suas recusas sistemáticas, acabou por desistir. Raimundo estava farto de estrangeiros. Do estrangeiro onde fora emigrante e do estrangeiro onde nascera e agora vivia.
Londres? Onde fica Londres?”, perguntava ele como se o mapa do mundo se lhe tivesse varrido da cabeça.
Se não queres ir, diz…”, replicava Estela, desgostosa, ao perceber que Raimundo não abdicava dos seus princípios.
Tinha mais que fazer, dizia ele, não lhe dava jeito, não lhe apetecia, havia muita coisa para resolver nas empresas. E assim se foi acomodando a passar o Natal sem Estela. E, para Raimundo, estar sem Estela era estar sem ninguém.
No dia 25 de Dezembro, a manhã chegava com as ruas vazias e tristes. Toda a gente dormia mais do que o habitual, com o objectivo de esquecer a noite anterior. Raimundo saía cedo de casa para não fazer contas aos anos que haviam passado desde que recebera a sua última prenda de Natal. Na empresa, ninguém se lembrava de o presentear com um mimo, por simbólico que fosse. Todos o julgavam indiferente a qualquer gesto de aproximação, amizade ou reconhecimento. Raimundo não tinha amigos. E era no Natal que isso mais se sentia. Contudo, se voltasse atrás, faria tudo da mesma maneira. Os amigos, quase sempre, tinham outros interesses, andavam por caminhos com os quais ele não se identificava. Por isso, com amigos, ou não, o seu Natal estaria sempre condenado.
Raimundo saía de manhã, no dia 25 de Dezembro e só regressava à noite, aliviado por ter superado aquela data difícil. Andava pelas ruas, perdia-se (era a única época do ano em que se perdia), esquecia-se dos sítios, caminhava durante horas sem fim até ao anoitecer.
A 26 de Dezembro, não se lembrava de nada, tudo era mais disfarçável. Na sua agenda, o calendário saltava de 24 para 26 de Dezembro (a página do dia 25 tinha sido há muito arrancada).
A partir de 27, as pessoas só se preocupavam com a passagem de ano e então Raimundo respirava. O Natal ficava para trás, como um fóssil soterrado nas horas.
Houve um ano, porém, em que Raimundo decidiu enfrentar a noite de Natal e vivê-la como toda a gente, com vista a vencer o medo que tanto o afectava. Nesse ano, mentiu a Estela, dizendo que estava com sono e que em breve iria para a cama, mas não o fez. A sua ideia era banquetear-se, desse no que desse, e, por fim, assistir à missa do galo.
Depois de muitos anos a fechar janelas e apagar luzes para não ter o Natal dentro de casa, Raimundo achou, enfim, que já era tempo de superar a nostalgia, o medo, a tristeza que o Natal lhe trazia.
Na tarde de 24 de Dezembro, telefonou para vários hotéis de que era proprietário e reservou mesa para jantar. A sua intenção era escolher em cima da hora o hotel que mais lhe convinha e, depois, cancelar as outras reservas. Se tanto trabalhara na vida para enriquecer, havia de gozar naquela noite os seus hotéis, havia de sentir-se rei, por contraste com o menino pobre que nascera na manjedoura. Naquela noite, Raimundo havia de jantar por todos os Natais passados em que se fechara em casa esquecido de si mesmo.
Eram sete horas da noite quando se dirigiu para o hotel que distava apenas dois quarteirões da sua casa. Fez o percurso a pé, sem se deixar incomodar pela chuva miudinha que caía. No átrio de entrada, despiu o casaco, sacudiu-o e entregou-o ao empregado hirto de olhar fixo, a quem pensou pedir o favor de lhe cancelar as reservas que fizera nos outros hotéis, embora tivesse acabado por se inibir e nada dizer. Procurou recordar-se do valor que investira naquela unidade hoteleira, mas não foi capaz. Nem sabia quantas pessoas garantiam o funcionamento da estrutura. Depois de várias voltas aos ficheiros mentais, decidiu para si mesmo encerrar o seu departamento de contas pessoal pelo prazo de umas horas.
Foi conduzido ao restaurante, à mesa que ficava no canto mais resguardado da sala. Para além da mesa dele, havia mais duas ocupadas: numa, estava um casal estrangeiro; noutra, dois homens com ar de quarentões, falando de negócios.
Raimundo sentou-se e pensou mais uma vez se não seria melhor cancelar as reservas, não fosse dar-se o caso de os empregados ficarem eternamente à sua espera, vendo-se privados da consoada junto das famílias. Mas voltou a adiar a decisão.
Ao fim de cerca de uma hora, depois de ter bebido duas garrafas de vinho e devorado um bacalhau de primeira qualidade, levantou-se e voltou para casa, onde tinha deixado o carro.
Sentou-se ao volante, consciente de que tinha a visão toldada, mas não recuou, nem mudou de planos. Em vez de telefonar a cancelar as reservas, decidiu dirigir-se pessoalmente aos hotéis, dar as boas festas aos funcionários e então anular as marcações.
Todavia, quando chegou ao segundo hotel, em vez de anular a reserva, preferiu jantar novamente. Ainda sentia alguma fome e, desse modo, não teria necessidade de fazer aquela desmarcação. Depois de anos e anos a comer pouco, Raimundo achava que tinha chegado a noite de todas as suas desforras. Naquele Natal, não faria contas a nada, nem a despesas, nem ao número de garrafas de vinho que havia de consumir, nem aos doces que emborcaria.
No fim do segundo jantar, ao levantar-se da mesa, cambaleou e pensou que talvez já não estivesse em condições de ir muito longe. Já não se lembrava dos telefones dos hotéis (apalpou nos bolsos, mas não encontrou a agenda), nem se considerava capaz de pedir ao empregado que lhe cancelasse as reservas. Por qualquer motivo, começou a achar que seria uma indelicadeza desmarcar o que havia marcado, muito mais na noite de Natal. Percebeu que a ideia contradizia uma outra que tivera antes, mas não foi capaz de entender porquê.
Enquanto pensava isto, arrotou e preocupou-se em levar o guardanapo à boca, embora lhe tivesse parecido haver um desajuste entre o tempo do arroto e o movimento da mão que segurava o guardanapo. Continuou a arrotar e procurou corrigir o desencontro entre a expulsão dos gases e o movimento da mão, mas quanto mais se esforçava, menor era a articulação. Ainda teve o cuidado de olhar em volta a ver se alguém o observava, só que não foi capaz de contar quantas pessoas havia na sala de jantar. Sentia um calor de lareira atrás das costas e custava-lhe aceitar que não conseguisse somar os clientes que haviam de contribuir para aumentar a facturação das suas empresas.
Antes que alguém lhe chamasse a atenção para o estado em que se encontrava, Raimundo abandonou o hotel e meteu-se no carro. Deixou-se estar por uns momentos agarrado ao volante, de olhos fixos no vidro embaciado, e deu a volta à chave na ignição. A visibilidade era praticamente nula, mas nem assim deixou de avançar. Recordava-se vagamente do sentido da estrada e foi seguindo a direcção das luzes, dos semáforos e das decorações natalícias. Ao fim de uns minutos, o vidro desembaciou e Raimundo sentiu-se mais seguro, quase tão confiante como os pastores que tinham chegado a Belém com a ajuda da estrela.
Cerca de um quilómetro adiante, parou num posto de polícia para tirar uma dúvida sobre o caminho que o conduziria ao hotel, mas quando enfrentou os olhos do guarda lembrou-se de que bebera demais e recuou antes que o guarda se apercebesse do seu estado.
Sem saber como, chegou ao terceiro hotel, com a sensação de que lhe estava a acontecer qualquer coisa. Abriu a porta de entrada, olhou para as calças, cruzou os olhos na direcção da gravata, despiu o casaco e sacudiu-o, não tendo notado nada que o pudesse embaraçar.
Encostou-se à parede para não cair e respirou por uns momentos. Pensou voltar para casa, só que tinha à sua frente uma noite de Natal para atravessar. Raimundo já decidira não cancelar nenhuma das reservas. Preferia isso do que passar pela vergonha de voltar atrás com a sua palavra.
Um dos empregados veio até junto dele perguntar-lhe se precisava de alguma coisa. Raimundo pediu uma cadeira. Trouxeram-na e ele sentou-se ali mesmo no átrio do hotel, parecendo que a mais ligeira corrente de ar o levaria ao chão.
Quer que chame um médico?”, perguntou-lhe o empregado.
Raimundo não respondeu. Passados uns minutos, sem descolar as nádegas do assento, foi andando para uma das mesas, arrastando os pés e a cadeira, lentamente, esforçadamente. Enquanto esperava que o servissem, embora não se lembrasse de ter feito qualquer pedido, deixou cair a cabeça sobre a mesa e passou pelo sono.
Quando lhe puseram a refeição à frente, levantou os olhos, observou os talheres e receou que estivessem mal lavados. Por isso, preferiu comer com as mãos. À medida que as usava, limpava-as no guardanapo e depois voltava a sujá-las na comida.
Ao notar que deviam estar a olhá-lo e ridicularizá-lo pela forma como se comportava à mesa, pensou usar os talheres, mas depois de avaliada a situação, continuou a comer com as mãos. Cortava com a mão direita em forma de faca e espetava os dedos com a esquerda em forma de garfo, levando tudo à boca entre roncos, suspiros, arrotos.
Esvaziada a sétima garrafa de vinho da noite, quase não tinha forças para se mexer.
Já deve ter nascido o menino nas palhinhas…”, pensou para si mesmo. “Não posso fazer nada…”. E, logo a seguir, deixou cair a cabeça dentro do prato, desatando a vomitar sobre os restos da refeição. O vómito saía-lhe a um ritmo quase espontâneo, sem espasmos, sem aflição. Era um vómito tranquilo, ponderado, completo, com as suas pausas e os seus arranques controlados. Parecia o vómito de um sono acordado, um vómito lúcido que perseguia objectivos, ainda que desconhecidos.
Raimundo bolsava, mas nem assim parava de comer. Fazia tudo ao mesmo tempo, sem compassos de espera: vomitava, comia, comia o que vomitava, vomitava o que comia, levava restos à boca com as mãos, lambia os dedos, dizia que estava tudo muito saboroso, mas a cada palavra que proferia era cada vez menor a sua força, a sua convicção, como se a língua se lhe fosse toldando ao mesmo tempo que a visão, cegando, entupindo, emparedando. À sua frente, havia um muro enorme que o impedia de alcançar os hotéis onde ainda tinha reservas para jantar.
Digam-lhes que esperem por mim…”, suplicava Raimundo, a um passo de desfalecer. “A missa do galo já começou?”
Raimundo falava com a cabeça enterrada no prato, a orelha esquerda desaparecida no recheio, por entre duas pernas de galinha, batatas assadas e azeitonas que saltaram para a mesa, rebolando por entre as pequenas colinas formadas pela toalha amarrotada.
Chegou uma altura em que não resistiu mais: como já tinha a cabeça no prato, limitou-se a deixar cair as mãos, os braços, os ombros sobre a mesa e tombou inanimado. Foi como se as luzes do restaurante se tivessem apagado e todo o hotel, de repente, tivesse caído no sono.
Ouvia-se a respiração de Raimundo por entre os restos de comida e vomitado. Havia talheres no chão, guardanapos sujos, copos entornados e manchas escuras na toalha. Antes de desmaiar, Raimundo havia tirado a gravata, que jazia enrodilhada à volta de um dedo inerte, como se não houvesse corpo que lhe pertencesse.
Quando acordou no outro dia, Raimundo deu consigo na mesma posição em que desmaiara horas antes: sentado, com a cabeça metida no prato da consoada. O restaurante estava vazio e limpo, exceptuando a sua mesa. Ninguém tivera coragem de o acordar.




33


Já não sei a que propósito Raimundo foi para aqui chamado, já não sei muita coisa. Podia ter contado tudo logo de início. Mas a sequência dos acontecimentos não é decisiva. A noção do tempo não faz as viagens, nem os livros. Não voltarei a falar de Raimundo, nem da vida que deixo para trás.
Já nem vejo Rute. Não sei onde a perdi, onde a encontrei. Voltou em menos de uma hora, como dissera, mas não tenho ideia do que aconteceu a seguir. O que me resta são as suas palavras. As últimas palavras de Rute, que deixo aqui registadas, as palavras de que me lembro, as de que me posso dar conta.
Não sei o que virá depois de ela as ter proferido. Não sei nada, não posso saber, nunca poderei. Está fora do meu alcance. A alternativa é imaginar. Imaginar qualquer coisa para lá de mim, na qual me prolongo, me continuo, me completo. Imaginar-me é realizar-me, tornar-me mais real do que nunca.
Nestas páginas, posso contar tudo – e contei – excepto o meu último momento, o momento logo a seguir às palavras de Rute. E se não o posso contar é porque a partir de então deixarei de ser eu. Ou passarei a ser menos eu. O que de alguma forma significa ser mais eu. É depois de morrermos que nos tornamos verdadeiramente nós próprios porque essa é a altura em que crescemos sem limites. E quanto mais tempo passa sobre a nossa morte maiores nos tornamos. Depois de morrermos, somos nós e somos os outros. Não há mais barreiras, não há mais temores.
Em vida, procuramos entender o outro, na morte alcançamo-lo. E é pelo outro que crescemos. Depois de mortos, podemos não ter consciência pessoal, consciência dos detalhes, mas há uma outra consciência impessoal, uma inconsciência vaga, que supera todos os constrangimentos experimentados em vida. Só quando a consciência ultrapassa as barreiras de si mesma se pode vislumbrar a esperança.
Um dia, pode ser que alguém escreva por mim o instante que deixei por contar. Alguém que se levante pé ante pé na noite escura e avance para a luz. Alguém adormecido na penumbra cuja respiração não se oiça no silêncio da noite imprevista. Um dia, talvez alguém conte, talvez alguém escreva o tempo que está para lá da consciência, para lá da voz desintegrada em átomos no vazio dos nomes.
Ela veio sobre mim com asas enormes de águia e levou-me. Pensei que seria Rute a libertar-me, mas enganei-me. Foi outra. Ainda hoje não sei quem, não percebo o que aconteceu. Não sei ao certo, reconheço que me deixei cair num estado de relativa confusão.
Eu não a conhecia, mas deixei-me ir, porque confiei. Deixei-me encantar. Sabia que não se tratava de Auxiliadora, nem de Rute, sabia que se tratava de alguém novo na minha vida, e nem assim receei as consequências do que me esperava.
Não me arrependi. Passados todos estes anos, continuamos inseparáveis pelo tempo fora. Ela sorrindo e fartando-se de dizer disparates e eu da mesma forma. De início, houve alguma insegurança de ambas as partes. Ela estremecia, por vezes, hesitando sobre o meu tempo, o meu desejo. E eu pensava em demasia, receando que não fosse verdade o que me estava a suceder. Mas depressa superámos a instabilidade inicial e largámos âncoras na viagem que estava para vir.
Ainda gostas de mim? – perguntava-me ela de meia em meia hora, como se não pudesse suportar a felicidade da nossa união. Eu respondia-lhe que sim e agarrava-me mais a ela, apertando a sua mão na minha, beijando-lhe os lábios e sublinhando o seu sabor profundo.
Namoraste muita gente? – queria ela saber, ainda.
Sim – confirmava eu. – Sim… mas tu estavas em todas as pessoas que namorei, embora nem sempre te tivesse reconhecido.
Tenho que voltar atrás, para não me esquecer de nada.
O dia em que vi Rute pela última vez não podia ter amanhecido mais normal. O dia amanhecera simplesmente azul, de um azul tão monótono e desinspirado que se fosse negro ou cinzento não se daria pela diferença. E se percebi que alguma coisa acontecia, ou estava prestes a acontecer, foi apenas por uma ligeira luminosidade no rosto de Rute, uma luminosidade quase imperceptível. Foi pela forma como me olhou, pela forma como se aproximou da minha cama. Disse cá para mim – é hoje – e foi mesmo. Ou penso que foi.
Não recordo pormenores. Nem me resta espaço para os anotar. Mas tenho ideia de ter olhado para Rute e de a ter visto com um daqueles seus sorrisos que não dava hipóteses.
Pensei em minha mãe, apesar de esta não ter tido por hábito sorrir muito. Rute era magra e minha mãe era gorda, mas associei as duas. E também vi Auxiliadora vestida de Rute ou Rute vestida de Auxiliadora, com aquele seu ar refilão, de perna cruzada, como quem tem um cigarro entre os dedos, embora nenhuma delas fumasse.
Deixa que a noite desça sobre ti – pareceu-me ouvir Rute murmurar. Não tive a certeza de compreender, porque era de dia, pelo menos tanto quanto me apercebera, e ela vinha falar-me da noite. – Sei que sempre me quiseste à tua beira – continuou. – Entrega-te agora à noite e vem comigo para o fundo iluminado do tempo. Deixa que a noite venha como um manto sobre o teu corpo. Fecha os olhos e caminha para onde a minha voz te chama.
Acho que dei um pulo na cama e gritei o nome de Auxiliadora, mas logo a seguir senti a mão de Rute, ou a mão de minha mãe, sobre a fronte, procurando auscultar-me a temperatura. (Ou o que senti talvez fosse uma águia de asas abertas subindo nos céus). Minha mãe chorava…, Rute sorria. E do choro e do sorriso de ambas se fazia o rosto que eu via.
Quis perguntar a minha mãe por que razão estava desfeita em lágrimas, mas não tive forças. Calculei que chorasse por se lembrar da forma como eu a tratara nos últimos instantes de vida. Afastei o sentimento de culpa. Pus a hipótese de as lágrimas na face de minha mãe serem os reflexos húmidos dos sorrisos de Rute, que me agarrava as mãos, apertava os pulsos, consolava a alma com palavras redondas e doces.
Um dos motivos pelos quais eu tinha dúvidas sobre quem estava comigo tinha a ver com o “tu”. Só minha mãe e Auxiliadora tinham o hábito de me tratar assim. O mais provável era Rute ter decidido facilitar as regras da nossa comunicação. Já não havia nada a perder. Eu estava a esvair-me, estava à beira de atingir o ponto em que não há mais linhas demarcadoras.
Esta é a hora da tua noite, a hora dos teus sonhos profundos – dizia Rute, ou dizia minha mãe, ou dizia Auxiliadora (eu já não queria saber, só queria viver aquele momento), obtendo de mim apenas esgares, expressões interrogativas, interjeições confusas.
Não te esforces sem necessidade – continuavam elas, não me restando dúvidas de que eram apenas uma, como se eu já não estivesse ali e só as pudesse ouvir à distância, como se o meu caminho avançasse para outro universo, outro tempo, e elas só quisessem ter a certeza de que a viagem não me traria sobressaltos.
Esta é a tua hora, a nossa hora, a hora de todas as felicidades. Agora começa a vida para ti, agora e sempre. Agora começa tudo. A dor não voltará a atingir-te.
No meio do burburinho provocado pelas correntes de ar que me atravessavam e levantavam as cortinas da alma, pareceu-me ouvir a palavra “amor”. Tive quase a certeza de a ouvir. Mas hesitei e não reagi. Senti-me bem, profundamente bem, por me ter parecido ouvir a palavra “amor”. Só a ilusão de a ouvir me fez feliz. “Amor” era a palavra que mais falta me fizera na vida. Era a palavra sobre a qual eu não conseguira construir a minha identidade. Seria Rute capaz de me amar? Ou teria pronunciado a palavra “amor” com o fim de me iludir, de me amparar, de me compensar? Minha mãe, sim, disse-a muitas vezes ao longo da vida. Mas sempre que o fez eu não sentia que me fosse dirigida, que me dissesse respeito. Vivia com a permanente sensação de que a minha mãe falava de amor para uma entidade que me era alheia e que nunca conheci. Foi esta sensação que me levou ao desespero na hora da sua morte. Eu sentia ciúmes dela, sentia que ela me abandonava e me desprezava. Por isso, quanto mais vezes falava de amor, maior era a minha solidão.
O amor não se resumia a uma palavra. Significava bastante mais, significava algo que eu nunca alcançara e que não sabia se alguma vez alcançaria. Só agora, no fim da vida, o termo “amor” me enternecia e deslumbrava. E era assim porque eu sabia que estava entregue às asas do tempo que atravessava os mares de universos sem nome.
Auxiliadora era um vendaval de ternura, mas nunca me falara de amor. Preferia protestar por eu não lhe dar a atenção de que ela se considerava merecedora. Mas Auxiliadora desapareceu nos anos e está agora à minha espera em toda a parte para onde vou. Vai finalmente receber de mim o que nunca lhe dei. Auxiliadora repousa adiante com o rosto tombado sobre a almofada como quem dorme. Pode ser a Auxiliadora de sempre, a Auxiliadora que me desafiava e que partiu antes que eu tivesse tempo de me decidir sobre o que nos unia, ou pode ser outra Auxiliadora, alguém desconhecido que se abeira de mim e me envolve numa compreensão antiga e sem remédio, permitindo que eu me aninhe sob o calor das suas penas.
Não te sintas só – dizia Rute com o tom de voz que sempre identifiquei como o de minha mãe. Rute fizera a sua escolha depois de perceber que minha mãe era a pessoa que eu mais desejava junto ao leito de morte. Por isso, eu não sabia exactamente quem estava ao pé de mim naquele momento. Rute estava a baralhar-me, a confundir-me, e o seu objectivo era que eu aceitasse os factos, que aceitasse a mãe que ela reinventara para a minha última viagem.
Apesar de não ter certezas, compreendi o que se passava. Ou achei que compreendi. E optei. Decidi que não me restava melhor solução do que deixar-me ir na ilusão daquele instante porque aquela era a ilusão que Rute certamente me preparara. Se eu continuasse a hesitar, ou se rejeitasse o que me acontecia, corria o risco de falhar o prazer dos últimos instantes.
A luz é a força da tua alma – disse Rute com os lábios encostados ao meu ouvido esquerdo, o ouvido que tinha melhor audição, conforme ela desde há muito sabia, fazendo-me sentir que as suas palavras também eram minhas. Era como se falássemos ao mesmo tempo, como se pensássemos a duas vozes e não pudéssemos evitar a partilha daquele momento perpétuo.
Vai… este é o tempo da nossa companhia, o tempo do desejo e da consciência, o tempo do entendimento, o tempo da eternidade. Não separemos a dor da alegria, não separemos a noite do dia, não separemos nada, mantenhamos tudo junto, tudo unido, tudo ligado. Sobre ti desce a noite, desce sobre nós, e a noite é o teu dia, o nosso dia. Sobre nós desce o dia que nasce da noite, sobre nós desce a claridade da distância que encandeia, sobre nós desce o calor do manto que secou as lágrimas. Sobre ti, desço eu. Lembras-te? Quero que me sintas dentro de ti, quero acabar contigo para recomeçar. Quero que me olhes, que me oiças. Estou aqui, não te aflijas. Estarei aqui contigo, sempre. Irei contigo a todo o lado. Não receies partir. A minha voz irá contigo. A noite é a viagem que nos conduz ao centro das coisas desconhecidas. Vencemos a tempestade das ondas e a solidão. Superámos a dor de crescer. Agora, este é o lugar da noite que nos aquece, do dia que nos acolhe. Não te inquietes, não digas nada. Acabou-se o tempo das palavras. Esta é a última palavra. Que faz o nosso caminho, a nossa luz, a nossa noite, sobre a qual repousamos na serenidade das estrelas. As palavras são o nosso corpo, o nosso pensamento. Nada mais nos resta do que viver a noite no esplendor da sua quietude. A noite é o interior da luz, o tempo desejado de sonhar e adormecer. A noite é feliz. É feliz, meu amor, minha mãe. Adormece sobre as ondas dos astros que brilham no meu peito. Adormece e escuta o que te digo para sempre. Não cederás, agora. Não regressarás. Não sofrerás. A tua navegação é o meu olhar que te segue para lá dos horizontes. Se a respiração te pesa, deixa-a ir. Deixa ir o caminho dos teus passos, deixa ir a música que te envolve. Vais num tempo de sons e consolação. Abre os teus olhos depois de partires, abre a noite e o tempo desfeito em cinzas que depositaste na palma das minhas mãos. Confia no que te digo. Confia e salvar-te-ás da escuridão do dia. Abraça-te à luz da noite, abraça-te ao rio que te viu nascer e ao qual pertences, abraça-te às margens e caminha sobre a verdura luminosa da espera que terminou. Agora, começa tudo, começas tu, começa o que é certo, começa o imutável. A dúvida desfez-se na sombra quente da luz. Aceita as minhas carícias sem temor, aceita os meus gestos sobre a tua pele, aceita a companhia do meu desejo em ti. O amor começa nesta liberdade. Terminou o ódio, terminou a ignorância, terminou a dúvida. As margens unem-se no teu olhar sobre a noite que não acaba. Deixa a poeira da luz sobrevoar as sombras do tempo. A noite é o segredo das espumas, o segredo do fogo e das ideias sem mácula. Tudo o que era mácula terminou para ti, terminou para nós. Se ouvires a minha voz afastar-se é porque a esperança te segura e te consola. Se deixares de me ouvir sou eu que parto contigo na direcção da claridade dentro da noite. Se deixares de me ouvir é porque adormeceste a meu lado e respiras as minhas palavras. Nada te pesa, agora. Nada te aflige. Só a minha voz te aquece na bruma da densidade luminosa. Os relógios pararam, deixaram de se ouvir, deixaram de andar em círculos sobre o eixo do nada. Agora, caminhas pelo vale dos relógios esquecidos quando o tempo era digital e antigo. Sente os meus dedos, o meu sangue, os meus poros bebendo das tuas células abertas no espaço interminável. Caminha e encontrar-te-ás na beira de um lago onde desagua o brilho dos lumes. Escreve a consciência das águas, escreve a alegria de me teres, escreve o pranto e a luz e o sonho. Escreve-me sem palavras para que sempre me desejes. Escreve-me na noite dos teus olhos. Toma nota da minha voz e guarda-me, guarda-me, fecha-me em ti, guarda-me em ti, estou aqui, acarinho-te e levo-te em corpo e alma na tremura dos meus dedos. És a minha noite e eu a tua… Não me perderás. Em cada momento te reencontro e reconquisto. Nada diremos do que nos embala, do que nos consome. Nada diremos dos sons que nos chegam. Quero que te sintas livre, que te sintas voando no tempo das asas que criei para ti. Bebo as tuas lágrimas, todas as lágrimas que não secaste em vida. Estou aqui junto dos raios em que a tua sombra se refaz para que me contes tudo. Sou aquela que tanto desejaste e desejas. Não desistas. Se esperaste anos para me ter a teu lado, podes bem continuar agora a marcha dos meus pés para o infinito do saber. Oh conta-me, conta-me o que farás no futuro para onde caminhamos. Escreve, escreve a última palavra, escreve todas as andanças, todas as curvas da claridade nas janelas do céu. Escreve para não me esqueceres, para não morreres, para continuares na direcção que te aguarda. E conta-me, conta-me o que sentes, conta-me o que há, conta-me o que se passa nos rolos do tempo que nunca começaram.


FIM